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terça-feira, 6 de janeiro de 2015

O AÇOUGUE “BOI DE OURO” DE PENNACCHI

“Quando cheguei ao Brasil, em 1929 – há 50 anos! – trabalhei em várias coisas das mais miseráveis, para comer o pão de cada dia.” Quem inicia assim, agora, em sua majestosa mansão do Jardim Europa seu depoimento à “Memória”, é o hoje famoso e respeitado desenhista, pintor, muralista e ceramista Fúlvio Pennacchi (Garfagnana, Toscana, Itália, 1905). Pennacchi falou pela primeira vez dos duros ossos do ofício de seus primeiros tempos em São Paulo, quando foi gerente, sócio administrador e, depois proprietário do “Açougue Boi de Ouro”, à r. Bela Cintra, 53, Capital. Açougue conceituado, comprava carne do tendal, tinha crédito, mas “se dava duro”, quantas vezes o jovem Pennacchi ia entregar carne, de bicicleta ou na velha moto alemã comprada à crédito, açougue que tinha até filial, onde se vendia carne abundante e barata “com perfeita higiene, pronta entrega e cortesia”. 

Pennacchi é um romântico e sentimental, além do artista sensível, capaz de colocar alma em suas figuras populares, dentro do clima dos “trecentistas” toscanos, que talvez por influência arquetípica, usa em suas telas e cerâmicas, lembrando ainda Paul Claudel da “Annonce faite a Marie” segundo dizia Sérgio Milliet. Antes do açougue, antes do “Dante Alighieri”, antes da Igreja N. S. da Paz, antes do Grupo Santa Helena com Rebolo e Volpi, aquele, mais fraterno amigo que este, prefere falar dos filhos irrequietos e suas andanças, da bela senhora Filomena Matarazzo, da crise existencial do mundo. Um Fúlvio Pennacchi lírico e religioso, simples, humano. 

– Trabalhei, ainda, em projetos de cartazes – para a Paraventi, Pirelli, Zambeletti e outros – fiz desenhos de túmulos – que vendia ao marmorista Pamorino, a 20 contos cada, mas os grã-finos da época achavam que era futurista, e então me rejeitaram... Certa vez me arrumaram uma decoração na casa do arquiteto Ciampolini, nas Perdizes, e ali fiz um mural, com frutas e romãs, e a Sra. Ciampolini gostou e fiz também os frisos, e depois outras encomendas. Ela bem simpatizou comigo, eu era jovem e talvez simpático... E trabalhei também com picareta, abri rua no Jardim Paulista, era um brejo sem fim, vejam só, e ainda na Aclimação, sempre abrindo rua, para ganhar o sustento difícil, pagar o quarto de pensão na 13 de Maio. Uma vez fiquei atrasado no aluguel e, para pagar, pintei um Sagrado Coração de Jesus, em tamanho natural, e a dona da pensão gostou, ficou entusiasmada... Essa casa eu procurei recentemente, mas, infelizmente, foi demolida. 

 O “BOI DE OURO”

– E a história do açougue, Pennacchi, dá pra contar? “Não gosto de falar muito disso, pra que?... Mas, aí vai, em detalhes. Nessa época, 30, 31, na cidade, encontrei um rapaz, Hélio Gori, que tinha sido soldado comigo em Nápoles. Ele me convidou para visitar uma tia, que morava numa grande casa no bairro da Consolação, gente bem acolhedora, e fiz o retrato do marido. Ele tinha casas e queria fazer negócios. Escrevi então para um parente, no Rio Grande do Sul, e o convidei a vir a São Paulo. Ele veio e abriu um açougue na Rua Bela Cintra, perto da Rua Pedro Taques, justamente numa das casas daquele amigo do Gori. Eu fui falar com o patrício, Torlai, da minha terra, que tinha parte da matança do tendal, que era administrado por Olinto Simonini, também da minha aldeia toscana, e que passou a ser nosso fornecedor de carne. Nesse açougue pintei a óleo 2 painéis laterais grandes, um, só de bois, e outro, só de cabras e ovelhas, que impressionavam quem entrasse lá... O açougue foi pegando freguesia, mas era deficitário, por causa dos pagamentos (carne, geladeira, aluguel, etc.). Eu passei a morar num quarto, atrás do açougue, desenhava muito então, e comia carne, banana e sopa. Mas sentia, cada vez ficávamos mais “pendurados”. Daí, meu parente não mais quis continuar e eu fiquei com o açougue-nas-costas. E o nosso auxiliar, o calabrês Antonio Gióia Miglioni, ficou comigo, ele comprava, cortava a carne e entregava, e eu fazia a contabilidade e atendia o açougue em geral, e tinha também, mais um empregado, Oreste Contadini, casado com uma minha prima, fazia comida para nós e ajudava também”. 

O APOIO DE EMENDABILE 
– Eram bons esses tempos do açougue? 
– Chi lo sa? Defendia-se. Depois que deixei o açougue, e até hoje, às vezes, nem posso sentir o cheiro de carne fresca... Do lucro do açougue, 3 partes ficavam para mim, 2 para o Gióia, e uma para o Oreste, e nos primeiros tempos até tivemos lucro... Fiz o logotipo do “Boi de Ouro”, tínhamos papel de carta e crédito na praça, até um dos serventes tentou abrir uma filial noutro bairro. E a freguesia era bem razoável. Comprei então uma motocicleta DKW, alemã, a pilha e bateria. Se é vero... Mas, aí apareceu o Emendabile na minha vida. Foi assim. O Emendabile, eu já conhecia, pois, em Lucca estudei com Anterio del Debbio, e o pai dele, aqui, era construtor e trabalhava no escritório “Ramos de Azevedo”. Esse escultor me pediu trabalhos, desenhos, aquarelas, Emendabile viu, e me pediu para ir até o ateliê dele, que justamente ficava na Rua Bela Cintra, perto do açougue... Quando Emendabile ganhou o concurso do monumento “Ramos de Azevedo”, ao qual também concorri, fui ai ateliê dele, mas ele não me recebeu, nunca soube bem por que, e ficamos muito tempo sem nos ver. Um dia Emendabile passou em frente ao açougue, me viu de avental, de branco, olhou o brasão do açougue, as pinturas, reconheceu: – Ah, você é, então, o Pennacchi? E caiu-dos-céus... Ficou entusiasmado, mostrei minhas pinturas e desenhos, mostrei m belo São Francisco – santo pelo qual tenho predileção, até hoje – e uma “Vida de Cristo”. Emendabile se entusiasmava, e depois, passou a vir diariamente ao açougue, falar comigo, trocar idéias, ver meus trabalhos, e ele, sem exagero, virou até místico com minhas pinturas religiosas... Ele me arranjou um lugar de professor de Desenho no Dante Alighieri, e usei o ateliê dele para trabalhar. Colaborei com Emendabile em projetos de túmulos, em vários projetos urbanísticos etc. Daí veio tanta coisa, a minha arte reconhecida, a Capela N. S. da Paz, o casamento, o Santa Helena, os filhos, tudo isso é a minha vida. Mas bem antes, logo depois da Revolução de 32, vendi o açougue, o “Boi de Ouro”, de saudosa memória. 

Folha de São Paulo. 23 de dezembro de 1979.

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