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sábado, 12 de março de 2016

GOMIDE, ARTISTA PRIMORDIAL

“Dentro dos pioneiros da arte moderna no Brasil, Antonio Gonçalves Gomide está sendo dos últimos a ter o seu incontestável valor plenamente reconhecido. 


“É figura de primeira plana no movimento, tanto pela importância da obra, quanto pela influência exercida. A importância da obra, hoje, ninguém mais a discute. A influência exercida ainda não foi avaliada em toda a sua profundidade e em tudo que significou na fase heróica da nossa renovação. Poucos os que dela se beneficiaram vieram a público confessá-la. Um desses raros foi Arthur Luiz Piza. Piza, entretanto, é e outra geração. Conta-se entre os muitos alunos de Gomide. E um dos discípulos que agora honram o professor. 

Luiz Arrobas Martins, professor e advogado, novo imortal da Academia Paulista de Letras, ex-secretário de Estado, vice-presidente do Museu de Arte Moderna, conselheiro do Tribunal de Contas, está na galeria “A Ponte”, onde se realiza uma mostra de aquarelas inéditas de Antonio Gomide, saudoso artista, desaparecido em 1967 em Ubatuba, onde viveu os últimos anos de sua vida, cego e semi-abandonado. Arrobas é além de tudo “expert” em artes, um formidável propulsor da cultura, em todos os cargos onde tem exercido funções públicas. Ele dialoga com Paulo Mendes de Almeida, crítico maior de nossas artes plásticas, e que conheceu Gomide nos bons tempos do cubismo. Paulo diz que o artista, quieto, taciturno, era irmão de Regina Gomide Graz, casada com John Graz, um dois participantes (e ainda vivo) da Semana de 22. Mas Gomide não estava na Semana, em 1922 estava na Europa, onde aprendia os rudimentos da arte moderna com Picasso, Chagall, Braque e Lothe, entre outros. A conversa torna-se viva. Isaac Krasilchik, promotor da volta de Gomide ao cartaz artístico, recorda passagens da vida do artista, ainda lutador de boxe, soldado de 32, professor de inúmeros alunos, cenógrafo, pintos, aquarelista, escultor, desenhista, fazia também afrescos. Mas é Luiz Arrobas Martins, com sua reconhecida autoridade e fácil eloqüência, quem retoma a palavra, desatando vida e obra de Antonio Gonçalves Gomide, que deve ocupar “um lugar primordial na evolução da pintura brasileira”. 


Arrobas: 
“Refiro-me, porém, à influência que teve sobre os contemporâneos, sobre os seus próprios companheiros de geração e os pouco mais moços. Ela foi muito maior do que se faz supor o seu temperamento arredio, a sua rebeldia a grupos ou corrilhos artísticos, a sua indiferença pela publicidade e pela promoção pessoal. Talvez se tenha feito sentir mais através da obra, que da atuação direta e pessoal do artista. 

“E se irradiou por vários setores: o desenho, a aquarela, a pintura a óleo, o afresco, em que teve papel capital, os cartões para vitrais, em que ninguém o superou. 

“Gomide não participou da Semana de Arte Moderna. Encontrava-se em Paris, nessa ocasião. Depois de se diplomar pela Escola de Comércio de Genebra, em 1914, e cursar a Escola de Belas Artes até 1918, fora para a capital da França. Estava no centro universal das pesquisas estéticas inovadoras. Tomava contato direto com os movimentos de vanguarda, freqüentando Braque, Lhote, Picasso, Severine, Picabia e participando do “Salão dos Independentes” e no “Salão de Outono”. É quando recebe o poderoso influxo cubista, que marcará toda a sua obra, ora bem visível e manifesto, como no esplêndido “Árvores”, de 1925 (col. Erik Stickel, S. Paulo) e na aquarela que representa o que parece um desolado Pierrô a carregar a sua Colombina de longos cabelos ondulados, ou na que estiliza caçadores de antílopes, ambas incluídas nesta exposição; ora menos evidente como na aquarela “descida da Cruz”, também constante desta mostra; ora quase apagado e apenas subjacente, como na aquarela das três dançarinas sob a árvore, em que se percebem vestígios de “art nouveau”. O desenho raramente consegue encobrir o formalismo cubista, ao menos nos traços fundamentais e na simultaneidade dos planos, inclusive na sua fase mais realista, quando se dedicou principalmente a temas folclóricos e a cenas populares da nossa terra, acentuando o seu reencontro com a natureza e o ambiente brasilinos, dos quais esteve afastado durante mais de 25 anos, com apenas uma curta interrupção de alguns meses, em 1927-1927. Definitivamente, só regressou ao Brasil em 1929. A sua formação foi toda européia. Na Europa esteve durante o período decisivo da constituição de qualquer personalidade, dos 18 aos 34 anos. 
Porto

“A superioridade da formação cultural de Gomide, sua experiência concreta dos meios revolucionários da Europa e o seu conhecimento direto das fontes da renovação artística deram-lhe a autoridade da qual decorreu a influência exercida sobre os artistas brasileiros da sua própria geração. Este é um estudo que precisa ser feito urgentemente. Gomide teve mais ou menos, a mesma sorte de Ismael Nery. Como ele, só recentemente está sendo redescoberto. No entanto, também como ele, sustenta facilmente o cotejo com qualquer dos seus contemporâneos consagrados há mais tempo. Ainda como Ismael, se aqui tivesse exposto quando começou a pintar, ou durante a famosa Semana de 22, os mesmo nos anos que se lhe seguiram imediatamente, ter-se-ía verificado que já estava adiante daqueles que tanto escândalo causaram nos ronceiros arraiais artísticos do Brasil daquela época. O prof. Valter Zanini teve inteira razão ao afirmar que é “um dos nossos artistas essenciais dos anos 20 e mesmo da década de 30”. 

“Quando Gomide passou por São Paulo, em 1927, Mário de Andrade escreveu: “Agora já carece que a gente principie falando de Antonio Gomide no Brasil”. Esta é, hoje, uma verdade inconteste. Só se estranha tenha levado tanto tempo para vir à tona, quer com relação a Gomide, quer com relação a Ismael, de quem, finalmente, já se vem falando. E encontro mais dois paralelos sobre os destinos de ambos: a inapagável herança cubista, da qual são os mais altos representantes entre nós e a predileção pela aquarela. A herança cubista transparece formal e na solidez do desenho em um e em outro, embora pintores bastante diversos na inspiração. No traço, na temática e no colorido. O legado cubista de ambos revela-se ainda na austeridade cromática, na preferência pelas cores primárias, na simplicidade das figuras quase sempre reduzidas aos seus elementos essenciais e na intenção escultural da maioria dos trabalhos. 

“Gomide encontrou, na aquarela, a forma mais adequada para exprimir a sua visão plástica do mundo. É nela que a sua linguagem se faz mais natural. O domínio do desenho lhe permitiu grande espontaneidade no uso desta técnica difícil, talvez menos rica, menos dramática, porém mais exigente e mais delicada que o óleo. Dentre os pintores brasileiros, creio que só mesmo Ismael Nery lhe pode ser comparado neste terreno. Gomide tinha um perfeito controle da aguada e sabia aproveitar habilmente o branco do próprio papel, como o demonstra a “Descida da Cruz”. O seu agudo senso da composição fazia ressaltar, naturalmente, os principais elementos dela, em geral figuras humanas., para as quais iam todas as suas preferências. Depois delas as árvores. Quase tudo quanto pinta, em especial nas aquarelas, está ao ar livre, para que apareçam as árvores. 

“As suas figuras são de rara leveza e placidez, conquanto em movimento, na maioria dos quadros. O seu profundo senso rítmico coloca-se, quase sempre, em posturas esculturais de “ballet”. Esta estilização das figuras e das cenas, particularmente, as que parecem representar festas campestres à moda grega, à que dá aos trabalhos de Gomide um certo decorativismo que neles lamentou Sérgio Milliet, embora fazendo questão de frisar a alta qualidade do artista, “um velho amigo da aquarela”, e “um mestre no gênero”, que “sempre a empregou”. 

“Mais do que com jogos de luzes e de sombras, Gomide conseguiu os contrastes e a iluminação das suas aquarelas com uma destra gradação de tons de poucas cores, geralmente os amarelos, descambando para os ocres e os terras, os vermelhos que se abrandam até o rosa - claro, o verde e as várias cambiantes do azul. Somente quando queria obter maior dramaticidade é que se serviu de cores puras, como já na citada “Descida da Cruz”, nas muitas “Santas Ceias” que deixou e no barco açoitado pelo vendaval, que se acha nesta exposição. 

“As paisagens urbanas, também expostas, são nova demonstração do geometrismo cubista, presente em toda a sua obra. 

“Em vida, acho que Gomide só expôs individualmente uma vez. Esta exposição, após a retrospectiva de 1968, se filia à série de iniciativa que o estão recolocando no lugar primordial, que lhe cabe, na evolução da pintura brasileira. 

TRIBUNA DE SANTOS Domingo, 16 de dezembro de 1973.


SAIBA MAIS SOBRE ANTONIO GOMIDE:

Fonte: MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA/USP

Antonio Gomide
Itapetininga, SP, Brasil, 1895 / Ubatuba, SP, Brasil, 1967

Um dos grandes nomes da Primeira Geração de modernistas, Antônio Gomide foi pintor, escultor e professor. Trouxe para a modernidade paulistana a experiência vanguardista parisiense - Cubismo e Art Déco -, desenvolvendo sua arte dentro das propostas da Semana de Arte Moderna de 22. Sua obra apresenta mudanças de rumo ao longo de quase 50 anos de produção, particularmente depois dos anos 30. 

Pertencente a elite paulista, era um homem cultivado de bela aparência física e esportista; praticava o boxe inglês e a esgrima. Filho de um jurista, sua formação artística se deu em Genebra, onde já vivia com a família antes da Primeira Guerra Mundial. Frequentando com a irmã a Academia de Belas Artes, foi aluno do simbolista Ferdinand Hodler e colega do pintor John Graz, que se tornaria seu cunhado. Entretanto, o que marcaria profundamente sua obra seria a experiência parisiense, a partir de 1923. Nesta oportunidade, convive com os modernistas brasileiros Tarsila do Amaral e Victor Brecheret, que lá estavam. Entra em contato também com a arte de Pablo Picasso, Georges Braque, Francis Picabia, Gino Severini, André Lhote, entre outros. 

Gomide destacava-se no grupo da Primeira Geração de Modernistas por sua experiência com a técnica do afresco, a partir de 1924, quando teve com mestre Marcel-Lenoir, em Toulouse. Neste período, aborda temas religiosos, como faziam Vicente do Rego Monteiro e Victor Brecheret.

Voltando ao Brasil, em 1928, Antônio Gomide passa a integrar-se cada vez mais ao panorama nacional, residindo em São Paulo. Participa do cenário artístico e político da cidade; alista-se nas tropas constitucionalistas da Revolução de 32. Neste mesmo ano, funda o CAM (Clube dos Artistas Modernos), juntamente com Flávio de Carvalho, Carlos Prado e Di Cavalcanti. Como Oswald e Tarsila, torna-se socialista e sua arte volta-se, no decorrer dos anos 30, à temática nacional e popular, com ênfase na sensualidade e no ritmo das figuras africanas. Sua pintura percorre os esquemas decorativos cubistas do Art Déco - como nos cartões de estamparia, nos estudos de painéis e vitrais e na arte religiosa dos anos 20 -, bem como uma fatura expressionista - nas figuras toscas, com ausência de desenho. Além desta participação efetiva na modernidade paulistana, pode ser recordada sua significativa produção de painéis em afrescos e vitrais espalhados pela cidade, mantendo os esquemas estilizados do Art Déco. 

Nos anos 60, a perda de sua visão o obriga a mudar novamente seu destino como artista. Em uma relutância em abandonar a arte, dedica-se à lecionar, transmitindo para novas gerações a herança modernista. É a escultura, no entanto, que permite o artista a continuar sua produção, apesar da dificuldade em enxergar. Com a visão bastante comprometida, retira-se para Ubatuba, onde vive em reclusão até a sua morte, em 1967.


Ainda sobre Antônio Gomide:

Fonte:100 OBRAS ITAÚ - Exposição no MASP entre 30/10 a 24/11, 1985

Walter Zanini, em 1968, dedicou-lhe estas linhas:

"É pois aos 34 anos que Gomide vai procurar integrar-se à arte de seu país de origem. Sua pintura, fortemente marcada pela estica cubista, sofrerá profundas e rápidas transformações, nacionalizando-se radicalmente. Nesse sentido, podemos aproximar sua  experiência daquela de Di Cavalcanti. Desde o regresso demonstrou aptidões didáticas e durante muitos anos orientou inúmeros alunos, reunidos em pequenos grupos, nos ateliês que  abria e fechava em vários pontos da cidade". 

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