– Não sou primitiva. Não temos primitivos. O primitivo em arte acabou. O mundo das informações, a era das comunicações, polui a arte primitiva autêntica. Hoje, até nossos índios do Amazonas estão atacados de civilização por todos os lados... O primitivo, pois, como um ser sensível, em estado de vocação natural pura, não existe mais. Pode haver, sim, primitivista ou “primitivos”, mas isso é outra questão.
Pai calabrês, de origem humilde, paulistana do Brás, Iracema é hoje citada pelo crítico francês Anatol Jacovski entre os oito maiores pintores “naifs” do mundo. Suas exposições anuais na GAlerie Seraphine, de Paris, puxadas ao embaixador Lyra Tavares, presente o “grand monde” parisiense, são um sucesso de estação. No seu mundo de arte bruta, popular, ingênua, “naive”, primitivista da Vila Clementino, ao lado do marido jornalista, ela chama a atenção (em francês) de sua filha Clarina. Afaga seus cachorrinhos “Alexim” e “twist”, de ilustre estirpe, filho de um cachorro de Di Cavalcanti e de uma cadela de Maria Della Costa.
– Primitivos autênticos foram, por exemplo, os pintores rupestres, que faziam arte pura nas cavernas, longe de quaisquer contatos com o mundo de fora. Já imaginou esses que se dizem primitivos, expositores nas ruas e nas praças, o mundo de registros que captam e assimilam, dos jornais e rádios, da televisão e dos cartazes, dos “happenings” urbanos?
– Qual a característica da sua arte “naive”, ou, melhor, do pintor “naive”?
– É a pintura pura. É a pintura interior da alma. É a pintura tropical ingênua, autêntica. O pintor “naif” não precisa ser servil, anedótico, drogado, trôpego, senil, para fazer a sua arte de sonhos e de fantasias, de recordações da infância, tocando muitas vezes o mágico e ao fantástico.
Será por isso que Iracema “salta de flor em flor, de pássaro em pássaro, de lago em lago”, como a descreveu Murilo Mendes, ao apresenta-la numa exposição em Roma? O poeta se fascinava com os azuis, verdes e alaranjados de Iracema, “seus vermelhos inroubáveis”. Iracema nesse ponto define-se e à sua arte:
– Pinto a natureza pura para fugir ao mundo ruim, para fugir à própria vida. Pinto por uma necessidade neurovegetativa. Se paro de pintar, sofro, destruo, não vivo. Sou de Aquário e, mais que tudo na vida, vivo apaixonadamente da minha arte.
Ágil, vibrátil, irrequieta, impulsiva, nervosa, elétrica, Iracema é um pequeno computador que não pára. Para formar o Museu do Sol, Iracema alugou um barracão amplo, ao lado de sua casa. Ali estão permanentemente expostos os “naifs”, e há debates, vendas de telas e sua promoção, etc. Iracema é então, não apenas a princesa tropical dos “naifs”, mas sua embaixadora permanente e ativa. Ela se orgulha dessa aproximação com as “almas irmãs”, os “naifs”.
Geraldo Ferraz é vizinho de Iracema no Guarujá e velho amigo dela e de Guy Arditi.
Depõe:
– Indiscutivelmente, hoje, é Iracema uma pintora qualificada num plano que ousarei chamar feérico – não ingênua, não primitiva, em meu entender, pois que aqui as qualificações citadas servem a quem gagueja. E Iracema possui uma linguagem própria, límpida, o que era de esperar, dados os seus inícios, que mais do que ninguém testemunhei. Essa pintura é feérica no que condiciona a inventividade de imaginação, de domínio pleno da ordenação do milagre, em seus canteiros floridos, em sua paisagem tocada pela graça, enxameada de borboletas e de aves.
Iracema:
– Sou apenas uma artista, mas acho que o homem, nesta era tecnológica ameaçadora, deve unicamente crer em si mesmo, em seu interior... O que será de nós se no futuro até as folhas das árvores forem de matéria plástica?... Sou favorável aos hippies, não creio que nada bem comportado valha alguma coisa... Só a agressividade, o lirismo, a contestação não-violenta, tem sentido hoje em dia... Sou sempre fiel à única lei que acho inviolável: não demolir o próximo e isto vai desde não atirar cigarros da janela até recusar a vida pré-propaganda... Os pintores “naifs” não abrem nem encerram um ciclo novo: nós somos a própria permanência do homem diante do seu mundo e da natureza, uma recordação do Éden transposta para a cor e a forma. Os “naifs”, quer se perceba ou não, são personalidades sensitivas excepcionais, obcecadas por seu mundo não poluído interior, infantil, feérico, onírico, alucinante, povoado de magias poéticas e purezas inocentes.
MUSEU DO SOL
O seu majestoso Museu do Sol, projeto ousado – um museu de 400 metros quadrados que abriga arte “naive” daqui e de fora. É os segundo do mundo, no gênero, e corresponde ao museu francês de Laval. Ali está Iracema, reunida aos seus companheiros “naifs” brasileiros, às mestras Elisa da Silveira e Gruben, José Inácio (seu irmão), o cearense Chico da Silva, a carioca Elza de Souza, a Edelweiss, ao caboclo José Antonio da Silva e a Eudydice Bressane, “naif” ilustrativa.
Iracema Ardit está realizando seu antigo sonho. Reuniu mais de 100 telas de primitivos e ingênuos, de sua coleção particular, no Museu do Sol, na Vila Clementino, em São Paulo. A coleção, informa, inclusive as telas de primitivos estrangeiros, não tem preço. As obras custaram cerca de Cr$ 60 mil, pagos com a arte de Iracema. Ela está agradecendo a ajuda que teve destacando – como colocou no catálogo colorido – os nomes de Michel Weber, Pedro Luiz Toledo Piza, Centro de Artes Novo Mundo e Zilda Vergueiro.
– O nome Museu do Sol já diz tudo – sol, terra, luz, calor, primavera, cor, mas tem também um sentido simbólico: o de tirar os artistas primitivos da penumbra em que se encontram, quase desconhecidos do grande público... A arte primitiva é pouco conhecida e divulgada no Brasil, são raras as galerias que fazem exposições desses artistas populares... A própria Bienal cancelou há algum tempo a sala dos primitivos, enquanto os salões oficiais poucas vezes convidam os primitivos para mostrar suas obras... Aqui os primitivos que não fazem arte “decoração”, os que não imitam, os que não são meros borradores de tintas, terão a sua vez sempre... E os novos também, vamos abrir uma Sala das Descobertas, para incentivar e ajudar os novos valores.
O Museu pode se transformar em instituto oficial, se o governo Estadual decidir encampá-lo. O Acervo ali colocado, o segundo do mundo, o primeiro da América Latina, pertence à arte e à cultura brasileira. “Nosso Museu do Sol só perde em número de obras, para o Museu de Laval, na França, terra de Henri Rousseau, mestre da arte primitivista”. Nesse museu estão cerca de30 telas de primitivos brasileiros, doados por ela, numa sana especial que se equipara à dos próprios primitivos franceses e europeus.
– No Brasil, diz Jean Pierre Bouvet, conservador do Museu do Laval, a arte naive é bem menos cortada de suas raízes profundas do que na França, por exemplo. Nisso reside a sua riqueza e o interesse de uma concentração dessa espécie: as várias possibilidades que ela oferece à pesquisa do homem e ao sonho de vida. A arte ingênua (“naif”) encontra agora o seu lugar entre as várias tendências reconhecidas, mas isso não é o mais importante; o que conta é o seu reconhecimento e as possibilidades que lhe estão sendo oferecidas nos últimos tempos de se expressar plenamente, isto é, viver. No Museu do Sol, os pintores e os criadores de objetos descobrirão a riqueza do encontro e a expressão do que procuram ou oferecem de mais verdadeiro... “Pintura naive, pintura popular”, a arte naive não é a arte popular; suas motivações e sua função são bem diversas e outra a utilização. Mas é gerada desse tronco, utiliza frequentemente suas técnicas, seus temas e às vezes explora inconscientemente as suas nostalgias. É assim especialmente interessante que a arte popular esteja representada neste Museu, t anto no seu passado próximo ou remoto como nas suas manifestações presentes. Ela é o suporte humano da arte naive; sua ruptura, até é um exemplo dos contatos entre as civilizações e dos atritos entre os mundos históricos. O pintor é mais propenso do que qualquer um a entender a necessidade de um tal encontro de intenções e formas e mesmo a provoca-lo. Ele vive esses problemas de um outro modo do que com palavras. O trabalho pictórico de Iracema, com também seu sentido de amizade, só poia encaminhá-la a abrir as portas de sua casa as pintores... O Museu do Sol não é apenas a casa dos pintores. Ele é também, o museu de todos aqueles que sonham e entalham com um canivete ou tecem ou fazem do objeto um suporte de beleza a serviço da vida... Por vários aspectos, a nossa época parece sombria, a arte lhe traz por demais vezes a evidência de fracassos, pesquisa desesperada, ícones de derrotas. Precisa-se mais do que nunca de um Museu do Sol e sua criação evoca um gesto de fraternidade que o seu irmão primogênito, o Museu Henri Rousseau, de Laval, saúda com alegria.
ALGUMAS DEFINIÇÕES DE IRACEMA
PINTURA “NAIVE” – Quando o artesão se identifica à sua obra criando um estilo pessoal onde retrata seu mundo interior e infantil. Não se pode distinguir um pintor “naif” como se consulta a composição de um remédio. Primitivo, arte bruta, arte popular e folclórica, fica tudo dentro dos limites da pintura “naive”. O verdadeiro “naif” recusa o aprendizado, embora possa flertar com ele. A palavra “naif” não é consistente, não tem tradução, mais sorte teve a pintura cubista. Gosto mais das expressões “puros” e ”ingênuos” para os pintores “naifs”.
PRIMITIVISTAS – São aqueles que sabem pintar, estudaram, sofrem as influências da comunicação humana, mas exploram um “modo de pintar”.
PRIMÁRIOS – São aqueles que exploram temas que as crianças de 4 a 8 anos, com maior talento e sinceridade, fariam melhor.
ARTE BRUTA – É feita pelos “primitivos de rua”, que desejam agredir o público, criando um impacto visual, quando o impacto deveria ser emocional.
FOLCLÓRICOS – São os pintores que se prendem ao folclore em termos didáticos, tornando-se um artista de caráter regional.
PINTURA CAIPIRA – Pintura deturpada, maliciosa, nem devemos tomar conhecimento dela.
PINTURA “NAIF” – Artista sensível, autêntico, ingênuo, puro, captador do mundo interior, infantil, mágico e fantástico.
Os nossos primitivos verdadeiros, quer se perceba ou não, são personalidades sensitivas excepcionais, que expressam nas telas seu mundo interior não poluído, feérico, onírico, alucinante, suas recordações da infância, povoas de magias poéticas e de purezas inocentes... Falo, claro, dos ingênuos autêntico, com sua vocação natural pura, que fazem essa arte maravilhosa que inauguramos no Museu do sol, cheia de luz, calor, cores e, acima de tudo, de amor.
Por Iracema
A la orilla del Sena
Pescadores cansados pescabam viejos peces
Era otona em Paris
Las hojas no sabian si quedarse en el árbol
o caer delas aguas del rio fatigado.
Varios siglos pesabam
Sobre la Catedral e color de ceniza
eran siglos terribles,
sacos de piedra y sangre.
La antigua catedral mostraba sua arrugas
ya no tennia dientes,
sus ojos pequenitos no miraban a nadie,
no miraban al cielo. Europa me pació aquel dia
cansada em su beleza.
Hasta que por la calle Bonaparte
me assaltó la pintura de Iracema.
Fué como presenciar los primeiros amores dela Tierra.
Todo el bosque nupcial.
El agua viva.
La fraganciadel árbol dando gritos
La furia verde
de la primavera.
Iracema
ya, por menos tú
no estas cansada
Te amo.
Pablo Neruda
(a bordo do navio “Lumière”, dezembro de 1965) – Poesia inédita.
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