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sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

GRACIANO

A arte brasileira está valorizando como as ações no mercado de valores, diz o caipirão simpático de Araras. Caladão contemplativo da Barra do Saí, mestre da pintura humanística, figurante da Família Artística Paulista

Introspectivo, andarilho parisiense, amigão dos amigos do Pepe’s, do Clubinho e do bar do Museu de Arte Moderna, diretor dinâmico da Pinacoteca do Estado. Foi difícil alcançar o antiloquaz Clóvis Graciano na cidade-grande, mas o grande plástico não se furta ao diálogo com “A Tribuna”. Sorve devagar seu legítimo uísque rótulo preto e completa: 

Ela, a arte, vem subindo. Está valorizando pintores que devem ser valorizados pelo seu valor. Se se paga hoje 70 mil por um Di Cavalcanti, é que essa tela de Di vale esse preço: Portinari já teve um quadro vendido por 120 mil. Então, esse quadro “valia” esse preço; o comércio em arte é chato, nada poético, mas válido. E o artista só tem a se valorizar com, isso, se é realmente valorizável. 

 Mas as tendências... 

“... todas as tendências, meu caro, - corta Graciano – são autênticas, se existem, pois a pintura é o resultado do meio social ambiente. Agora, se elas vão subsistir, vão focar, ou não, isso não compete a nós julgarmos – seja ela primitiva, figurativa, abstrata, mágica, surrealista, concreta ou cinética... E a geração que virá depois de nós é que vai julgar-nos. Daí, também a importância da formação cultural e artística dos jovens de hoje.

Graciano está oferecendo, com sua mulher aparecida (nascida em Araúja, Portugal), mestra da grande cozinha, aliás, um jantar requintado em sua casa. As paredes da entrada, salas, corredores, todas ocupadas com ex-votos e centenas de quadros arrumados a olho – e só pintura brasileira. Em sua casa de praia do Saí, só tem primitivos, gênero que prestigia. Embora abomine os imitadores ou “exploradores dos primitivos”. Tem dois filhos: Paulo Sérgio, que foi assessor de Delfim Neto e hoje reside em Nova Iorque, dirigindo filiar brasileira de companhia de café solúvel e José Roberto, arquiteto. Ambos casados. Paulo Sérgio e Marília, ela neta de Oswald de Andrade, já lhe deram uma netinha. Mariana. Clóvis brinca: 

Essa menina vai virar notícia. É neta de Oswald de Andrade e Clóvis Graciano... 

Como são suas pescarias no litoral?

Antes eu pescava com isca, etc. Depois passei a apenas colocar o anzol na água, sem isca, para ficar matutando... Agora, estou descobrindo verdadeiramente o mar. Vou ao litoral nos fins de semana, mas não só para descansar, tomar sol e caipirinhas, como para pintar minhas marinhas. Ele diz “minhas marinhas” – que são só seis por enquanto – com gosto. Presentemente estão expostas na “Cosme Velho” e a esta altura vendidas a bom preço. 


Há 12 anos vejo o mar, só agora entendo o mar”, diz Graciano, “pintor humanista” no dizer de seus amigos, retratador de figuras do povo, gente humilde, músicos, artistas circenses, vendedores de passarinhos. São 22 horas e Graciano está inteiro. Acordou às quatro da manhã, foi para o ateliê, junto ao seu apartamento, no bairro nobre de Higienópolis. Pintou até às sete e meia – hora do café e da leitura dos jornais que assina e lê, cuidadosamente. “Depois fui tocando o dia. Estive em Itu para tratar duma mostra da Pinacoteca. Voltei. Estive no Pepe’s, onde vou religiosamente marcar o ponto com os amigos: Almeida Salles, Delmiro, Américo Marques da Costa. Ronaldo Cunha Bueno. Lívio Xavier. Aldemir Martins e outros. 

Acho muito importante esse papo diário, para a gente se inteirar das fofocas, dos fatos novos... Não acredito em artista segregado. 

Mas a hora do almoço é hora da família e às 13,30 h estava em casa. Comi carne seca desfiada – que adoro – com farofa. Ontem, um camarão ensopado que estava uma delícia, e lá se foi a minha dieta de sal e de gorduras. Assim vou driblando meu regime, ao qual sou absolutamente infiel, enquanto espero emagrecer para encomendar uma roupa nova... 

Depois, o descanso de 30 minutos. Às duas e meia, estava no casarão – “fin de siècle”? “barroco”? “belle époque”? “romano”? – da Pinacoteca, que dirige. Ali, faz questão de dizer que completa a obra de restauração iniciada por Delmiro Gonçalves, no /governo Abreu Sodré. 

“A verdade é essa, e a verdade tem de ser dita sempre. 

Tenciona recompor o acervo de três mil e duzentas telas, adicionando novos quadros de pintores contemporâneos. Vai levar a arte a o povo, ao Interior, aos bairros, às fábricas. “A museologia mudou muito de uns tempos para cá. Se o povo não vai à arte, a arte deve ir ao povo” – diz num entusiasmo tão jovem para o maduro diretor de 64 anos. Fala de Almeida Júnior, que “entendeu o nacionalismo” dos méritos de Portinari e de Segall, de Tarsila, “nossa grande pintora” e que, inclusive, dirigia a Pinacoteca quando lead oi fechada em 1930, pela intervenção federal. 

Entre cinco e seis horas volto à casa, tomo uns drinques, leio os jornais do Rio, espero os convidados para jantar, sempre amigos da família, críticos, pintora, irmãos. Gosto de comer então um único prato, forte, e tomar vinhos franceses, o “côte du Rohne”, tinto, ou “Roger Danjou”, rose. O uísque é geralmente de rótulo preto. 

Os tempos de Paris influíram em seu comportamento, em sua pintura? 

Graciano ganhou o prêmio de viagem ao estrangeiro do Salão Nacional de Belas-Artes, em 1948. Ficou dois anos em Paris. No primeiro, só viajando: pela França, Itália, Bélgica, Holanda. 

Claro. Foi um tempo em que adquiri vivência, sem perder meus ares de caipira da roça... Conheci pintores e intelectuais, fiz amigos para toda a vida. Henry Miller, Jorge Amado, Scliar, Novaes Teixeira, Ferreira de Castro; fiz um curso no Louvre. Conheci em seu todo a arte contemporânea e a problemática de nossa época. 

O Flautista

Quantas telas já pintou? 

Sei lá. Pintei e desenhei a vida inteira, desde os tempos de mocinho, quando esta telegrafista da Sorocabana... 

Prefere o desenho ou a pintura? 

Os dois. Mas o desenho é a minha verdadeira linguagem. Comecei com o desenho e nunca o abandonei. Deixei um pouco as ilustrações de livros por tomar muito tempo. Obrigado a seguir o roteiro literário o artista se perde. Por isso deixei de ilustrar. 

Graciano recorda os livros de Jorge Amado que ilustrou inclusive as capas. Hoje, acha que não teria mais sentido ilustrar reedições. Jorge Amado tem convidado para isso a Caribê – que vive na Bahia – e “sente” mais as ilustrações além de jovens pintores locais, no que concorda inteiramente. 

E o mural, por que o deixou? 

Não o deixei. Já fiz mais de 120 em grandes prédios e em edifícios conhecidos. Estudei muito a arte muralista, e as críticas que me fazem, de retratar pessoas em certos murais, não procede. Já se fazia isso na idade média. Esses apressados criticam as figuras de olhos claros dos bandeirantes de certo painel que fiz, esquecendo que estudei i assunto a fundo. Mas os elogios foram muito maiores. E respondo a pergunta: antes, era mais um pintos de painéis, de murais e passei a me dedicar quase exclusivamente à pintura. Mas no painel me realizei muitas vezes. Dei agilidade ao meu desempenho, suas técnicas de execução. 

Graciano retorna à França. Meu negócio é a figura, que nunca abandonei, confessa. Conta passagens da viagem de navio, histórias dos filhos, então meninos, dos tempos do “Hotel Venezia”, das línguas que aprendeu: inglês, francês, espanhol, italiano. Ele que é filho de um imigrante, que se fixou no Paraná e que morreu antes do artista nascer, fala de seu avô, de Roma, primo do marechal Gracione, que conquistou a parte da África para Mussolini. O telefone toca, a campainha soa, os amigos chegam. Graciano é uma figura caipira e nobre, simples e refinada, calada e humana, quieta e solícita, enfim, um “corujão” como lhe chamam somente os íntimos. Atende. É Francisco Luís Almeida Salles, um de seus melhores amigos. 

Mesmo quieto comunica-se. Mais por seus atos que por suas palavras. Seus gestos são sempre certos, carregados de doações, de bondade, de cordialidade e de seu humanismo exemplar”

Graciano, o sucesso o atrai? 

Não. Nunca me atraiu. Sou o que sou. Fiz e faço o que sempre quero. 

Clovis Graciano deita-se cedo não havendo convidados em casa. Nas paredes, suas telas, o tocador de flauta, os bailarinos e os bêbados e o menino listrado com o pistão estourando de arrebentar. Descansa, então, o menino Clóvis Graciano, que tomava o trem em sua terra para ver o circo do Piolim, em Jundiaí. O jovem adolescente, corneteiro do Batalhão de Escoteiros de Casa Branca, nos idos de 20-22. O molequinho, amigo dos músicos e das serestas, “das tristes bandinhas improvisadas do interior”, como disse Rubem Braga. 26/9/71.

Três figuras (guache)


CLÓVIS GRACIANO Nasceu em Araras (SP) e passou a infância na cidade de Leme, onde fez o curso primário, ao mesmo tempo em que era picador de carvão numa oficina, passando depois a ajudante de pintor de troles e carroças. 1927 – Entra para a Estrada de Ferro sorocabana, como pintor ambulante de postes, porteiras e tabuletas, morando num vagão que percorreu quase todas as estações daquela via férrea. 1930 – Começa a desenhar e, através dos jornais e revistas estrangeiras, põe-se a par do movimento de renovação artística. Nesse mesmo ano, inscreve-se num concurso para cargo público federal, que se realiza em Goiás (antiga capital do estado de Goiás); é aprovado e nomeado para S. Paulo, vindo a ser demitido alguns anos depois, por abandono do emprego. 

1934/1935 – Faz suas primeiras pinturas a aquarela e a óleo. Frequenta, então, o ateliê do pintor Valdemar da Costa e o curso livre de desenho da Escola Paulista de Belas Artes. 1937 – Instala-se no Edifício Santa Helena, juntamente com Rebolo, Bonadei, Volpi, Pennacchi, Rosa, Martins, Zaninni e Rissotti, constituindo-se no mais tarde chamado "Grupo Santa Helena”, que trabalhou e movimentou bastante o meio artístico da Capital Nesse mesmo ano, expõe seus quadros pela primeira vez, no III Salão do Sindicato dos Artistas Plásticos e no I Salão da Família Artística Paulista, da qual foi um dos fundadores e seu terceiro e último presidente. Daí em diante, expõe em quase todos os salões coletivos de São Paulo, do rio de Janeiro e de outras cidades importantes do país. 1942 – 1º prêmio no concurso de desenho promovido pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em São Paulo. Obteve, também, Menção Honrosa no II Salão Oficial de Porto Alegre. 1947 – Conquista o 1º prêmio no Concurso de cenários e Vestimentas para Teatro, promovido pelo Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda, de São Paulo. 1948 – Conquista o “Premio de Viagem ao Exterior”, do Salão Nacional do Rio de Janeiro e, em 1949, segue para a Europa, regressando em 1951. Além das exposições em várias cidades do Brasil, participou, no exterior, de exposições em Paris, Londres, Moscou, Praga, Varsóvia, Buenos Aires, Montevideo, Santiago e Viña del Mar. Dedicou-se muito tempo à cenografia e costumes para teatro e balé, trabalhando para o Grupo de Teatro Experimental, Grupo Universitário e Teatro e Teatro Brasileiro de Comédia, executando decorações e vestimentas para peças de Gil Vicente, Molière, Shakespeare, Tennesse Williams, Alfredo Mesquita, Mário Nême e Abílio Pereira de Almeida. A partir de 1950, dedica-se muito também à pintura mural, executando em São Paulo e outras cidades cerca de 120 painéis, figurando em muitos deles temas da história de São Paulo, como é o caso dos que figuram no Edifício do jornal “O Estado de São Paulo”, na entrada da Sede Social do Jóquei clube, em vários estabelecimentos bancários, bem como em alguns recentes (1968-69), na Avenida Rubem Berta e no Palácio Anchieta, da Câmara Municipal de São Paulo. 

A Família Artística Paulista 
...E eram da família: Alfredo Volpi, Rebolo Gonzales, Fúlvio Pennachi, Humberto Rosa, Aldo Bonadei, Mário Zanini, Paulo Rossi Osir, Manoel Martins, Victorio Gobbis, Joaquim Figueira, Waldemar da Costa, Clóvis Graciano, Hugo Adami e Arthur Krug... Participar desse grupo era mais uma questão de solidariedade no trabalho do que de especulações “estéticas”... (FLÁVIO MOTTA) 

... Nada tinha na intenção de revolucionário. Nem se poderia, tampouco, rotular de passadista. Pensava em realizar uma arte contemporânea, que se prevalecesse das lições do passado, ao invés de com ele romper. (PAULO MENDES DE ALMEIDA)

... Contemporaneamente, vários artistas de origem proletária e autodidatas de formação começavam a dura escalada. Alguns moravam no bairro do Cambuci, ao longo do muro das fábricas, distantes dos grupos e das rodas intelectuais que haviam promovido a revolução cultural, e que pertenciam a outros estratos sociais. (ARACI AMARAL – WALTER ZANINI) 

... Clóvis Graciano vem do grupo de pintores, que formou o núcleo principal e característico da Família Artística Paulista... Na descrição dos valores significativos da família, eu distingo dois elementos principais: os assuntos e uma consciência artesanal levando a uma técnica imperativa e até dogmática... Esta aspiração a elevar o nível de vida e a subir de classe é que marcou a expressão estética da Família Artística Paulista Clóvis Graciano é um pintor consciente, de uma coragem excepcional, de personalidade marcante... Sabe que a arte tem de servir e felizmente está com as coisas boas. Numa consciência. Tanto numa consciência pessoal como uma consciência de classe. E numa consciência de luta. Ele é o mais harmonioso consciente dos pintores da escola de São Paulo. – MÁRIO DE ANDRADE.

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