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segunda-feira, 7 de outubro de 2024

CONTA SUA HISTÓRIA O HOMEM QUE VENDEU 180 NORDESTINOS

APÓS TANTAS AVENTURAS, TERMINOU CAINDO NO “CONTO DO PACO”, EM SÃO PAULO

- Não vendi ninguém! 

Assim categórico, à nossa frente, o cearense Francisco Pires Praciano, 31 anos, casado (4 filhos), com sitiozinho em Itapipoca, no norte do Ceará, contesta e desfia sua história. 

- Não negociei meus irmãos. Trouxe-os por caridade. Estavam todos morrendo de fome lá nos sertões da santa terra. 
Praciano é decidido, com uns ares de caboclo ingênuo. Está detido na polícia paulista. Motivo: averiguação (roubo de rádio, com o irmão). Mas nos interessa por isto: trouxe do Norte e vendeu aqui no Sul, 180 retirantes nordestinos. 

E disso nem a polícia de S. Paulo, nem a de Kubitschek, cuida. Água não pingou, descida para o sul.
Praciano é pequeno lavrador em Itapipoca. Cultiva arroz, milho, algodão, feijão e “alguma mandioca”. De quebrado, cuida de gado: tem 30 cabeças- das 100 e poucas, “o solão danado matou”. Nos seus alqueires trabalham 90 pessoas. Mas este ano, houve seca. 

- Dezoito meses não pingou. As culturas morreram todas. O gado virou esqueleto - e se foi também. 

Foi então que Praciano, com sua gente, decidiu descer para o Sul. “Tentar melhor sorte de Deus”. 

180 cabeças no grande alfa 

- Juntei minhas economias, aluguei um caminhão “Alfa” (Romeu), dos grandes e chamei o povo. 

Conta que queria trazer “100 cabeças”. Na hora do embarque subiram 180 pessoas, sendo 100 adultas e 80 crianças. 

- Contratei o caminhão por 200 contos. Na hora da partida, tinha gente sobrando: dava para dois caminhões. 

 A condição, para viajar: cada um se comprometia a dar a Praciano Cr$ 3.000,00, ficando a comida durante a viagem “por sua garantia”. 

VENDA (1ª) DO GADO HUMANO

O “Alfa” afinal veio descendo pelo Ceará, Bahia, Minas Gerais. 
- A essa altura, meu dinheiro (70 mil cruzeiros) acabou. Já viu miserável sem comida? É de matar. 

Aí estavam em Montes Claros. O fazendeiro do lugar, Antonio Versiani Ataíde, conta, veio ao encontro do bando: 

- Vamos dividir esse pessoal. Quem for do braço, vem para o meu trabalho! 

Foi então que o Praciano fez o primeiro negócio: vendei 61 “cabeças” por Cr$ 100 mil. 

O fazendeiro pagou Cr$ 86.600,00. O povo do lugar, condoído, deu mais Cr$ 13.400,00. O total foi Cr$ 100 mil - com recibo e tudo. 

MAIS GADO (HUMANO) MAIS DINHEIRO 

E a viagem continuou. Rumo: centro de Goiás. 

Em Rio Verde, nova parada e negociações com o fazendeiro João Macedo Garcia. Este, por Cr$ 35 mil - mais a promessa de dar uma fazenda a Praciano - ficou com os restantes nordestinos, em número de 119. 

Foi passado recibo também, “na legalidade de Deus”. 

E Praciano ficou de descer até S. Paulo, visitar um seu irmão aqui, retornar a Itapipoca, buscar a família e os “trens” - e juntar-se ao “seu povo” em Rio Verde, e ali, outra vez, começar a criação na fazendinha.

AZAR BATE EM S. PAULO - DENÚNCIA 

Em S. Paulo, contudo, o azar bateu no cearense decidido. Tinha sobrado - pago o chofer do caminhão: R$ 135 mil - para suas despesas de volta, com visita de permeio ao irmão, Dr$ 6 mil. Praciano não conhecia a capital, nem sua malandragem. Foi no conto do “paco”. Perdeu os Cr$ 6 mil - e deu queixa à Polícia. Na Polícia, inventou: tinha sido roubado em Cr$ 100 mil (“dinheiro grande, a Policia vai procurar”). A mentira o engalhou. Aparece o seu irmão, aqui radicado. Este é reconhecido por um investigador e acusado de roubo (antigo) dum rádio. 

Os dois irmãos vão parar no xadrez. Pior: Praciano, pressionado, conta a história verdadeira. Acusado agora de traficar brasileiros, sente vergonha e contesta - e continua preso. Num de seus bolsos, um documento impressionante: o fazendeiro do Rio Verde deseja comprar mais “50 trabalhadores do Norte”. Mas não quer “peso-moto”. (Praciano explica: “peso-morto” é a criançada doente...). 

Enfim, num canto de Delegacia, junto ao repórter, o cearense Francisco Pires Praciano confessa: 

- “Sou brasileiro e quis ajudar meus irmãos brasileiros. Ninguém nunca viu a miséria que vai no Norte. Governo por lá não aparece. Perdi agora meu dinheiro, estou agredido e preso em S. Paulo - e meu povo morrendo de fome em Itapipoca. 

E lamenta: 

- No Brasil, só não conhece a fome quem faz gosto dela! 

A CARTA 

É esta a carta de Tércio Campos Leão, fazendeiro em Rio Verde, encontrada nos bolsos de Praciano:

“Rio Verde, 16 de fevereiro de 1959. 
Sr. Francisco Pires Praciano 
Nesta. 
Tomei conhecimento de sua estada aqui e como o sr. reside no Ceará, onde tem inúmeros trabalhadores que querem vir para este município, quero fazer-lhe uma proposta para a vinda de 50 trabalhadores para a minha fazenda, nas condições: 
1.ª - As famílias ficarão residindo na fazenda com todos os seus membros e só poderão trabalhar noutro local, em outra propriedade, com o meu consentimento; 
2.ª - Darei lavoura para todos, sendo no primeiro ano, 1959, pequenas, visto ter interessados na minha fazenda; 
3.ª - Não admito uso de bebidas alcoólicas, imoderadamente, na fazenda, assim como armas e festas; 
4.ª - Pagarei a diária de Cr$ 60,00 (sessenta cruzeiros) livres de outras despesas necessárias; 
5.ª - O pessoal peso-morto deverá ser o menor possível; 
6.ª - Na chegada do pessoal em minha fazenda comprometo pagar até a quantia de Cr$ 100.000,00 (cem mil cruzeiros) a você, ficando o restante das despesas para a combinação na ocasião. 
Estas são as condições que exijo para que você traga os 50 trabalhadores, isto é, 50 braços úteis, entre mulheres e homens. Caso o senhor interesse, pode trazer o pessoal. Correndo por minha conta a responsabilidade do não cumprimento da obrigação ora feita, até o dia, digo, até os fins de abril próximo. 
Com os meus respeitos e consideração, cordialmente, Tércio Campos Leão. 

TRIBUNA DA IMPRENSA 3 de abril de 1959.

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