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sábado, 13 de dezembro de 2014

A CULTURA POPULAR, ALMA SUBTERRÂNEA DO POVO

Alguns acontecimentos na área das artes colocam em evidência aspectos da cultura popular brasileira, “alma subterrânea dos povos”, na definição do crítico Clarival do Prado Valadares. 
1. O primitivo José Antonio da Silva recebe encomenda da Secretaria Municipal da cultura de S. Paulo e pinta o quadro “A Marquesa de Santos indo para a Fazenda”, já colocado na sede da Secretaria, à Rua do Carmo, antiga residência de D. Domitila; 
2. No ato de entrega da tela, a antropólogo carioca Leila Coelho Frota, 39 anos, lança a obra “Mitopoética de 9 artistas brasileiros”, numa abordagem junguiana da vida e obra de artistas primitivos e populares que habitam regiões rurais do país: José Antonio da Silva (Rio Preto, SP). Julio Marins da Silva (Coelho Neto, RJ), Artur Pereira (Cachoeira do Brumado, MG), Pedro Paulo Leal (Coelho da Rocha, RJ), Jose Valentim Rosa (Belo Horizonte, MG), Maria Auxiliadora Silva (Osasco, SP), Madalena Santos Reinbolt (Vitória da Conquista, BA), G.T.O. (Divinópolis, MG). 
3. Artistas primitivos da Ilha de Bali e da América Central expõe em galerias de S. Paulo, e, os nossos, são biografados em dicionário francês. 
4. R. e R. Camargo Arte inaugura amanhã exposição de 250 ex-votos recolhidos por Franco Terranova, Gilberto Freyre, Ariano Suassuna, Jorge Amado, Clarival do Prado Valadares, Giuseppe Baccaro, Ralph Camargo, promovendo mesa redonda dia 14 sobre a temática dos ex-votos, com a presença dos críticos Clarival do Prado Valadares, Olívio Tavares de Araujo, Frederico Moraes, Walter Zanini, Fernando C. Lemos e Franco Terranova. 
Não é a primeira vez que críticos, literatos, sociólogos e antropólogos se voltam para o potencial da cultura popular brasileira, nos diversos níveis da realidade sócio cultural do País. Mas, a coincidência dos eventos citados faz prever uma tomada de posição, como pede Lélia Coelho Frota: “Depois de havermos presenciado os rigores críticos e reivindicativos de uma inteireza humana realizados pela pop-art e pelo hiperrealismo quem sabe as reservas do inconsciente propostas pela arte periférica à cultura tradicional constituirão a base onde se poderá articular, de maneira mais fértil, uma nova resposta criadora; 
Não serão essas manifestações da arte, elaboradas entre a tensão do consciente e do inconsciente, a um nível profundo, abertura para um agir integral para aquela verdadeira “adequação do ser humano à vida, de que fala Carlos Drummond de Andrade”. LEMK 

Proposta: revisão da arte popular 

O jovem marchand Ralf Camargo propõe a revisão dos caminhos da arte popular brasileira. A começar pelo ex-voto, que define segundo o Dicionário Aurélio: Ex-voto: quadro, imagem, inscrição, ou órgão de cera, madeira, etc. que se expõe numa igreja ou numa capela em comemoração de voto ou promessa cumpridos. 

Ele diz a Artes Visuais: 
- “ao nos propormos a essa exposição e ex-votos, atentamos especialmente para o caráter revisionista que percebemos em tendências as mais diversas no que toca a arte popular brasileira, já com seu processo criativo primitivista em exaurimento progressivo, fenômeno registrado mundialmente pelo excesso de repetições na exploração do filão da “arte popular-ingênua, naifs”... 

“A R e R Camargo - Arte decidiu, dentro da coerência adotada em suas mostras anteriores (arte africana e egípcia, cerâmica pré-colombiana), coerência de uma busca formal e museológica de raízes populares, assumir parcialmente a revisão do tema da arte popular brasileira. “Nessa imensa temática sobressaem os ex-votos, fruto místico de crenças, esperanças e promessas, elevando de uma forma natural e telúrica em contrapontos trejeitos acrílicos made in... 

-“Buscamos retornar às raízes da arte brasileira numa tentativa de despoluir o mercado de pseudoconceitos e pseudoculturas alienígenas, apurando e depurando propiciatoriamente à revisão do já feito, do que se faz e do que poderá fazer. 
- “Chamamos para debater conceitos e modismos, idéias e teorias, sínteses e antíteses os críticos Olívio Tavares de Araújo, Clarival do Prado Valadares, Frederico de Moraes, Walter Zanini, Fernando Lemos e Franco Terranova, dono da maior coleção de ex-votos do Brasil, e parte principal desta mostra. 
- “Convidamos também cantadores populares do Nordeste: a viva voz do povo testemunhando uma arte que se modifica para sobreviver. 

A pesquisa do ex-voto brasileiro 
Iris Gori e Sergio Barbieri, pesquisadores argentinos, estão pesquisando o ex-voto brasileiro em S. Paulo, Rio, Bahia, Ceará e outros centros de devoção popular. Expuseram no MASP, em 1975, fotos e ex-votos da Argentina e agora tem ajuda oficial (do Itamarati) para fazer o levantamento dos nossos ex-votos que esperam realizar em um ano. Propõe ainda a criação do Museu Devocional do Brasil. 
O projeto de Sergio e Iris de investigação e documentação dos ex-votos brasileiros tem estes objetivos: 
- Trabalhar sobre as devoções santas e profanas... Mostrar tipos de fé e suas manifestações; 
- Análise da necessidade do sobrenatural; 
- Estudo dos meios e sistemas de comunicação que utilizam os devotos com o sobrenatural; 
- Relações idolátricas; 
- Devoções européias e africanas: iconografia e conotações milagrosas; 
- Modificações iconográficas e milagrosas na América Latina; 
- Novas devoções americanas e brasileiras; 
- Dessacralização na representação das imagens. 

SISTEMÁTICA DE TRABALHO 
a) LEVANTAMENTO COMPLETO DE DEVOÇÕES VIGENTES OU NÃO E DA PRODUÇÃO DE EX-VOTOS: Trabalhar por zonas ou estados, levantando: - Santuários: Senhor do Bonfim, Senhor de Matosinhos, Aparecida, Padre Cícero, etc. - Igrejas: Cachoeira, Sant’Ana, da Penha, etc. - Capelas. - Cemitérios: Tambaú, Rio de Janeiro, etc. - Museus: São João Del Rei, Ouro Preto, Arte Sacra de São Paulo, etc. - Coleções particulares - Kawall, Van de Beuque, etc. - Bibliotecas particulares e nacionais. 
b) DOCUMENTAÇÃO Dentro do levantamento, será selecionado o material que corresponda às origens da arte popular: 1. Fichário técnico e bibliográfico; 2. Documentação fotográfica atual e de arquivo; 
c) ELABORAÇÃO DO MATERIAL E CONCLUSÃO 
Concretização dos objetos planejados. 
Os resultados poderão se tornar conhecidos das seguintes maneiras: 
Exposição fotográfica documentária: Consideramos que uma mostra do material levantado e documentado é uma forma eficaz der tornar conhecida e valorizar massivamente uma parte importante da cultura popular. A exposição seria apresentada em vários estados do Brasil e no exterior.
A forma: Fotografias de ex-votos, santuários, artesãos, fiéis, cerimônias, representações de figuras santas e profanas. 
Peças autênticas que serão recolhidas durante a pesquisa ou emprestadas por colecionadores e museus. Edição de um livro com texto sobre a documentação e ampla ilustração fotográfica. Seria o primeiro trabalho global que se faz sobre o tema no Brasil. 
Criação do Museu Devocional do Brasil, onde de forma orgânica e sistemática, seja exposto todo o material da pesquisa. 

Uma sábia abordagem junguiana 
Apresentando “Mitopoética de 9 artistas brasileiros - vida, verdade e obra”, de Lélia Coelho Frota (Rio, Editora Fontana), diz o crítico Clarival do Prado Valadares: 
- “Sei de Lélia Coelho Frota, nesta pesquisa, há anos. 
“Ela não assumiu o estudo da arte ínsita por atitude, ou mesmo por simpatia. Foi conduzida ao imenso território da cultura-de-base por sua formação em antropologia, em sociologia da arte, até chegar à empatia sob a qual vivencia enquanto analisa, ama enquanto disseca cada tema, cada exemplo, que somados se respondem por uma das mais avançadas pesquisas desenvolvidas no Brasil. 
“Tenho, entretanto, a suspeita de que não atingiria o resultado de uma nova visão do artista primitivo se trabalhasse, apenas, com equipamento científico. 
“O mundo está cheio de relatórios e medições de etnólogos, para problemas que continuam virgens quanto à virtualidade estética. 
“Há que se ter uma coisa a mais que o instrumento medidor e a referência confrontadora. Há que se colher a transcendência da “alma subterrânea dos povos” na malha de uma rede diáfana, e que só pode ser a poesia. 
“Por ser poeta - (não poetisa, que é pouco) - Lélia Coelho Frota é pessoa, e é o instrumento capaz dessa virtude. 
“O título de seu livro - Mitopoética de nove artistas brasileiros - partindo da locução straussiana, deixa bem às claras que seu intuito é visualizar, através da obra criativa de um submundo, aquela mensagem de ignoto, sem endereço e sem pressa de chegar. 
“Há nesse livro de Lélia, dois climas bem diferentes: o da frieza informativa para explicar a tese e a conduta - e o centro do calor humano, emanente de cada personagem. 
“A autora chama e põe em cena por um de seus nove artistas estudados, para que nos conte como é o seu mundo, a sua origem, o julgamento que faz do mundo dos outros, o porquê de seus tipos, símbolos e paisagens. 
“Nenhum artista é tratado neste livro sob o manto protetor de uma crítica senhorial, paternalista. O artista interessa por sua obra e esta faz o segundo interesse na esfera do valor cultural coletivo. Quando a pesquisadora confronta a onça do escultor Artur Pereira e o iauretê de Guimarães Rosa, ela consegue demonstrar a mesma transcendência entre a linguagem do escritor erudito e a do escultor primitivo. Não tanto para valorizar a do artista, porém para validar a do escritor. 
“O Jardim Perdido e Recuperado”, de Julio Martins da Silva, aliás artista revelado por Lélia Coelho Frota - sendo pintura, não deixa de ser um dos exemplos de simbolismo lírico de maior enternecimento. 
“Maria Auxiliadora - “Eros e erosão na pintura” - traz a contenção dramática na figura isolada ou em multidão e corresponde, no trabalho de pesquisa, uma escolha entre os diversos artistas concentrados em Embu, estudados por Lélia. 
“Surpreendente é o capítulo (verdadeiro ensaio) dedicado a “Pedro Paulo Leal: Pintor Espiritual” e ao seu filho, também pintor, Manuel Faria Leal, que a autora define, numa extraordinária síntese crítica, como pintor da... “paisagem viajante”. Poucas vezes a crítica lucrou com o subsídio junguiano na interpretação da linguagem pictórica que é eventualmente, a linguagem Dops símbolos e de toda imagem anímica. 
“Não interessou à autora confluir semelhanças entre pai e filho, mas distingui-los em seus diversos aspectos e contingências. 
“Há um capítulo muito estranho, aquele de “Madalena Santos Reinbolt escreve o mundo em seus quadros de lã”. Conta-nos a história de uma empregada doméstica, cozinheira, descoberta pintora por sua patroa, Lota Macedo Soares, e que hoje... pinta sua telas... bordando estopas com quase duas centenas de agulhas de fios de cores!
“Seus temas são lembranças de uma infância de fartura, em certa fazenda de gado e de tudo que seus pais possuíam no interior da Bahia. Lembranças com muita fartura, como a das lendas egeanas ou, para ficar mais próximo, como na história de caça dos tatus-pebas nos pés de mandioca de Graciliano. 
“A realidade que importa é a dos seus quadros de bordado-pintura, de um metabucolismo para além da memória, talvez do plano onírico. 
“O paulista, famoso pintor José Antonio da Silva, é revisitado sob o tema da descoberta e sofrimento do artista. Lélia, neste caso, aborda um exemplo significativamente explorado por diversos críticos, porém enriquece a compreensão da sua estranha pintura, tão próxima Don expressionismo subjetivo, caso tivesse origem nas mãos de alguém das elites. Neste capítulo é importante a consideração do conteúdo plástico-formal, em face da obra experiente e numerosa. A abordagem de José Antonio da Silva deve resultar em estudo mais amplo, por ser um dos poucos, além do exemplo insuperável de Djanira, que tematizou sua pintura na imaginária agrária, no campo e nos cultivos organizados sobre a qual ainda descobre espaço para fletir poesia”. “Homem: templo no centro de si mesmo” compõe a locução-título do capítulo dedicado a G.T.O. (Geraldo Teles de Oliveira), mineiro de Itapecerica, e é uma outra abordagem crítica de grande interesse. 
“Este é um dos escultores de maior originalidade, e de relevante estilo no nosso tempo brasileiro. Acaboclado, sem etnia negra aparente, apesar de mineiro e pobre. G.T.O. espanta-nos com sua escultura de maneira escavada e vazada, tendo a figura humana como módulo e múltiplo, ao modelo de determinadas esculturas tribais africanas. Com uma definitiva diferença, contudo, quanto à diversificação da figura movimentada, que na exemplaridade africana é, de modo geral, hierática. 
“O que mais importa à Lélia Coelho Frota não é a crítica formalista, fria e desnaturada. Todo seu apego está no estender a obra através do conhecimento do autor, surpreendendo-o no seu habitat, escavando a sua memória e conduzindo, desde sua incipiente razão, até a plena tradução de seus símbolos. 
“Poder-se-ia dizer que este livro provém de uma abordagem junguiana, e bem sabemos que a autora tem meios de confirmá-la com justeza e sabedoria. “Não pretende ser, nem assume, uma oposição à tese da autonomia formal da obra de arte, mas é bem o exemplo - exemplo de vigor - de que também é certo saber ao crítico cuidar de seu contemporâneo, a fim de manter o artista no território humano, e não na tribulação, na quimera ou no mistério”. 

FOLHA DE SÃO PAULO 06 DE JUNHO DE 1.976.

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