CARLOS A. C. LEMOS
Premiado, intuitivo, mil artes
Talvez eu seja mesmo, mais que um arquiteto ou um pintor, um artesão gráfico. Não pinto para vender ou ganhar fama, mas por puro prazer. Será que eu sou apenas um intuitivo romântico?
Carlos Lemos ganhou ultimamente prêmios importantes de pintura – ao lado de Lothar Charoux e Antônio Henrique do Amaral, é o artista mais premiado nos últimos salões de arte moderna. Lançou, com Eduardo Corona, o único Dicionário de Arquitetura Brasileira existente no país: 6 anos de trabalho, 6500 verbetes. Estuda a evolução da habitação popular no Brasil e prepara sua tese de doutorado para defender na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – onde é professor – até o final do ano. Escreveu três estudos: “A imaginária popular paulista”, “A casa colonial em São Paulo”, “Notas sobre a arquitetura tradicional Paulista”. Forma um loteamento de alto nível na Praia Vermelha da Fortaleza em Ubatuba. Projeta obras em São Paulo – conhecido como um dos arquitetos mais disputados, desde que, recém-formado, dirigiu o escritório de Oscar Niemeyer. Defende, como perito-assessor do CONDEPHAT, nossos monumentos históricos, as edificações antigas, os restos coloniais interior afora. Pinta, nos fins de semana, em seu pequeno feudo rural de Ibiúna, onde é o polarizador de numeroso grupo de amigos do Mirim-Açú. Agora em seu Volks chega em casa, no Jardim Paulistano, junto à Praça Guilherme Kawall, e já vai dizendo à Celina que o programa à noite é ir à Jundiaí, pois o prefeito avisou-o para receber seu mais recente prêmio. Os anteriores foram estes: “Menção Honrosa”, no Salão Paulista de Arte Contemporânea (1970); “Prêmio Aquisição” da Bienal de Santos (1971); Prêmio de Pintura, “Conselho Estadual de Cultura”, do Salão Paulista de Arte Contemporânea (1971) e Prêmio “Cidade de Jundiaí”, do II Encontro de Arte de Jundiaí (1972). A casa não é grande, mas acolhe bem, tem todos os pertences e as artes de um arquiteto-artista sensível e que viaja muito. Senta-se na poltrona de couro. Moreno, forte, saudável, simpático, quase que escondendo sob os óculos de meias-lentes, rosto queimado de sol, os bastos cabelos negros, a timidez aparente.
Estação de Trem - Mairinque/SP |
Carlos Lemos, quem é você?
– Sou Carlos Alberto Cerqueira Lemos, mas gosto mesmo que me chamem de Carlos Lemos, embora possa haver confusão, com outros do mesmo nome. Nasci em São Paulo, em 2 de junho de 1925, na maternidade da Rua Frei Caneca. Meu pai é paulista, gente de Iguape e de Guaratinguetá – minha mãe é mineira, de velhos tronco paulistas de tão decantados quatrocentos anos, cheios de galhos negros, eclesiásticos e judaizantes – Os Cerqueira Leite descendem de um cristão novo, Mendes da Costa. Fiz o curso primário em Sorocaba – só o primeiro e o segundo ano – já fui prô admissão e entrei no ginásio. Fiz o Ginásio do Estado do Parque D. Pedro. Naquele tempo, 1939 e a942, a melhor escola que tínhamos em São Paulo. Depois, Faculdade de Arquitetura Mackenzie, onde fui aluno medíocre – trabalhava fora, quase não ia à escola – nunca comprei um livro sequer, e tampouco um caderno. E como nunca colei em minha vida, considero o meu curso de graduação um mistério total. Só sei que me formei em Arquitetura e já com serviços de importância – logo depois de trabalhar, ainda como estudante, com Bratke, comecei a trabalhar por conta própria e no quinto ano estava fazendo o projeto do Teatro Maria Della Costa. Depois de formado, trabalhei um ano só em meu escritório e no ano seguinte, 1952, fui tomar contado escritório do Oscar Niemeyer em São Paulo. Nessa altura já estava casado com Celina, minha amiga de infância, que já possuía es alturinha de hoje – no dia do casamento parecia que ia fazer a primeira comunhão.
A filhinha de Celina e Carlos, Maria Isabel, está pronta para ir à escola, em seu uniformezinho azul e branco do Clube Pinheiros. Como em todos os dias, refuga, faz charminho, não quer ir. Celina e Carlos falam, usam de recursos que os livros não ensinam; afinal Maria Isabel se dispõe a sair para a escola.
– Como concilia as atividades de pintor e de arquiteto?
– Engraçado, não me julgo nem pintor e nem arquiteto, não sei explicar bem. Eu gosto é de criar, de improvisar. Poderia ser escultor, ou poeta. Ou musico. Gosto de música – só pinto ouvindo música, desde Bach, Mozart, até Miles Davis ou Thelonious Monk ou Charles Mingus. Gosto de criar. Quando estou projetando, estou imaginando os espaços internos já compostos, ordenados, com suas cores e vou divagando pela arquitetura de interiores afora e quase nunca posso executar aquilo que imagino. Não faz mal, porque eu já tive o prazer de imaginar. Pra minha obra de arte mais vale pelo prazer que me causa ou pelo prazer que possa causar a terceiros. . Tanto que não tenho quadros meus em casa. Eles, depois de terminados, estão mortos. O prazer de pintá-lo é quase que sexual – há prazer na arte de pintar. Há uma fuga. O subconsciente se exprime e daí o fato de eu não saber justificar plenamente coisas que desenho – o porquê de certos pormenores. Acho curiosa a posição de terreiros querendo “interpretar” quadros. E, no entanto, tenho ciúmes deles. Não gosto de dar quadros aquém não gosta muito, muito mesmo, de pintura. A venda de quadros já é outra coisa: a pessoa, comprando, está provando que gostou principalmente agora em que se procura fazer investimentos através de obras de arte. Como eu não tenho nome nem sou consagrado, compreendo que quem compra quadro meu está comprando porque gosta e não está comprando assinatura.
As salas funcionais, de estar e de jantar ligadas num só ambiente extremamente agradável, santos de barro (imagens paulistas) em estantes apropriadas – mais de 100, toda a imaginária popular paulista do século XVII ao XIX – vasos de vidro, pedras, cerâmicas, artesanato, uma bela cerâmica de Picasso, gravuras e pinturas – “só coisa boa” – de Artur Luiz Piza, Di Cavalcanti (com dedicatória), Maria Leontina, Bonadei, Domingos Toledo Piza (“esse é um dos nossos pintores históricos”), Volpi, Milton Dacosta, Aldemir Martins, Ismael Nery, Antonio Henrique do Amaral, Tomás Ianelli (grande, dominando toda uma parede branca), Goeldi, Portinari (desenho), Waldemar da Costa, Lívio Abramo, Mick Carnicelli (“filho de um alfaiate, um pintor importante e esquecido”). Carlos tem a calma de sempre, recostado à poltrona. Celina já traz à mesa a galinha de cabidela, a pimenta baiana, a couve de Ibiúna, a farofa e outros condimentos trazidos de Diamantina. O casal viaja muito e as descobertas – artísticas, folclóricas, gastronômicas, outras diversas – são profusamente aproveitadas. Carlos come bem, toma seu vinho diário, todos os dias traz gente nova, ou velhos amigos, que lhe disputam as preferência, para almoçar.
– Como vejo a arte de hoje? Bem, o Brasil é uma colcha de retalhos e como país em desenvolvimento possui, ao mesmo tempo, em seu vasto território, os mais variados estágios culturais e, nesse aspecto, a cidade de São Paulo é um mostruário completo do Brasil. Aqui coabitam primitivos do Nordeste, acadêmicos herdeiros de Pedro Alexandrino e Oscar Pereira da Silva, estrangeiros praticantes de refinada arte oriental, modernos de todas as categorias, desde os improvisados, os intuitivos, os de talento sem explicação até os frios racionalistas filhos da Bauhaus. Evidentemente, dentro dessa mistura desordenada de artistas, dentro de cada uma dessas faixas, existem as pessoas sensíveis, capazes de emocionar, enfim, capacitadas a fazer arte.
Carlos diz que, sem dúvida, em São Paulo e no Rio há uma ascensão em termos de arte, abertura “antes muito difícil”.
– É lógico, que há quem faça arte, ou pretende fazer arte, com o fito de vender, de comercializar um produto como qualquer outro. Isso é comum no mundo inteiro, desde o Embu, aos domingos, até a Place du Têatre, em Paris. Mas as nossas escolas e alguns mestres, como o veterano Waldemar da Costa e os jovens dos grupos de José Rezende, Nietsche, Donato Ferrari, Wesley Duke Lee e tantos outros, estão procurando cada vez mais, levantar a arte de nossa juventude, até há pouco tempo, muitíssimo mal orientada, dispersando e desperdiçando valores.
– Como vê a Bienal, hoje em dia?
– A gente sempre diz que a Bienal deve ser reformulada. Eu pessoalmente julgo ser a Bienal irreformulável: ou ela será extinta ou continuará na mesma, embora possa usar de mil disfarces. Será sempre uma grande feira, ou exposição competitiva entre países, em que está implícita, antes de tudo, a política. Viraram e mexeram Bienal de Veneza – ela mudou alguma coisa? A premiação extinta é um fato irrelevante. A Bienal deve ser encarada como, formalmente, um grande salão acadêmico em que todos vão se mostrar, depois de referendados pelos seus governos. Ela absolutamente não é um espelho fiel da arte que se procura fazer no mundo, embora tente sê-lo. Em todo caso, há um saldo positivo, porque, sob o ponto de vista didático, um ou outro aspecto interessa aos estudiosos ou artistas. Numa Bienal é uma determinada legação japonesa que nos traz novidades, noutra é a tapeçaria Iugoslávia que atrai, outras vezes é a França ou os Estados Unidos. Em outras, nada interessa em especial, como nesta última.
Ele volta a falar dos jovens que procuram os caminhos de arte, e agora encontram mais oportunidades, e mesmo muitas galerias abrem as portas para suas experiências: Ralf Camargo, Biággio Mota, as lojas de arte aplicada, múltipla, interdesign, etc. Acha os leilões uma forma de comércio como outra qualquer, só que, como nos sebos, muitas vezes se acha obras raras entre a mediocridade – “e, com isso, se elevam os preços de quadros medíocres”. A arte cinética, a arteônica, etc., para Carlos Lemos – que agora já saboreia um doce caipira, falando depressa e com jeito que lembra seus recônditos interioranos – são, a ser ver, artes respeitabilíssimas praticada por gente sensível. “Toda manifestação artística, é óbvio, é lícita e respeitável. No entanto, não sinto vontade e nem curiosidade a respeito delas”. Vai confessando, Celina confirma:
–... Não se esqueça de que sou um intuitivo, avesso a racionalismos, tecnicismos e tudo que seja cerebral ou necessite de terceiros para ser executado. Chega a arquitetura cujos resultados práticos diluem a concepção inicial. Talvez isso seja uma reação, quem sabe. Pra mim, a arte tem que ser feita á mão, e ouvindo música.
Carlos diz que vive bem, correndo muito, vê obras em andamento, dá aulas na FAU, prepara uma tese, redige pareceres sobre monumentos históricos a serem tombados pelo CONDEPHAT, pinta em Ibiúna, recebe e frequenta mil amigos p entre os quais destaca seu fraterno companheiro de há 25 anos e colega de pintura Aldemir Martins – lê jornais, revistas, livros de sua especialidade, o Dicionário vendendo bem, ovinho diário... Os seus irmãos Maria Teresa e Fernando se projetando com, respectivamente, suas tapeçarias e colagens. Não sabe fazer um juízo justo, ou pelo menos dizer uma frase exata sobre ambos, os filhos também do velho pai Avelino e da mãe Júnia. “Como eu, os dois são intuitivos e autodidatas, somos três artífices”, diz Carlos Lemos.
A “Formiguinha” de Celina aguarda nasala o cafezinho cheiroso. Vai ao telefone agora, convida amigos para uma “pizza” que fará na próxima semana, ali no forninho de roça no quintal da casa. Carlos é pizzaiolo também, afora as mil –artes em que é mestre.
20/8/72.
O júri do IV Salão Paulista de Arte Contemporânea, presidido por Paulo Mendes de Almeida escolheu “Figura III”, pintura do paulista Carlos Lemos como o melhor trabalho, entre os apresentados e lhe concedeu o prêmio “Governador do Estado”, no valor de 17 mil cruzeiros. As atividades de Carlos Lemos como arquiteto, são mais conhecidas do que seu trabalho como pintor. Com 47 anos, é formado em arquitetura há quase vinte. Lemos estuda, há alguns anos, a evolução da habitação popular no Brasil, e é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. O prêmio do IV Salão de Arte contemporânea, começou na pintura há poucos anos, trabalhando nos fins de semana, ao som de música e fazendo o que ele chama de “uma coisa intuitiva, avessa a racionalismos, tecnicismos e tudo o que seja cerebral”. Assim mesmo, conseguiu ser um dos artistas mais premiados nos últimos anos em São Paulo. (O Estado de S. Paulo – 9/11/72).
Um construtivo poético
... – A pintura de Carlos Lemos ressente-se de uma leitura arquitetônica de Paul Klee, embora tenha sido estranhas ao pintor as arquiteturas do grande criador suíço, um dos mais fecundantes artistas deste século. Nem a influência, se houvesse, invalidaria o trabalho de Carlos Lemos, pela procura e pela individualidade que ele carreia consigo: embora sem muita unidade há uma sequência... A sequência é estabelecida por uma orientação geral e fundamental: um construtivo que não abandona o teor poético... Um artista como Carlos Lemos não necessita de recorrer à pauta da colagem, nem às diversões surrealistas. Com uma evocação de trecho citadino, com sua construção, seu sentido plástico, suas relações às vezes inusitadas, ele sabe aplicar a pintura aos seus retângulos pequenos e silenciosos. – GERALDO FERRAZ (A Tribuna – 1966).
...Carlos Lemos apartou para esses fins-de-semana alguns alqueires bucólicos de superfície híbrida e de atmosfera onírica onde, voltando à infância, armou castelos medievais em margens potamográficas e marítimas, com dragões, pontes levadiças, almenaras, luas e pupilas de prisioneiros. Assim, as suas telas são ainda de cavalete, e o seu repertório é ainda romântico, mas propositalmente como em certos estados de alma de Miró e Klee. Aí é que está a sua especialidade voluntariamente empírica e mística. Diante desses trechos. – JOSÉ GERALDO VIEIRA (Folha de São Paulo – 1967).
... Aqui são paisagens equilibrados e convincentes em que as cores algo soturnas, mas bem combinadas, são balançadas pelo espírito menos austero do desenho. Finalmente na sala menor da galeria encontram-se quatro pequenos quadros, de ns. 11 a 14, nos quais a pesquisa do comportamento do branco dominante em face dos reduzidos retalhos de cor que o enfrentam, foi bem sucedida. Todos os quatro estão realizados. – ARNALDO PEDROSO D’HORTA (Jornal da Tarde – 1967)
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