ÍNDICE:

sexta-feira, 4 de agosto de 2023

QUEM SE LEMBRA DO CICCILLO?

 Famosos Que Partiram: Yolanda Penteado

D.O Leitura – Ano II – Número l8 – São Paulo, novembro de 1983 1963.  

Ciccillo está desencantado das Bienais e da vida agitada de São Paulo. Procura seu amigo Wladimir de Toledo Piza, na Sociedade São Vicente de Paula. Diz de sua intenção de ir morar em Ubatuba, onde comprara, do próprio Piza, por 4 mil contos, a Prainha, à entrada da cidade, que mandou reformar segundo um projeto do arquiteto Bratke.

- Ciccillo, você é muito grã-fino, não conhece o povo... Assim você não entra no céu... Vá para Ubatuba que a vida no meio dos caiçaras lhe fará bem. 

Ciccillo foi, acabou candidato a prefeito com o apoio de Ademar de Barros. Eleito, fez uma gestão revolucionária, com ajuda maior do governador Abreu Sodré (1967-197l). Mas, durante a campanha eleitoral, ante a razia que Ciccillo fazia na cidade e nos sertões de Ubatuba, o outro candidato a prefeito, Coutinho, funcionário da CTI Industrial e ligado aos pescadores, procurou-o. 

- Seu Ciccillo, vou retirar minha candidatura... 

- Que aconteceu? 

- Não tenho mais dinheiro, minha campanha acabou... 

Ciccillo chama o fiel secretário Neco (Manoel Esteves da Cunha Júnior) e segreda alguma coisa. Neco vai lá dentro e volta com um cheque que Ciccillo assina com generosa displicência e cumplicidade. O Coutinho vai embora. No dia seguinte, os muros de Ubatuba estavam pichados. - “Fora o italiano! Fora Matarazzo!” Mas Ciccillo ganhou fácil.

O MAM 

Em 1948, Ciccillo pegou um início de tuberculose. Foi para a Europa tentar a cura na célebre clínica de Davos, na Suíça. Aqui, já conversava com Francisco Luís de Almeida Salles, Quirino da Silva, Carlos Pinto Alves e outros amigos, sobre a abertura, em São Paulo, de uma galeria de arte moderna, um grande centro cultural à altura da megalópole. Na clínica, na Suíça, Ciccillo se encontra com o museólogo Nierendorf, diretor do Museu Guggenhein. A 4 de setembro, Matarazzo escrevia a Carlos Pinto Alves uma carta entusiasmada, já considerada a certidão de nascimento do Museu de Arte Moderna de São Paulo: ... “Com o Sr Nierendorf, estamos organizando, em nome do futuro Museu de Arte Moderna de São Paulo, uma exposição colosso de arte abstrata de textos de todos os países, de suas origens até nossos dias. Vai ser uma réplica da exposição realizada em Paris, porém mais conhecida. Non è chi io sono abstrattista... mas eu penso que um movimento tão importante de arte moderna é completamente ignorado no Brasil. Também penso que o Museu de Arte Moderna ficará conhecido patrocinando uma exposição assim... (que vai levantar o diabo nell’acqua morta)”. Almeida Salles acha que o MAM começou em meados de 47, quando Ciccillo foi com a mulher, Yolanda Penteado, para a Europa, em lua-de-mel. O casal se desenrolava em contatos com o grand-monde de arte européia. Aqui, chegava Nelson Rockfeller, que se reúne na Biblioteca Municipal com os interessados na fundação de um Museu de Arte Moderna, à semelhança do MAM de Nova York. Traz quadros de grandes artistas, que doa à novel entidade: um Picasso, um Chagall, um Braque, um Leger, entre outros. A comissão organizadora do MAM fica constituída: Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade Filho (Nonê), Paulo Mendes de Almeida, Sergio Milliet e Francisco Luís de Almeida Salles. Sede provisória: Rua Sete de Abril, 230, 3º andar, Edifício Diários Associados., E presidente da primeira diretoria, por escolha unânime, o Ciccillo, filho de Virgínia e do Senador Andréa Matarazzo, nascido em São Paulo, a 20 de fevereiro de 1898, o Mecenas das Artes. “Um servidor da cultura, apenas”, como me disse no barzinho do MAM, anos depois. 

A BIENAL 

A idéia da Bienal foi de Di Prete, artistas, cartazista e decorador-projetista, italiano de Pisa, que veio para o Brasil em 1946. Aqui, publicitário e pintor, fez uma frustrada exposição de 30 óleos na Galeria Domus, de Pascoale Fioca, a primeira galeria de arte da capital paulista. Di Prete tencionava criar uma “brasiliana nacional de arte”, expondo a idéia de Paulo Rossi Ozir, companheiro de aperitivos do barzinho do MAM, e que o levou a Ciccillo numa recepção festiva. Matarazzo ouviu atentamente o plano e pediu a Di Prete que fosse à Metalúrgica Matarazzo expor melhor a idéia. Di Prete lá foi, dia seguinte, conversou de novo com Ciccillo, desta vez acompanhado por Carlos Pinto Alves e Lourival Gomes Machado, este diretor do MAM, que disse: -Sou contra a realização dessa mostra internacional de arte em São Paulo. A mentalidade brasileira não é a mentalidade da Europa. A idéia de Di Prete – embrião da Bienal – morria ali. Mas Ciccillo, sensível, espírito instigante e irrequieto, pede secretamente a Di Prete que exponha seu plano por escrito. Di Prete escreve um texto em cinco laudas em italiano, apoiando-se nos regulamentos da Bienal de Veneza e da Quadrienal de Roma, e o entrega a Ciccillo. Pinto Alves traduz o texto. Ciccillo apóia, mas há demora... Di Prete faz por encomenda do Prof. P.M.Bardi, um cartaz abstrato (primeiro que se faz no Brasil) para mostra internacional de propaganda, que o Museu de Arte de São Paulo (MASP) promovia. A exposição repercute e durante uma conversa com Biaggio Motta, Arturo Profili, Ciccillo e Lourival Gomes Machado, Di Prete defende-se, pois fora tachado de “inimigo” por este último, por haver colaborado com o MASP. E, irritado e malicioso, cutuca Ciccillo: - Seu Matarazzo, me disseram que o Bardi vai fazer uma bienal de artes internacionais... Não sei, não. Ciccillo fica quieto. Sai. Vai tomar o carro, na Sete de Abril. Demora-se um pouco, a porta está aberta, Matarazzo encara Di Prete, Biaggio e Profili e fala duro: - Motta, quero ver em todos os jornais, amanhã, que o Museu de Arte Moderna lança a Bienal de São Paulo.

FRANCISCANO

Ciccillo dava condições de escrever e hospedagem, em Ubatuba, para um intelectual seu amigo. Pagava hospital para doentes. Ajudava um bolsista em seus estudos na Europa. Colaborava com mesadas gordas para jovens estudantes. Em Ubatuba, quando assumiu, a Prefeitura não tinha dinheiro. Ciccillo comprou caro, caminhão e mesa para trabalhar. Dava e doava, de bom gosto, sem desejar retorno e sempre anonimamente, São centenas e centenas de pessoas beneficiadas, aqui e ali, nos mais diversos meios – e que, felizmente, se conservam discretas até hoje. Paz à Ciccillo, hoje em sua capela do Senador, no Cemitério da Consolação, onde está enterrado desde 16 de abril de 1977 – e onde, Na maioria das vezes sozinho, com sua bengala, assistia à missa das onze, aos domingos. Ciccillo, escreve o jornalista Fernando Azevedo de Almeida, era um franciscano por ação e doação. Ciccillo teve certa vez uma experiência amarga. Um dia, em suas costumeiras andanças pela fábrica (a Metalúrgica Matarazzo), encontrou um operário dormindo junto a uma máquina. Ficou furioso. Acordou-o, sem lhe dar tempo a qualquer justificativa, mandou-o passar na caixa, e despediu-o ali mesmo. O coitado abriu dois olhos grandes assustados e Ciccillo ficou impressionado. Confessou, anos mais tarde: - Depois... como me arrependi! Dias mais tarde, tentei consertar as coisas. Mandei procura-lo, mas não o acharam. Soube que tinha filhos e vários anos de firma. Até hoje deploro esse meu gesto infantil de autoridade. Aqueles olhos espantados me parecem fitar. Nunca mais despedi ninguém... Guiomar Morello, montador de 17 bienais, confessa que nunca teve outro chefe na vida, tão exigente, capaz e humano. Luíza Gollas, a camareira-governanta, tratou de Ciccillo durante duas décadas (à base de muitos chás e maçãs). Ciccillo mandou-a três vezes à Europa, como prêmio e homenagem. E ajudaria muita gente, até hoje, se vivo fosse. E, para encerrar o capítulo, quantas Bienais saíram de seu bolso... 

FRASES 

 - A Bienal é uma idéia de alta cordialidade humana. - Eu ganho um cruzeiro simbólico na presidência da Comissão do IV Centenário de São Paulo (a Carlos Lacerda) 

- Tem algum filme de mocinho para ver hoje? (a Wanda Svevo). - Faço as Bienais para os jovens. - A Bienal é um marco de paz e confraternização entre os povos. - Quem sou eu, para julgar outros? - Acho que quem vai me substituir na Bienal é aquele de barbicha. Como é o nome dele. Acho que é o Vilares. - Uma vez pediu reunião do Conselho da Bienal, que se demorava para aprovar o regulamento. Disse logo, em frase célebre: - Faço um regulamento com a minha bengala! (chamou o Mário Wilches e fez o regulamento, em duas horas). - Artista é para fazer obra, não administração. - Quando Neco começava a remexer sua pasta: - Já sei, está preparando o meu discurso a São Pedro.

Em Ubatuba, no ano em que morreu, na casa da Prainha, depois da recepção em que convidara toda a cidade, vereadores, gente do povo, Silvano e Pierella Dalle Molle, Maria e Luís Lopes Coelho, Felix J. Francisco, Washington de Oliveira, Dr. De Lucca, Coronel Hélio de Oliveira, e ainda adversários políticos, me disse: - Quando morrer, depois de um ano, ninguém falará mais do Ciccillo. Nos dicionários, terei umas três linhas... Só, no máximo. Ele não se sentava à mesa, quando havia 13 pessoas. Era devoto incondicional de São Francisco de Assis. Tinha mais de 200 livros em línguas diferentes, sobre o Poverello de Assis. A MORTE Ciccillo foi morrendo aos poucos, diabetes, insuficiência pulmonar, ao lado de Balbina Martinez de Zayas Matarazzo – fiel companheira de tantos anos; começou o namoro nos anos 20, espanhola de cabelos ruivos, linda mulher, com quem se casou num cartório da cidade em 1974; Giannandrea Matarazzo (um dos sobrinhos queridos), Dr. João Valente, médico que o assistia, Wladimir Toledo Pizza, os irmãos Paulo Gianicola e Costabile; Virgínia, Mário Papone, Pati, Oscar Landmann, Oswaldo Silva e outros, sobrinhos e sobrinhas, além do Neco. Era um sábado, Desde as sete da manhã, não falou mais. Já apenas sussurrava. Quis olhar pela janela, no amplo apartamento do Conjunto Nacional. Puseram a poltrona ante a vidraça grande. Tinha falta de ar. A cabeça pendeu. Morreu como viveu, sem contestar, sem gemer, aceitando a sorte da vida. Foi feita a sua vontade. - Quero ver São Paulo. Sou, primeiro paulista... Depois, brasileiro. O monumento a Ciccillo, idéia de amigos, incentivada pelo Centro Cultural Ciccillo Matarazzo, projeto de Bruno Giorgi – uma espiral, semelhante ao emblema comemorativo do IV Centenário de São Paulo – não vingou até hoje. O franciscano Ciccillo tinha razão. Está sendo esquecido rapidamente. O mal de Ciccillo foi construir muito, ajudar, incentivar, promover a cultura brasileira, com alma de lutador e humanismo. Ciccillo Matarazzo, quem se lembra dele hoje? Não tem uma referência, uma foto publicada, uma rua, uma avenida – à exceção de Ubatuba – uma estátua, um monumento. Ciccillo tinha razão, quando se referia à memória (curta) nacional. Até nisso não foi o visionário que tantos julgavam, mas o realista vivo, ágil, inteligente construtor sem igual, em seu campo, na história brasileira. Que sirva essa reportagem, aqui no D.O. Leitura, para reavivar um pouco a sua lembrança amena e sua dimensão incomensurável.

AS BIENAIS SEGUNDO SEU CRIADOR 

Fundando o Museu de Arte Moderna de São Paulo, tornava-se imperativo um encontro internacional periódico de Artes Plásticas em nossa Capital. A I Bienal é a concretização desse objetivo e evidencia que São Paulo e o Brasil estão à altura de promover com êxito, de dois em dois anos, este Festival Internacional de Arte. É feliz coincidência o fato de a I Bienal inaugurada neste ano permitir que a segunda se realizasse por ocasião do IV Centenário da fundação da cidade. Desde o primeiro instante foi pressentida a ousadia do empreendimento, a necessidade de uma vasta colaboração, as dificuldades que teriam que ser vencidas e os erros inevitáveis de uma primeira experiência. Mas, na verdade, dada a compreensão dos Poderes Públicos e Privados, por uma grande conjunção de esforços por parte de todos que organizaram a exposição, por uma entusiasta colaboração dos artistas, intelectuais e jornalistas brasileiros e dos governos das nações amigas que se fizeram representar, a efetivação da I Bienal foi além de qualquer expectativa. Devemos, pois, em primeiro lugar, agradecer muito sinceramente o trabalho e a dedicada colaboração de todos aqueles que, desde o início, deram a I Bienal o melhor de seus esforços e de sua boa vontade. Do trabalho comum todos poderão verificar o resultado. Assim, tudo contribuiu para que, nesta primeira grande manifestação artística do Brasil, pudéssemos ter uma consciência maior e mais explicativa dos valores artísticos nacionais em confronto com as grandes realizações artísticas de outros países. Uma expressão do espírito humano só atinge seu ponto de plenitude – e para a arte isto é de máxima importância – quando encontra projeção e eco, correspondência e compreensão em outros homens, povos. A ideia inspiradora e animadora de todo o esforço do Museu de Arte Moderna de São Paulo consistiu em concorrer para que se realizasse em nosso meio essa expressiva manifestação de alta cordialidade humana.