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sábado, 8 de abril de 2023

LACERDA, ÚLTIMO ENCONTRO


“Hoje tenho tanto que dizer. O que fiz foi parte infinitamente pequena do que nasci disposto e talvez capaz de fazer. Predestinado, não. Mas, pré-formado. Pude fazer pelo menos o suficiente para mostrar que podia fazer mais”. (Carlos Lacerda, 1976 – in “A Casa do meu Avô”). 

Dia 5 de maio de 1977 fui ao Rio, a serviço profissional, e procurei Carlos Lacerda na Nova Fronteira, sua editora, da qual assumira a direção geral e efetiva há pouco. Marcara encontro, pois levava comigo fotos de São Paulo antigo, para um álbum que Carlos pretendia editar no fim do ano. Colhera fotos, a seu pedido, no MIS, no Patrimônio Histórico da Prefeitura, e com d. Maria orais Barros, diligente colaboradora e filha do embaixador Moraes Barros. 

Em Botafogo, perdi-me nas obras do metrô carioca. A rua da Nova Fronteira, a Barão de Itambi, toda esburacada e revolta. Procuro a passagem, pelos fundos de um prédio próximo à editora. Ouço uma voz, à direita, apagada e hesitante. Era o Carlos: 
– Luiz Ernesto... Você, aqui... 
Um cumprimento frio e formal, diferente dos milhares que tivemos nos últimos 30 anos. Conheci-o na Faculdade de Direito de São Paulo, em 47. Era estudante de jornalismo, e Lacerda falava sobre “A Missão da Imprensa”. Quis levar o texto de sua admirável palestra para publicar na “Imprensa”, jornal da escola, chegando a puxá-lo de suas mãos. 

– Que é isso? Este, não. Vou publicá-lo nas “Vozes”.
Daí nasceu a longa convivência profissional, política, familiar, humana. Fizemos amizade desde logo e, de lá para cá, Lacerda foi para mim amigo e chefe, paraninfo e conselheiro, padrinho e quase pai. Trabalhei durante 15 anos na “Tribuna da Imprensa”. E em sua campanha ao governo da Guanabara e como candidato a presidente da República. Convivi com o homem público, conheci as manhas do político, o brilhantismo do escritor, a globalidade da figura, que, às vezes, beirava a genialidade delirante. Nenhum outro brasileiro maior, ou melhor dotado, em seu tempo. Opositor contumaz e obsessivo, construiu em todos os campo pelo talento e pela inteligência, pela sensibilidade e pela ardorosa vontade de criar. Devassou lembranças e arquétipos, tentou fazer da vida o equilibro do possível e do imaginável. Ali, agora, na Itambi, entrando na Nova Fronteira, sem pressa e sem o antigo “élan”, não era o mesmo Lacerda, buscava já o imponderável e o incompatível, o “Outro ser vago, sem voz e sem corpo, distante e etéreo”, como chamou a Morte, em seu último livro-testemunho, “A Casa do meu Avô”. 

Ali, na rua, encontro-o bravo, triste e desencantado com a crise nacional. Não é o mesmo de sempre, ousado e inspirado, fraterno e criativo, mágico e intrépido na palavra e na ação. Implodia por dentro – com os remédios em má hora prescritos em São Paulo. Via a face letal em seu rosto – dos olhos para baixo, o rosto se esverdeava, e lembro-me que, de volta ao hotel, falei disso à minha mulher: – “O Carlos está mal, muito mal” – disse. Há três anos, indicado pelo Mesquita para escrever a biografia de Francisco e Júlio de Mesquita Filho, que considerou a honra maior de sua vida, escolheu-me para as pesquisas em São Paulo. Falo do livro de Julinho e Chiquinho. Em que pé anda o texto, já que o espinhaço da obra estava pronto, segundo ouvia, em São Paulo, do próprio Carlos. “Não sei, não, como continuar o livro...” disse, desanimado. Empaquei na história da Bucha e da Revolução de 32. Não tenho ainda explicação que me convença para ambas. E, nelas, Julinho e Chiquinho tiveram participação fundamental’. 

Na feitura do livro, houve entre nós mais uma relação plena de confiança. Tempos trabalhosos, pois as pesquisas nas quais também colaboravam Armando Bordallo e Luiz Roberto Souza Queiroz – se intrincavam em mil referencias pessoais, políticas, econômicas, etc. A tal ponto que Lacerda, ao ver, em Petrópolis, as 40 grossas pastas que organizamos, divididas em mais de 100 capítulos – que abrangiam cronologicamente a vida dos dois Mesquitas – disse, realista, não poder escrever em três anos sobre quem atuara, decisiva e apaixonadamente, na vida brasileira, durante 60 anos, no mínimo. Lembrava Churchill, a quem recentemente se publicavam memórias, com historiadores e pesquisadores perquirindo a sua biográfica, em períodos e episódicos curtos e definidos. “Os testemunhos era, válidos, as pesquisas excelente” – dizia. Mas, Lacerda, adiava a redação final do livro, apesar de já ter ordenado a capitulagem da obra, que seria em dois volumes, e redigido o seu breve, incisivo e belo prefácio. Talvez, também, porque houvesse sido o partícipe e testemunha de tantos episódios vividos pelos Mesquitas, tivesse o ressaibo de, escrevendo de outrem, ter de se situar igualmente perante a história de seu País. 

Foi um encontro frio, o nosso, naquela ensolarada manhã no Rio. Lacerda andava com dificuldade, duro, mal ajeitado nas roupas largas, gordo: “Trouxe as fotos?” Trouxe. Ótimas, todas. “Ah! Bem.” 

Acompanhei-o, sem falarmos, até a Nova Fronteira. Cumprimentou, sério, compenetrado, à entrada, o porteiro e funcionários. Em seu gabinete, recebeu as notícias do dia: Luzardo o convidava para o lançamento de seu livro, na Assembléia de Porto Alegre. É o depoimento do centauro gaúcho a Glauco Carneiro, que pude recomendar a Lacerda, que resolveu editar o livro.

– O convite de Luzardo é altamente honroso, disse. Vou aceita-lo. Espero que minha presença possa exprimir, pelo silencio, o que já por palavras não se pode dizer neste país. Pediu as fotos, chamou o Forjaz Trigueiros e o Sena Madureira, principais colaboradores. Apresentou-nos, enquanto as três secretárias já completavam várias ligações com o Castelinho, em Brasília, Emil Farhat, em São Paulo e Yolanda Penteado, que estava no Rio. Pediu que eu próprio atendesse à autora de “A Vida Cor-de-rosa”, que a Nova Fronteira vai reeditar. 

– São Paulo é com você, Luiz Ernesto... E passou, muito zangado, enquanto me elogiava (o que me constrangia), a criticar pessoas e coisas. Criou-se um mal-estar, o seu rosto estava grave e pálido, acinzentado, fora do normal. 
Resolvi dar um expediente rápido: 
– Representei-o na morte de “Ciccillo”. 
– “Paz a ele, coitado”... 
– Encontrei o Jânio. Quer que o senhor, quando for a São Paulo, o procure. 
– “Errar, todos erram, Luiz Ernesto. Mas, para traição, não há perdão. E Jânio traiu. Nunca mais quero ouvir falar nele”. (PS).
– Faz 40 anos da morte do Paulo Setúbal...
– “Isso, sim. Procure o prefeito, em meu nome. Vamos editar a obra completa do pai dele. É fácil conseguir”.

Mostrei recortes do Jornal da Tarde (carta do Guazelli, da Câmara Brasileira do Livro, com quem vinha divergindo a respeito da edição de livros) e um bilhete de minha mãe Marieta, de 89 anos, cumprimentando-o pela A Casa de Meu Avô, que leu inteiro, desde o Natal. Fez algumas anotações no recorte, e pôs o bilhete de lado, escrevendo “arquivo pessoal”. Ficou pensativo e triste e, enquanto falava ao telefone com Letícia, combinando a ida a Petrópolis e jantar que desejava oferecer, naquela noite ao jornalista Carlos Castelo Brando, pegou um cartão pessoal e escreveu um afetuoso bilhete á minha mãe. Que destino! Não o achei nunca mais. Ainda dedicou um livro seu a Leontina e Bruno Giorgi – com quem eu iria almoçar – e reclamou, “até a última entranha de meu ser”, não poder comparecer a esse almoço, e enviou também à minha mulher Zilda, “Psiquiatria ao alcance de todos”, para ela aprender um pouco, como dedicou entre irônico e solene. 

– Bem, as fotos, onde estão? 
Abri o volumoso pacote. Lacerda espalhou-as sobre a mesa, comentou, criticou, elogiou. Deu instruções a Trigueiros sobre o álbum. 
– “Vai ser melhor do que o fizemos do “Rio Antigo 1900”, no ano passado. O texto de apresentação será do Alfredo Mesquita”. 

Sentia-o, contudo, desalentado e desintegrado. Lacerda não tinha aquela vida, aquele idealismo, como tantas vezes o vi, no jornal, nas campanhas, no governo, nas tribunas, nas aulas, nas conversas. Ali, ele se acabava na editora, desfalecido e desesperançado, já antevendo a morte, tantas vezes citadas no “A Casa de Meu Avô”. Saio e ainda pego trechos de seu depoimento gravado, que concede a Leo Gilson Ribeiro, do Status, talvez o último que deu em vida: a crise do livro, a crise da educação, a crise institucional, a burrice nacional.

Em São Paulo, toco pra frente. Aviso alguns amigos da depressão de Carlos Lacerda, da obsessão outonal e triste que tomava seus últimos dias. Sodré e Segall estão em Paris, aviso Hélio Motta, e o Padre Godinho diz que vai procurá-lo. 

Já nada se pode fazer, senão esperar. Dias depois, como de hábito, chegaram dois bilhetes, dele, os últimos: os assuntos vão de Grassman a Freud, dos Mesquita ao “seu” Xanam. É o fim próximo, é a morte que Lacerda antevia: “Eu sei o que vão dizer, mas que importa! Não será pior nem melhor do que disseram antes que me olha agora, sem olhos, me fala sem voz, me escuta sem ouvidos; em vão procuro atribuir-lhe um rosto, um corpo, uma presença compatível com a descrição que se pudesse fazer de sua impalpável presença... não é um ser propriamente, será um estado de ser... pois nunca é tarde... embora nem sempre me disponha a aceitá-lo. Creio que combina com o que haja de mais real na minha natureza”. 

E assim foi para o mistério da eternidade o chefe e o amigo, o padrinho e o quase par de tantas lutas duras e alegres tertúlias. Que me ensinou a crasear e a combater o bom combate. O brasileiro acima de sua época, que voou tão alto quanto Ruy na literatura, Kubistcheck na política, Vargas no gosto popular, que fez do jornalismo lição, profissão e exemplo, e da sua ação a busca do bem comum, da justiça e da liberdade. Um homem que, como queria para seu próprio irmão Mauricio, empurrou pelas próprias mãos o destino do tempo e fez da sua vida, entre a loucura e o gênio, o permanente desafio de ousar definir e ver, como queria Camões. Lacerda ocupou um espaço muito grande, na alma do povo e na vida nacional. A obra que fez, embora a considerasse infinitamente pequena, é obra de um predestinado, de um idealista e de um amoroso. P S. Por causa deste diálogo, que uma folha publicou avulsamente, tive um curioso e inusitado diálogo com o ex-presidente, numa galeria de arte, no ano passado. Por pouco, não fui agredido.

LUIZ ERNESTO KAWALL (Especial para “O ESTADO DE S. PAULO” 21.8.78).

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