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quarta-feira, 2 de outubro de 2024

O WATER-SHOOT

“Sobe a rua, colhe a lua. Sobe a veia. Sobe a via. Sobe a vida”. 
 Rua Augusta. Lindolf Bell
 

A Cecilinha aquele dia resolveu estrear maiô novo, bem azul, como o céu do clube nos jardins. Comprado na casa Figueiroa, no centro – lá a mãe ia, perto do Mappin, gente boa. Logo de duas peças. Com os dois centímetros regulamentares entre o maiô propriamente dito e o sutiã. Uma novidade naquele verão de 53. Na piscina a rapaziada já esperava a Cecilinha. A corte de sempre. O Cássio pulou de pé (!) no water-shoot pra se exibir. Escorregou, caiu de costas, bateu na borda. Não havia médico, correria. A turma se dispersou. Fui socorrê-lo. A Cecilinha pôs um páreo meio grunge para a época e saiu com d. Cecília. Não tinha namorado, mas procurava o príncipe encantado. 

Era um tempo em que a gente ia pro clube de bonde. O 29, Pinheiros, ou o 45, Jardim Europa. Eles paravam numa pracinha, onde hoje é o Bolinha, por aí. Andava-se a pé por uma ruazinha, atravessava o mato ralo até o clube já com exuberantes árvores verdes. Marca dos alemães fundadores. O porteiro André dava o melhor dos bons dias... e os mauricinhos se quedaram ao redor da Cecilinha na piscina dali a instantes. Eu era duma turma mais velha, mas o ocidente deu chance prum bate-papo com a D. Cecília. Bonde subindo a Augusta. 

– Vai hoje ao baile? 
– Vou sim, mas não tenho mesa... 
– Pode ficar na nossa...! 
– Então, ta... Mas o namorado de sua filha vai ficar bravo... joguei de leve. 
– Absolutamente. Esses ‘garnisés’ não são de nada... 

Fui ao baile na maior animação. Ambiente festivo, orquestra de Silvio Mazzuca. Estava com a calça boca-de-sino, camisa jean-sablon, uma glostorinha no cabelo.; Todo mundo alegre. O salão pulava com a Jardineira, e com a Copacabana, música dos velhos carnavais. Tirei a Cecilinha pra dançar, mais linda que nunca: entre Doroty Lamour e Linda Darnell. Varamos a madrugada... sempre sob os olhares de águia do casal. O pai era comerciante conhecido e logo nos entendemos. Quem se frustrava era o grupinho da Cecilinha, aquele dia (noite) não tinha corte alguma. Na Amélia rodopiamos loucamente... cintura a cintura, surgiu um “chich to chick” gostoso. 

O namoro surgiu como o padrão exigia na época. Clube, só na piscina. Doceria “Yara” aos sábados a tarde, sempre d. Cecília na “cola”. Nada de cinema, Metrô ou Odeon. Só uma dancinha animada nas domingueiras, um primeiro beijo no rosto. Os telefonemas, os bilhetinhos, uma caixa de bombons com declaração de amos na saída do Elvira Brandão. Em 54, tudo corria bem naquele 4º centenário da cidade. O São Paulo já não tinha o Leônidas e o Corinthians era o campeão. E havia de acontecer: o pai de Cecilinha foi removido para Presidente Prudente pela firma de tecidos. Começaria vida nova lá. A despedida foi chorosa, o rompimento foi bem doloroso. 

– Não esqueço você, amor. 
– ... eu também nunca te esquecerei, amorzinho. 

Houve uma despedida na piscina, regada a guaraná e troca de lembranças. Glenn Miller no ar. Ninguém se conformava com a perda a Cecilinha. A família de Maria Cecília Braga Correa Dutra saia definitivamente do clube. Eu sofria, sofria. Estava arrasado. 

As voltas que o mundo dá. Trinta anos com vagas notícias de Cecilinha. 1984. Carnaval no clube. Levo meus netinhos. Salão de festas regurgita de criançada e pais acompanhantes. Alegria em torno de dois palhaços, confetes e bolas penduradas em penca... todos brincam. Súbito, uma voz conhecida:

– Você por aqui! 

Dou um giro à minha volta. É ela, a Cecilinha, linda como nunca, como sempre. Também carregando dois netinhos. 

 – ... sim... e você?... que surpresa... são seus netos? 

– ... São sim, me casei, não sabia? Estes são os dois filhos da minha filha, filha única. 

– ... mas que linda você está; e sua mãe? 

– Ficou em Prudente, meu pai morreu. 

E antes que eu respirasse fundo, contou, contou. O casamento com médico de lá durou alguns anos. Depois, separação. Incompatibilidade de gênios. “Eu, solta, alegre, gosto de sol, queria viajar e curtir a vida. Ele fechado, profissional. E ainda arranjou outra, o bandido”. Foi contando. O barulho do salão estava alto e abafava sua voz de rainha. Deixamos os netos num grupo e fomos conversar fora. A intimidade daquelas plantas verdes, as belas rosas, aquele “ar” do velho clube que conhecíamos tanto.. Um reencontro e tanto, nós dois suspirávamos lembrando, lembrando. Falei até de seu maiozinho azul. Combinamos um encontro para o dia seguinte, domingo. O afeto volta, sim, o verdadeiro amor nunca morre. Eu contei tudo, também, como voltei (pela viuvez) a uma solteirice digna... Fomos à “Yara”, sim, vimos um show no “The Platters”, jantamos no Fasano e dançamos, dançamos por aí. 

Faz agora nove anos que a Cecilinha e eu vivemos felizes. 

Você pode ver a gente entrando junto no clube, juntos. Pela entrada principal, á tardinha. Tomamos drinques no bar do tênis. Passeamos, curtimos alguns amigos, vou pra sauna, ela nada (sempre!) e conversa com as amigas. Curtimos verdadeiramente o clube, nossa casa, nesta cidade que é mais sampa do que nunca, nestes 450 anos de muitas estórias. Somos felizes, sim, apaixonadamente... sempre.

Outro dia, a Cecilinha me confidenciou: 

– Sabe aquele dia no acidente com o Cássio, no water-shoot?
– ... Lembro sim, o que houve!? 
– ... foi o primeiro dia que notei você... Você socorria aquele amigo e eu vi como era bonito de perfil.

Andamos até o Centro Pró-Memória, de mãos dadas. Pena que o water-shoot não exista mais. Era perigoso, aquele trampolim maluco, americano.

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