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segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Diálogo intemporal das vozes Segallianas

Alta, espigada, inteligente, crítica, 15 anos: Berta Arnaud Segall é a neta mais velha do velho Segall, Lúcia, 13 anos, Oscarzinho, 7, são seus irmãos – os três filhos de Raquel Arnaud e de Oscar, um dos filhos do pintor. Maurício, o outro filho, casado com Beatriz Toledo, tem também três filhos: Sérgio, 15 anos, Mário Lasar, 11 e Paulinho, 7. Berta está agitada, acaba de assistir ao musical “Hans Staden”, com Irina Grecco e Cazarré, no teatro de seu tio Maurício, o “São Pedro”. 

- Nenhum de nós com exceção do Paulino, vai ser um grande artista, como o vovô. O Paulinho, apesar de ter apenas 7 anos pinta casas e gentes muito bem. 

Berta não se recorda bem de Lasar, quando ele morreu tinha apenas 2 anos. “Lembro-me dele deitado, já doente, olhando para mim sem dizer nada”. Ela cursa a Escola Graduada, 2º colegial, e gosta, nestes dias, de ir ao Museu de Artes “Assis Chateaubriand” onde seu diretor, Pietro Maria Bardi, organiza uma retrospectiva excelente das obras de seu avô: “Cem pinturas de Lasar Segall”.

- Gosto da pintura de meu avô – diz Berta – gosto mesmo, não distingo nela nada de especial, nem acho melhores uns quadros que os outros. Quando crescer mais quero estudar melhor a pintura dele.

Segall redivivo 

O saguão de linhas modernas do Museu de Arte está repleto de gente importante. Berta não se assusta. Desde pequena que aquele nome- Lasar Segall – é um grande e misterioso mito familiar para ela. Carlos Lacerda, amigo velho da família, chega: 

- “Lasar tem a inspiração, a disciplina, a liberdade e o método nas mãos. É um dos grandes pintores de nossa época. Artista, ele é quase olímpico ou pelo menos intocável. Humanamente, se assim se pode dizer, ele pode ser até vulnerável. Com sua incessante indagação. Com suas agonias que ninguém jamais terá percebido”.

Oscar Segall concorda: 

Muitas vezes papai parecia um ressentido. Sentia a política e a divisão nas águas. Mas era antes um sensível, um homem afetuoso e um artista humano. Recebia a todos indistintamente em nossa casa da Vila Mariana e ajudava especialmente os jovens”. 

Com Bardi, Brecheret, Mário e Oswald, Geraldo Ferraz, Tarsila, o esguio jornalista Murilo Miranda é um dos maiores amigos de Segall. 

Depõe: 
Lasar era um humano antes de tudo. Fala a linguagem ardente do coração. Lírico, sutil, trágico, inquieto, profundo, Segall é um mundo”. 

Luiz Martins, mascando um charuto, acrescenta com entusiasmo ser Segall “precursor e mestre”. Lasar é um pintor brasileiro, um cidadão, brasileiro, um admirável condutor de energia espiritual europeia transformada em experiência brasileira. “A posição histórica de Segall na arte brasileira não pode ser disputada. Um Gauguin menos sensual e mais místico”.

Paz e guerra segallianas 

Quem chega sisudo debaixo de suas grossas sobrancelhas?

Rubem Braga: 
“Grande, monótono, forte, Segall é um pintor que ficará. Viu a mulher, vê a opressão, vê o massacre. Sua arte é mais que um grito de protesto, é uma acusação. Esse judeu não impreca desesperadamente, ele mostra. Sua arte é o dedo de um homem apontando o que vê no mundo e o que sente dentro de si mesmo doendo. E pinta sem histeria: com força, com vagar, com uma dura contenção. Sua pintura tem – coisa rara, e grande sinal de um artista – hombridade. Amando a paz da Lua ele, entretanto a vê no chão, refletida em pus e sangue humano”. 

Grande e maravilhoso rosto oval, cabelos à espanhola, puxados para trás, Tarsila concorda. Também o solene Gilberto Freyre, o solitário, chegado imprevistamente dos Apipucos. Como também o Almeida Salles e o doutoral Sergio Buarque de Holanda. A conversa cai para o campo social e ideológico. 

 Jeitão caipira, baiano, Jorge Amado diz: 
“Segall é uma trincheira. É um símbolo. Símbolo da dignidade e da irredutibilidade da arte brasileira. A alarmada quinta-coluna se levantou contra ele. A parte mais reacionária e imbecil. Na arte a liberdade luta contra o fascismo e o obscurantismo”. 

Grandalhão, sanguíneo, com sua minissaia rendada, diz Flávio de Carvalho: 
“A arte desse grande pinto foge ao abstrato mentalista para mergulhar nos problemas humanos e emotivos, exprimindo com vigor extraordinário o espírito angustioso da nossa época”. 

É Segall quem chegou 
A roda amplia-se. Luiz Ossaka está agitado, pois avisaram que o governador Natel vem mesmo inaugurar a exposição. A seu lado, Raquel Arnaud é a beleza morena que comanda os cordéis do Museu. 
O caipira Clóvis Graciano está elogiando “Progrom”.
Geraldo Ferraz, o açougueiro da antropofagia, fala da técnica de Segall uma “mestre da plástica”. Paulo Mendes de Almeida, afável, terno, é o príncipe da crítica que não tem palavras para elogiar Segall taxando-o de “pintor escafandro”. Profundo no íntimo das tintas, profundo nas telas, na dor e na grandeza humanas. 
Agora é Oswald de Andrade que aporta, com sua cara redonda infantil. Vem do Circo Piolim, conta uma piada, mas ninguém ri. Quer depor: 
“Em 1913 conheci Segall na Vila Kirial. Enquanto nessa época eu fazia um jornalzinho tumultuário, Segall realizava cronologicamente a Primeira Exposição de Arte Moderna no Brasil. Hoje só posso oferecer a Segall o meu entusiasmo”.

Dando o braço à sua mulher Jenny – nascida Klabin – elegante, com um vistoso, sobretudo, de boina, perfumado (“Pour um homme do Caron”), Lasar Segall sobe as escadas largas do museu. Abram alas todos, que ali está o trágico, lírico, bizantino, hirsuto, olímpico, sofredor, alegre, angustiado e humano mestre Lasar. Fala arrastado e grave, com sua voz de sotaque russo: 

“Não faço quadros para agradar os outros. O que importa não é agradar, é realizar, é criar... Procuro nas almas o que há de mais íntimo dentro delas – a verdade profunda das suas aspirações... Estou feliz quando estou pintando... Cada um deve ser livre para trabalhar. Para o verdadeiro artista a arte é tão importante tanto como o ar, a luz e a própria vida... Cada homem é filho desdeu tempo e a sua expressão é a expressão de seu próprio tempo... Necessitamos de arte que encerre profundos pensamentos humanos, pois sem elemento humano a forma tornar-se-ia meramente especulativa... Aluta dos artistas deve continuar sempre, com uma obstinação indomável, no caminho da perfeição inatingível, para a tentativa da realização dos superiores destinos do Homem”. 

E o velho, nada soturno e jovial Segall, recém-chegado de outros estágios, afaga carinhosamente a netinha. Para Berta, ele deixava de ser, naquele momento, ali no Trianon, junto à roda intemporal que se desfez, o mito sagrado familiar. Era, sim, o artista genial de nosso tempo. 

SONETO A LASAR 
De inescrutavelmente no que pintas 
Como num amplo espaço de agonias, 
Imarcescível música de tintas 
A arder na lucidez das coisas frias – 

Tão patéticas sois, tão sonolentas, 
Cores que o meu olhar mortificais 
Entre verdes crestados e cinzentas 
Ferrugens no prelúdio dos metais! 

Que segredo recobre a velha pátina - 
Por onde a luz se filtra quase tímida – 
Do espaço silencioso que esculpiste 

Para pintar sem gritos de escarlate 
Na profunda revolta contra o crime 
Daqueles que fizeram a vida triste?! 
Rio, 29-9-1943 – VINÍCIUS DE MORAIS 

NOTÍCIA DE SEGALL 
Segall desaparecido 
Ressurge no preto-e-branco 
Da linha pura lacônica exata 
Conta a gravidade de ser 
Perdido 
Numa aventura sem explicação 
Se não existisse o amor 
 Antecâmara da piedade 
E a poesia 
Erva renitente no ar sem raiz 
Poesia que elimina o som 
E volta à linha 
Como as criaturas voltam a si mesmas 
Na visão de Segall perspectivo-nostálgico. 
A seu gesto 
A madeira o cobre o ácido revelam 
Entre sulcos aquele
Que conduz à negação do labirinto 
Ao essencial das coisas 
Cicatriz Relâmpago 
Tristeza depositada no quarto 
De velório 
No florir da moça 
No estar sentado 
No ver 
No simples ver o visto todo dia
Em seu coração de rude e mel 
No objeto exposto 
No desespero contido 
Filtrado 
Pacificado 
Sobre a dor bíblica intemporal 
E a dor contemporânea 
Que podemos pegar de tão doendo 
E te pressentir a doçura do conhecimento 
Solitário. 
Somos chamados 
A compreender e a amar num ato 
Único
As formas as gentes os animais retirados da noite 
Para a festa de serenidade melancólica 
No coração-estúdio de Lasar Segall 
Aberto em confissão 
Aos murmúrios da terra.

Carlos Drummond de Andrade/ Rio/1966

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