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quinta-feira, 22 de agosto de 2024

A CATEDRAL VOLPIANA


por
Arnaldo Chieus

Diálogos paralelos 
Colagens do repertório crítico

Para Luiz Ernesto Kawall

Uma linha poligonal
               Um arco verdadeiro
Na precisão dos vértices 
Entre um cafezinho 
E o indefectível 
                Cigarro de palha.
Na ereção de um símbolo 
                Absolutamente panteísta 
A religiosidade genérica 
Mergulhando no infinito
 Na paz profunda de luz e sombra. 
Um misto de formas tipográficas
 fixando-se nas paredes etéreas
                  Pintura pura 
                  Religiosidade cósmica. 
No claro,
com luz natural
do dia – 
Só assim enxergo o mundo: 
Meu mundo de luz natural.
                Um legítimo toscano 
                Um dia fui nascido
                Sou, ainda, serei sempre. 
Lucca, Modena, Veneza 
Catalizador definitivo das imagens icônicas 
Símbolo de um passado que não foi 
Hoje, mestre solitário 
A caminhar nas calçadas do Cambuci 
ao largo de suas ruas tortuosas 
na desolação de seus muros 
                  Entre a forma primitiva 
                  E a trama geométrica 
A busca da realidade 
          Transcendente. 
E na louca paulistânia 
a inspiração matutina 
à luz da primeira manhã 
saindo, ousadamente 
no seu rimado contraponto. 
                   Ao abandono, gradual 
                   Da pintura, ao natural
Longe, tão longe
 Dos amigos, antigos do Santa Helena.
 A maturidade a partir do rosto
 Sem nome 
Trabalhando suas construções imaginárias 
exilado de suas feições. 
São os amigos, novos,
que se fazem próximos
entre o que tinham em comum
 e nas diferenças que os uniam. 
desde o trinta e seis” 
um pintor a superar o tempo 
– “Vocês andam à cata de gênios, 
E não conhecem o Volpi, no Cambuci? 
Vamos lá”! 
Criador sempre 
Além de tendência, corrente, e temáticas 
Uma técnica instintiva 
Pintando antes de conhecer Cezanne
 e na afinidade próxima 
dos pré-renascentistas. 

Bruno Giorgi e Volpi, 
uma velha amizade!
                    E foi na amizade de suas leituras 
                    que nos desponta o camponês simples
                  na espontânea paciência de sua generosidade. 
E daí à magia da trama 
Na tela múltipla 
Traço ágil em magistral equilíbrio 
Maestria nas cores quentes e frias 
Autêntico, sempre. 
           Metáforas, analogias 
            Figuras, composições, construções. 
            Geometria limpa 
            Amplos planos e majestosos espaços. 
A forma 
            A linha 
                        A cor 
a compor e recompor poliedros
escavando a intuição
aproximando-se da genialidade!
 
E, em absoluta neutralidade,
 compor – repor – recompor
 na magistralmente religiosa composição
 Ao aguçado olhar franco de Maria Eugênia!
             E daí surgem as ogivas 
             Relação visual com o natural. 

A partir daí ergue-se a Catedral 
em áurea seta, fora do sonho, 
na melodiosa linha de sua polifonia. 
Muito além do céu tristonho 
Em busca do edifício perfeito
Tão inteligível ao olho que examina a partitura
Quanto ao ouvido (treinado)
Que absorve a trama polifônica. 


Na composição desse poema foram utilizados fragmentos das seguintes obras: 
A Catedral – poema de Alphonsus de Gumaraens 
Dois Estudos sobre Volpi – Olívio Tavares de Araújo 
Bruno Giorgi e Volpi, uma velha amizade – Luiz Ernesto Kawall

Este poema foi escrito em  15 de dezembro de 2023 em homenagem a Luiz Ernesto Machado Kawall
*11.06.1927
+13.08.2024
À sua memória, o Instituto Salerno-Chieus mantém, em Ubatuba, SP, o Núcleo de Documentação Luiz Ernesto Kawall  (Doc-LEK).



100 ANOS DO REBOLINHO


Na Academia Paulista de Letras falaram sobre o mestre da paisagem, o presidente Israel Dias Novais e o acadêmico José Altino Machado. 

Rebolo Gonsales vem andando num gingado pela Rua São Bento. Anos 40. No outro lado da calçada conversam animadamente o jornalista Israel Novaes e o mestre Mário de Andrade. O Rebolinho atravessa a rua e pergunta:

- Como é Mário, gostou dos meus quadros? 
- Gostei... 
-... Não gostou, não; você gosta mais do meu futebol que dos meus quadros. 
-  Não é verdade, Rebolo... As suas paisagens paulistanas... 

A conversa vai por aí. Israel assiste o diálogo e registra, memorialista nato que é, vida afora. 

Rebolo era uma extraordinária figura humana – alegre, sensível, saudável, capaz de transformar qualquer reunião em agradável tertúlia. 
E como sabia bebericar... Chegou até a ser um bom presidente do Clubinho dos Artistas, entre 40 e 50. Andava então de motocicleta, a Galatéia, colocando à garupa artistas que levava a jantares em sua casa do Morumbi – quando chegavam. (O célebre episódio com Djanira já foi contado aqui por Paulo Bomfim, in “O Centenário de um moço”). 

Na Itália, onde passou 2 anos, com bolsa de estudos do governo, posou junto à Torre de Piza – que é inclinada,... segurando-a do outro lado, em foto famosa. Numa linha de trem, namorava numa das tardes lácteas de Roma, quando vem o trem... a 100 por hora... com agilidade saltou, salvando-se o romântico par.

Viajei 2 vezes com Rebolinho, em férias ambos, pelo Ceará, Maranhão e Piauí. Em Teresina, causou rebuliço na cidade, pois um decorador oficial tinha descaracterizado a Igreja da Vermelha, inteiramente esculpida pelo Mestre Dezinho. Deu entrevista, protestou até ser chamado ao Palácio do Governo pelo governador.

-“Seu Rebolo, o senhor tem razão; diga como a igreja deve ser restaurada. 

- É fácil. É só fazer tudo igualzinho como Mestre Dezinho pintou e esculpiu. Os jornais deram manchetes, o governador nunca voltava atrás, em suas decisões. Mas, dia seguinte, pra agradecer ainda mais o Rebolinho, colocou um carro à sua disposição... Era uma perua Kombi velha, que chacoalhava sem dó pelas ruas da capital. O Rebolo ria sempre... e chorava, com seus fígados em mau estado.

Em Fortaleza, pediu a um garçom “uísque sauer” – veio uísque com sal... Num restaurante, onde comíamos todos os dias, peixadas sempre diferentes, um dia disse o garçom: 
- Sr. Rebolo, hoje vamos fazer um peixe diferente! 
- É, hoje gostaria de comer um peixe especial.
- Como é, sr. Rebolo? 
- Pois é. Hoje eu queria um peixe... em pé. Na vertical! 

E o mestre pintor foi homenageado pela intelectualidade local. O prato principal era tatu. Tatu-bola, ou tatu-galinha. Nós tínhamos combinado que, se eu gostasse da primeira garfada, piscava para o Rebolinho. (Os tatus eram espetaculares, enormes, em bandejas ricamente decoradas, fumegavam). Experimentei o tatu-bola, gostei e pisquei, aprovando-o. O Rebolinho entrou de cara no prato de tatu... Começou a fazer uma cara esquisita, a se contorcer. Tive de retirá-lo de cena. Vomitava no banheiro... Depois, explicaram: o pedaço que ganhou era tatu - galinha... Que come de tudo! Pobre homenageado. 

Em São Luiz, num circo lotado, chegamos atrasados. Rebolo passava pelo público para pegar o seu lugar junto ao picadeiro. Ele era parecido com o Paulo Gracindo, que estava no auge, por causa da novela do Bem Amado na TV. Alguém gritou. “Olha o Paulo Gracindo”! O circo todo aclamou. – O que eu faço? – Ernesto. – Agora não dá pra explicar, o circo parou, ta todo mundo aclamando você. O Rebolinho assumiu, foi cortando gentes, agradecendo... até o seu lugar. Assistimos, quietos, quase toda a sessão. Os artistas festejavam e saudavam o “Paulo Gracindo”... Antes de acabar a noitada, o Rebolinho levantou-se... saindo sorrateiramente. “Isso vai dar confusão”, disse, “se eu disser que não sou o Gracindo, é capaz de baterem em mim!”. 

Deu pra sair meio despercebido. Já lá fora, o porteiro teve dificuldade de abrir a porteira do circo, havia umas 100 crianças que não puderam entrar. O Rebolinho se condoeu: - Ó menino, deixa essa criançada entrar hoje... – O sr. falou com o dono do circo? – Falei. Ele autorizou a criançada entrar. Em homenagem ao tal Paulo Gracindo... E a garotada luiziense foi em atropelada, assistir o circo de graça. 

O artigo de Antonio Gonçalves (“Rebolo, Santa Helena e futebol”, Tendências/Debate, pag. A3, 5/6) faz recordar histórica reunião-jantar na residência de Rebolo, no Morumbi, e, 1º/2/71, quando recebeu todos os integrantes do “Grupo Santa Helena”, lembrando os bons tempos de convívio artístico. Durante a comemoração, em que estavam presentes artistas, críticos e jornalistas, o ensaísta Paulo Mendes de Almeida historiou a fraternidade e a importância do grupo. Os oito artistas do Grupo Santa Helena decidiram então editar um álbum comemorativo – hoje, peça rara – no qual cada qual marcou presença com um trabalho.

Francisco Rebolo Gonsales foi um importante pintor e gravurista brasileiro, membro e fundador do Grupo Santa Helena nascido em São Paulo em 22 de agosto de 1902  e faleceu a 10 de julho de 1980, em S. Paulo. O texto acima for publicado pela ocasião do centenário do artista (2002).