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quinta-feira, 24 de março de 2016

LYGIA FAGUNDES TELLES

Lygia: Esta é a sua história 


 A consagrada escritora brasileira tem um dia-a-dia cheio de atividades caseiras e intelectuais, e, aqui, contrasta passado e presente, depondo sobre sua vida.

 - Nasci em São Paulo, mas passei a infância em pequenas cidades do interior do Estado, onde meu pai foi promotor público ou juiz: Sertãozinho, Assis, Apiaí... Foi uma infância meio selvagem, livre. Com a figura principal de uma pajem preta, adolescente desbocada e sensual que me fazia confidências e contava histórias, centenas de histórias de lobisomem, almas-penadas, antiqüíssimos mortos que se levantavam chacoalhantes e lá vinham, com seu canto fanhoso até a nossa porta. Então eu tremia debaixo das cobertas (as histórias eram contadas durante a noite, no escuro) e chorava baixinho e tapava os ouvidos, mas deixando sempre uma fresta por onde se insinuava um fluxo implacável. O jogo era excitante: eu exigia mais, mais e fugia em pânico. O sofrimento agudo misturado ao prazer que se prolongava mais intenso, quando ficava sozinha e começava a reinventar tudo, novas personagens, novos enredos. 

Lygia Fagundes Telles - assim mesmo: com y no nome e dois LL no sobrenome - paulistana da Rua Barão de Tatuí, descendente de navegante português, membro da Academia Paulista de Letras, considerada uma das maiores escritoras do país de todos os tempos, acaba de tomar o seu café da manhã bem frugal (suco de laranja, café com leite, torradas). Ainda não começou sua ginástica diária - sueca e francesa - e já desfia sua estória ao INFORMAC. 

- Tamanho sucesso dessa contadora de histórias começou a atrair mais gente, agora não eram só crianças que vinha, se amontoar na escada de pedra do nosso quintal logo depois do jantar, em meio da cachorrada, tínhamos muitos cachorros. Na noite em que minha pajem não apareceu (tinha fugido com Heleno, trapezista do circo) resolvi num impulso de audácia substituí-la, tomar seu lugar: foi quando descobri que sentia menos medo falando, que era mais excitante contar do que ouvir porque enquanto falava, transferia todo o horror para o outro. Com o próximo ficava a minha insegurança e a minha dúvida, a minha ousadia e o meu medo, mas não era mesmo extraordinário isso? Pensei e me senti aliviada. Esvaída (como se todo o meu sangue tivesse escorrido nas minhas palavras) mas poderosa. Independente. 

Ela pára um pouco, toma fôlego. Escuta a rádio Jovem Pan, para se inteirar das notícias, em especial as econômicas, é um hábito. Lê também religiosamente o “Estado” e a “Folha” e só a tarde lerá o JB e O Globo. Começa pelas primeiras páginas, vê como anda a política e o humor dos políticos, passa pela geral, esportes e dêem-se na parte cultural. “Gosto de começar o dia-a-dia bem informada”, diz, e logo retoma o fio de sua vida. 

- Datam dessa idade de ouro os primeiros escritos assim que comecei a escrever, isso depois do aprendizado coma sopa de letrinhas, um macarrãozinho com todo o abecedário, era um brinquedo novo alinhar as letras nas bordas do prato fundo. Muito difícil, me lembro, encontrar o Y do meu nome, ia ver o prato dos outros, era enxotada. Então recorria ao caldeirão onde as letras se amontoavam lá no fundo, fervendo borbulhantes. Meu pai era um homem meio desligado, sonhador. Gostava de beber e de jogar: Durval de Azevedo Fagundes. Minha mãe, Maria do Rosário - o apelido era Zasita - tocava piano (Chopin) e cantava. Me lembro que era risonha, comunicativa mas vendo hoje seus retratos, descubro em sua fisionomia tamanha tristeza, ela era triste? Fazia doce de goiaba nos grandes tachos de cobre e a expressão que hoje uso para designar as mulheres daquele tempo - mulher-goiaba - tem sua origem na imagem da minha mãe mexendo, mexendo aquele doce. 

São cerca de 10 horas e Lygia se apronta, desce o elevador, sai para a rua. É a hora da caminhada matutina, anda a pé todos os dias, hoje está indo ao Clube, pois p dia está bom e o sol já saiu. Vai nadar e exercitar os músculos, ela que, nas rodas intelectuais é conhecida não só pela elegância, mas pela disposição e saúde. Mas, não queremos interromper sua meada: 

- Não tinha sequer idéia do que era o feminismo. Mas era uma feminista inconsciente quando me estimulou a escrever um livro, eu ainda estava no ginásio, era uma menina-moça com certos planos, tímida, mas com ousadias por dentro: “É uma profissão de homem, ela disse. Mas se você escolheu, por que não?” Revelou-me, sim, uma feminista nesse e em outros estímulos em seguida, quando eu quis entrar na Escola superior de Educação Física, uma escola que era só de homens. Pouca roupa. Muita liberdade nos campos de esporte, misturados aos jovens numa camaradagem que não estava nos usos e costumes de nossa rígida formação dentro dos moldes lusitanos. Ela aprovou essa idéia como também achou muito bom que logo em seguida eu fosse estudar Direito na mesma faculdade de meu pai, a Academia do Largo de S. Francisco. “Também é profissão de homem, ela observou. E homem não gosta de ver mulher no ramo dele, não sei se isso vai ajudar no casamento. mas você está somando profissões, pode trabalhar no que bem entender e isso é importante para uma moça pobre”. 

Regresso ao apartamento simples, bem arrumado, funcional. É hora do almoço. Hoje, dia da entrevista, tem arroz integral, carne leve, verduras e frutas. Aboliu as massas e o açúcar. Tem um afago especial pelo seu gatinho angorá. A empregada é solicitada e prepara tudo com carinho. Ela raramente aceita convites, prefere a sua quietude, propício à atividade de escritora e intelectual ativa. Telefonemas, atende, resolve. Lê um pouco seus livros “volantes” (sempre à disposição, em rodízio, em vários lugares do apartamento). Os de agora são de Drummond (poesias), Loyola Brandão e Nélida Pinon (romances), e o “Fausto” de Goethe. Confessa sua fé religiosa e mística, gosta das Santas Terezinhas, a do Menino Jesus e Tereza d’Ávila. Já colecionou folhas de árvores, de vários lugares do mundo, que coloca dentro de seus livros prediletos. Coleciona cartões postais, gosta especialmente dos de “Anunciação”, de Michelangelo e os de Giotto. Acredita firmemente nas três virtudes teológicas, as mais importantes, segundo diz, “em toda a roda do tempo do mundo”: fé, esperança e caridade. O seu depoimento prossegue: 

-Estávamos pobres, meu pai tinha jogado quase tudo na roleta, ele jogava nos números. Dele herdei essa vocação, eu jogo nas palavras. Perdi? Ganhei? Não importa, o importante é a emoção, o risco. A felicidade de exercer o ofício pela paixão, como queria Stendhal. Os dois cursos eu completei aqui em São Paulo, onde resido até hoje. Dois casamentos. Um filho, Goffredo Telles Neto, cineasta. O segundo casamento foi com Paulo Emílio Salles Gomes, crítico, ensaísta e professor de cinema. Pouco antes de morrer publicou um livro de ficções, originalíssimo, verdadeira ruptura na arte de escrever. Foi o fundador da Cinemateca Brasileira, criada nos mesmos moldes da Cinemathéque Française, em Paris, na qual ele trabalhou muitos anos com Henri Langlois. Hoje sou presidente dessa cinemateca que possui o maior acervo de filmes brasileiros - a memória do Brasil através da imagem. Sou do Signo de Áries (19 de abril), domicílio do planeta Marte. A cor do signo é o vermelho, mas aposto igualmente no verde: minha bandeira - se tivesse uma - seria metade verde, metade vermelha. Esperança e paixão não destituída de cólera. Vocação, sim, acredito em vocação, sortilégio e magia que os puxa pelos cabelos e nos empurra nesta direção e não naquela, uma fatalidade?Penso às vezes que não escolhi, mas que fui escolhida: nem sabia o que significava vocação, mas de forma instintiva já estava assumindo o meu ofício. 

Lygia Fagundes Telles começa a trabalhar “o seu ofício”, após o almoço. São dezenas e dezenas de carta a responder. Telefonemas a dar (ela preside com eficiência total a Cinemateca Brasileira). A Nova Fronteira quer editar novos livros seus. Atende também a outros escritores o pessoal da União Brasileira de Escritores. Está sempre com um novo texto a fazer, escreve (bem) à máquina, sempre foi assim, nunca esquece que foi advogada militante e Advogada do Estado. A TV Globo quer saber se tem outro romance para televisar. As 5 da tarde - é uma quarta-feira - apronta-se, sai lépida e bonita, para a sessão (e o chá) da Academia Paulista de Letras, como imortal que é. Às 8 da noite, a imortal Lygia, como uma mortal comum, retorna ao seu apartamento, à sua intimidade, à sua criação sensível e humana, aos mistérios e á sua esperança, marcas mais profundas dessa mulher de fama e consagração nacional, mas a um tempo tão feminina e simples. Antes de dormir, a última leitura, de um de seus livros “volantes”, para se apaziguar, a Bíblia, de que não se separa nunca. As 10 e pouco, 11 da noite, se tanto, dorme o sono justo das criaturas que tem fé, raça e coragem. É assim que o INFORMAC viu, nessa quarta-feira, dia 22 de agosto, essa mulher, escritora e gente, Lygia Fagundes Teles. . 

 Frases/Conceitos 

Escrever - Escrever, escrever, escrever sempre. Bérgson dizia: Nunca sabemos até que ponto vamos atingir, se não nos pusermos imediatamente a caminho. Eu escrevo aos poucos, a idéia vai amadurecendo. Quando sinto que chegou a hora, sento e escrevo. Pode ser à tarde. Muitas vezes à noite, quando está tudo silencioso, e as pessoas apaziguadas. 

Livros & obra - Sou uma andeja que sabe o que está procurando: a palavra exata para dar expressão a uma idéia. Meus livros são meus filhos também: alguns, coitados. Rejeitados, mas outros bastante minados. O último está sempre no meu colo. E minha obra, toda, é um livro só. 

Casar - O Homem é tão necessariamente louco que não ser louco representaria uma outra forma de loucura, escreveu Pascal... Dos sintomas básicos da neurose, quase ninguém escapa... Selecionei, em minha lista, as neuroses mais comuns: a necessidade neurótica de agradar os outros, necessidade neurótica de poder, necessidade neurótica de realização pessoal, necessidade neurótica de despertar piedade, necessidade neurótica de um parceiro que se encarregue de sua vida - ô Deus! - mas desta última necessidade só escapam mesmo os santos. E algumas feministas mais radicais. 

O Amor - Na vocação para a vida está incluído o amor, inútil disfarçar, amamos a vida. E lutamos por ela, dentro e fora de nós mesmos. Principalmente fora, que é preciso um peito de ferro para enfrentar essa luta na qual entra não só o fervor, mas uma certa dose de fervor e cólera... O amor é mais importante do que a glória. 

Fonte original: 
InforMAC - Órgão de Divulgação Interna das Empresas Machline Ano III - Nº 31 - Agosto 1984.

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