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terça-feira, 1 de outubro de 2024

A HERA ASSASSINA

p/ Tarsila, netinha querida, este arremedo de conto pseudo-literário! SP. 5.10.94 – Vô

Gilberto Gonçalves veio de Potirendaba tentar a vida na Capital. Deixou os burros xucros dos rodeios interioranos pelas luzes feéricas da cidade grande. As flores e frutos e o capim-manteiga dos campos pelo anti-verde, a pressa, o carimbo, o telefone, o ar acinzentado e baço de S. Paulo. Tinha fé e auto-estima e queria vencer. 

Foram duros os primeiros tempos, na Escola de Sociologia e Política. Os armandinhos citadinos não aceitavam de pronto aquele cabeçudo da roça. Pra começar, deram-lhe um trote histórico: foi jogado, de roupa e tudo, no laguinho do MASP, junto à avenida Paulista. Foi um vexame total. Ainda desfilou, quase nu, na grande via – um show, filmado e fotografado. A república onde morava era-lhe meio hostil. Não tinha mesada suficiente. Enfim, vida difícil na Paulicéia. 

O tempo foi – que passando e o nosso Gonçalves, como queria Camões, vendo, ouvindo e... aprendendo. Aos poucos, se adaptava à metrópole. Aos domingos ia ver Leônidas & Cia. Jogar no seu São Paulo Futebol Clube, no Pacaembu. Grandes vitórias, que o nosso herói potirendabense curtia nas choperias. E no Ponto Chic, largo do Paissandu, ponto de encontro de jogadores, políticos, jornalistas. Numa dessas alegres comemorações, conheceu Esdras Zavore, jovem político – com quem fez amizade. Com o tempo, passou a freqüentar o seu grupo deste, tornando-se um íntimo amigo. 

Gilberto também progredia na Escola, no seu último ano. Conhece uma formanda, Lílian Neves – filha do famoso artista Francisco Neves, fundador da corrente modernista. Suas paisagens eram disputadas a dedo. O casamento entre os dois não demora e Esdras Zavore e senhora foram os padrinhos no religioso. A festa foi no Paulistano, por deferência da diretoria, atendendo ao pedido do amigo político, que, então, se elegia deputado estadual. O Dr. Gilberto Gonçalves progredia cada vez mais. Tinha um bom emprego no Estado – arrumado por Esdras – , a família crescia com dois filhos e a roda de amigos. Gilberto gostava de plantas e formou um belo jardim à volta se sua casa no Morumbi. O pai de Lílian continuava pintando e as recepções em sua mansão eram famosas. Gente importante ia à sua casa e ele ganhou um emprego de chefe da assessoria técnica do governo do Estado.

Enquanto isso, Esdras Zavore progredia também na política. Acabou se elegendo deputado federal e, um ano depois, em campanha memorável, governador. Foram tempos bons para Gonçalves, pois Esdras gostava de ouvir sua opinião sobre os mais variados assuntos. De quebra, o nosso herói solidificava sua carreira de burocrata, assumia novas chefias na carreira pública e podia se dedicar de maneira plena a seus gostos/hobbies: o S. P. F. C. – foi eleito conselheiro do “mais querido”; a natureza e as plantas – comprou uma fazendinha, lá pelos lados de Avaré – e ainda, e sempre, as artes, como colecionador privilegiado na obra de Neves, seu sogro, e outros artistas do grupo de Santa Helena, pelos quais tinha especial estima. Tornou-se também colaborador bissexto de alguns jornais, ora escrevendo sobre a cultura de rosas, como as excelências da pintura “do natural”, pintores que faziam seus quadros utilizando o velho cavalete (eram os anos de 40/50) e outros temas mais amenos. Gilberto Gonçalves era um missivista assíduo à Folha e ao Estadão, não deixando escapar oportunidades de eruditar seus conhecimentos em vistosas cartas à redação dos 2 jornais. 

Pouco antes do final do ano de 1959, em plena campanha eleitoral para a governança do Estado, na qual Esdras Zavore era candidato por uma coligação, Gilberto foi à casa do seu dileto amigo e conversaram a valer sobre temas mais variados e quentes. Foram horas de troca positiva de ideias e planos e ao final, ambos, já bem alegres com as rodadas de uísque, faziam brincadeiras e entravam pela futurologia. Às vezes também discordavam, e até apostavam... 

– Olhe Esdras, antes que aquela hera verde cubra todo o Palácio Bandeirantes, você não chega a governador, meu irmão... 

– Ah, meu caro, com hera ou sem hera eu chego lá, e meu prazer será nomeá-lo e, depois, demití-lo, a bem do interesse público... 

Os dois gargalhavam, com aquela estória boba; outras mais foram ditas, mas ficou tudo no tinteiro. São coisas que não se pensa, quanto mais escrever, mesmo em conto apressado e sem maiores conseqüências para um concurso acadêmico piegas. 

Acontece que a eleição veio, Zavore ganhou de ponta-a-ponta, cumpriu os prazos de praxe e assumiu com pompa a chefia do Executivo. Na chefia da Casa Civil, o interiorano de Potirendaba, sociólogo e burocrata, o missivista dos jornais, exemplar chefe de família, etc., Dr. Gilberto Gonçalves. Era a glória, a recepção aos amigos e correligionários. Na noite da posse, foi das mais badaladas. Gilberto saiu até na coluna social da cronista Tavares, que se iniciava num dos grandes jornais. Ele. Lílian e os dois filhos, copo de uísque na mão e um largo (e comovido) sorriso no rosto. A dupla Zavore/Gonçalves bombava.

Um ano de governo e Zavore e Gonçalves iam ganhando a opinião pública. Eram aplicados, diligentes, agiam com firmeza e honestidade, não deixavam a peteca cair. E a velha hera do Palácio ia serpenteando, atingia quase o topo da sede do governo, a desmentir a previsão de Gilberto. Um dia, ele brincou com o governador: “Essa hera é assassina... Antes de ‘fechar as paredes do Palácio, alguém morre por aqui”. E Zavore, fazendo um muxoxo: “Deixa de ser besta, Giba. Foi vir pro governo e você ficou maluquinho... Olha que eu posso demitir você com uma penada”...

Mais um tempo e a cidade de potirendaba concede o título de Cidadão Potirendabense ao governador, pelos “relevantes serviços prestados à cidade”. Zavore marca a data para receber a prebenda. E a comitiva é formada. Numa homenagem a Gilberto Gonçalves, coloca o seu amigo/“irmão” na comitiva. Queria que ele dividisse as honras com o governador, em sua cidade natal. Havia em ambos aquele contentamento do dever cumprido, a vontade de curtir algumas horas agradáveis, confraternizar coma população, enfim, deixar a rotina do Palácio para uma viagem alegre ao interior.. 

Tomaram o helicóptero vermelhinho e antes de o aparelho rodasse plenamente suas hélices, balançasse qual um grande besouro no ar e finalmente se lançasse no rumo dos céus, Gilberto, mais uma vez brincou com Zavore: “É, governador, a hera ‘tá quase chegando nos telhados do Palácio... Alguém vai morrer... E o governador: “Espero que não sejamos nós!...”. 

Mas, era, sim. O helicóptero, antes mesmo de alcançar 30 metros de altura, a uns 200 metros do Palácio, teve uma pane súbita, vibrou mais do que o esperado no ar, apagou os motores e caiu redonda e ruidosamente num terreno baldio, perto de Osasco. Não sobrou ninguém, no pavoroso desastre, que comoveu a opinião pública. Zavore e Esdras morreram carbonizados, lado a lado. Os outros tripulantes e mais três assessores, idem, mortes horríveis. E assim terminava sua carreira de sucesso em S. Paulo, aquele jovem e idealista potirendabense, Gilberto Gonçalves, que conquistara a capital com seu esforço, estudos, tenacidade, amizades e trabalho. 

P. S. o que ninguém entendeu, foram os termos de uma carta, encontrada junto ao corpo de Gilberto Gonçalves, e que os jornais publicaram alguns dias depois: S. Paulo, 13, 9, 1959. 

Meu caro governador: 

“Venho, através desta, solicitar a V. Excia. aceite meu pedido de demissão, do cargo de Chefe da Casa Civil, para o qual fui honrosamente nomeado pelo Senhor Governador.
“Já faz quase três anos em que batalhamos juntos, em benefício do povo de nosso Estado, e agora, afazeres pessoais me levam a tornar pública esta decisão. 
”Espero ter contribuído para o melhor êxito da gestão de Vossa Excelência. 
“Desejo agradecer ao caro governador e amigo ter tido a oportunidade de servir ao meu Estado, e, particularmente, a minha Potirendaba. 
“Lílian e meus filhos também são gratos, esperando a nossa família manter sempre a preferência de sua longa e querida amizade. 
“Não quero terminar esta, sem me referir ainda uma vez sobre o assunto “hera do Palácio”. Sempre brinquei com Vossa Excelência: a hera plantada aqui é a Hetera Felix, inglesa. Ela sobe nos castelos com suas folhinhas vermelhas no inverno e raízes que colam nas paredes. Quando alcançar finalmente o topo, dá uma linda cor avermelhada ao castelo... e não é assassina não. Nunca se soube que matou alguém na Inglaterra. Quanto mais aqui, no Palácio dos Bandeirantes!
“Seu velho amigo e admirador, com um afetuoso abraço, do Gilberto Gonçalves; 

À Sua Excelência Senhor Doutor 
Esdras Zavore 
Digníssimo Governador do Estado 
Palácio dos Bandeirantes/S.Paulo 

 A data era do acidente fatal do helicóptero.

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