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segunda-feira, 10 de novembro de 2014

FLÁVIO DE CARVALHO - Antes de tudo um desenhista


Em 4 de junho de 1973 Flávio de Carvalho morria em Valinhos. Flávio Resende de Carvalho, fluminense de Barra Mansa (1899), era engenheiro civil, arquiteto, desenhista, pintor e escritor. Foi membro do Instituto dos Arquitetos do Brasil, membro estrangeiro do Instituto Psicotécnico de Praga, “fellow” do Internacional Institute of Arts and Letters, membro ativo da Academia de Ciências de Nova York e cavaleiro da Ordem de Sant Hubert. Excepcional artista, desenhista da maior importância, Flávio de Carvalho foi um dos pioneiros da arquitetura contemporânea no Brasil, apresentando já na década de 20 projetos considerados revolucionários e, por isso mesmo, recusados na maior parte das vezes. O arquiteto está muito a frente de seu tempo. Mas, não é na arquitetura que Flávio se notabilizaria. Apesar de seu espírito vanguardista, não foi seu trabalho como arquiteto que lhe seu o empurrão decisivo para ingressar na fama. A pintura e o desenho de Flávio, isto sim, forma a sua mola propulsora. Mas, ainda, não foram nem a pintura e nem o desenho que tornaram este homem corpulento, irreverente, “um louco divino” com o chamou Abreu Sodré, um nome popular. Foi o seu lançamento de moda em pleno viaduto do Chá, depois das primeiras experiências revolucionárias, à luz do dia, que tornou o artista comentado e discutido pelo homem da rua. Esta exibição pública de saiote criado por ele para uso dos homens foi manchete nos jornais em 1956, pelo insólito do acontecimento, causando admiração, espanto, surpresa e escândalo entre os transeuntes do centro de São Paulo. O sucesso que Flávio de Carvalho não teve como arquiteto ou como lançador de moda – mas criando impacto nestas duas áreas – teve de sobra, na pintura e no desenho. Flávio de Carvalho se formou em engenharia civil na Inglaterra onde também frequentou a escola de Belas Artes, se interessado por pintura e escultura. Regressando ao Brasil, suas primeiras atividades foram exclusivamente ligadas à engenharia civil. Trabalhou por muitos anos na exploração de estradas de ferro, exercendo função nas áreas de topografia, cálculo e desenhos de traçado de linhas. Sua primeira grande experiência ocorreu quando de sua transferência para o escritório Ramos de Azevedo, dando início a sua atividade em arquitetura muito embora tenha iniciado como calculista de concreto armado e estruturas metálicas. Vivamente impressionado com as idéias de Le Corbusier apresentou em 1927 o projeto do palácio do governo do Estado de São Paulo, a primeira manifestação da arquitetura moderna no Brasil.

ASSIM FOI FLÁVIO
Segundo Enrico Schaeffer, professor de História da Arte na Fundação Armando Álvares Penteado, Flávio de Carvalho foi riquissimamente dotado e ao mesmo tempo modesto e até mesmo tímido. E teve idéias tão avançadas como arquiteto que não foi compreendido no seu tempo. Considera-o como o maior desenhista brasileiro e como pintor ele pertencia à escola do fauvinismo. Relembra ainda que Flávio de Carvalho, atendendo a convite dos alunos da faculdade de Arquitetura Brás Cubas, de Mogi das Cruzes, sua palestra teve calorosa acolhida tornando-se uma discussão animadíssima. Sobre Flávio, fala com entusiasmo: – Conheci Flávio na casa do Lasar Segall durante um jantar. Desse encontro nasceu uma amizade longa e profunda. As suas festas em Valinhos, que ele costumava dar quando aqui chegava algum cientista ou artista europeu, não eram simplesmente reuniões sociais. Eram encontros de alto valor cultural que se prolongavam às vezes até bem tarde. Flávio foi uma pessoa com quem se podia discutir qualquer problema artístico. – Tanto o lançamento da moda (saiote para os homens) como aquele famoso acontecimento da procissão na Praça da Sé, quando Flávio manteve o chapéu na cabeça, eram preocupações suas de ordem sociológica e nuca desrespeito ou outro sentimento negativo. Ele queria analisar o comportamento das massas em certas situações para elas chocantes. E desse pensamento surgiu o seu famoso e muito discutido “Bailado de Deus Morto”, que foi só duas ou três vezes encenado.

A ARQUITETURA É UMA ARTE
Em 1973, cerca de dois ou três meses antes da sua morte, Flávio de Carvalho foi entrevistado pelos atuais arquitetos (então estudantes da faculdade Brás Cubas), Ronaldo Vicentin e Luiz Otávio Franca, após debate do artista com os estudantes mojiano. Esta entrevista se reveste de importância pelo fato de ser a última aparição de Flávio de Carvalho em encontros dessa natureza, isto é, debates com estudantes. A entrevista foi realizada para a Urbis, uma publicação estudantil, que infelizmente não vingou por dificuldades naturais. Esta foi a entrevista: 

Urbis: Qual o panorama da arquitetura quando você voltou ao Brasil? 
FC – A arquitetura brasileira quando aqui cheguei, tinha uma base eminentemente clássica e colonial. Aparecia também o art-noveau importado da França que proliferava em muitas residências particulares, p. ex., na Av. Paulista. 

Urbis: Essa importação da art-noveau apareceu devido à economia cafeeira? 
FC – Eu acredito que os milionários do café ajudaram a trazer o estilo art-noveau para o Brasil. 

Urbis: E o colonial? 
F.C. – O legítimo colonial não era muito conceituado. Existia um estilo colonial de Dubugras, que estava muito em voga. Dubugras era um arquiteto francês de muito bom gosto que vivia aqui no Brasil. 

Urbis: Como você iniciou a arquitetura moderna no Brasil? 
F.C. – Eu tomei parte em diversos concursos. No concurso de escolha da embaixada da Argentina, no Rio de Janeiro em 1928, eu fui expulso. Foi um dos meus melhores projetos. Dez anos depois, por intermédio de alunos da Escola de Belas Artes, soube que meus projetos haviam sido jogados na latrina da escola. Enfim, havia uma campanha muito grande contra qualquer ideia de renovação arquitetônica. No concurso do palácio do Governo de São Paulo, em 1927, não fui expulso, mas também não fui premiado. Entrei em muitas concorrências, inclusive para monumentos. No do “Soldado de 32” tirei segundo lugar. Concorri no exterior com alguns projetos e num deles, o “Farol de Colombo” recebi menção honrosa. Era um concurso internacional do qual participaram de 500 a 600 arquitetos de todo o mundo. Enfim, eu tive uma vida muito agitada em matéria e arquitetura, com pouca sorte. 

Urbis: Não acha que o arquiteto deve participar de outras atividades além da própria arquitetura? 
F.C. – Acho que a arquitetura é uma arte, e sendo uma arte, envolve sensibilidades que não estão na percepção imediata das coisas. Envolve sensibilidades inconscientes que estão no subconsciente do homem, e nas suas origens. Envolve as mesmas sensibilidades que orientam um pintor, um escultor, um decorador. Em minha opinião, a parte fundamental e básica da arquitetura é a arte. 

Urbis: Fale sobre planejamento e urbanismo. 
F.C. – O urbanismo é função de um planejamento. O planejamento está na base do urbanismo. Ele não é só planejamento, é também instinto. Tem uma parte puramente artística no urbanismo que é a arquitetura. Ele é mais técnico que a arquitetura mas está intimamente ligado a ela. 

Urbis: Como nasceu a arquitetura moderna? 
F.C. – Na realidade a arquitetura moderna nasceu com um grande arquiteto francês chamado Violet le Duc. Em 1850 ele afirmou, a respeito da locomotiva, que ela tem sua fisionomia peculiar, não sendo resultado de caprichos, mas de pura necessidade. Exprime potência controlada; seus movimentos são terríveis e amáveis. Ela avança com grande impetuosidade, ou então quando em repouso, parece tremer, com impaciência. A sua forma exterior é apenas a expressão da potência. A locomotiva, portanto, tem estilo. Alguns dizem que é apenas uma máquina feira. Porque feia? Não tem ela a verdadeira expressão da energia brutal? Não é ela uma massa concreta, organizada, possuindo um caráter peculiar? Uma coisa tem estilo quando tem expressão apropriada para o seu uso. Nós que na fabricação do nosso maquinário damos a todas as partes a forma e a forma necessitadas sem nada supérfluo na nossa arquitetura ridiculamente se acumulam formas e feitios de todos os lados, resultantes de princípios contraditórios. Chamam isso de arte? Esse comentário de Violet le Duc está na base da arquitetura. Ela entrosa a importância do aperfeiçoamento técnico no mundo, na obtenção de novas idéias, como elemento desabrochador na arte e na arquitetura – concluiu Flávio de Carvalho.

FILME, LIVRO E TÚMULO: INACABADOS
O pintor J. Toledo, “o grande amigo de turbulência mental tão indispensável”, como o próprio Flávio escreveu na dedicatória do retrato que fez de Toledo, foi um dos poucos que tiveram acesso ao seu leito de hospital. Ali desenhou seus últimos instantes de vida, tal como o amigo querido o fizera com sua mãe na célebre “Série Trágica”. Toledo, que fora nomeado por Flávio o seu biografo oficial, passou a ser depositário de todo o seu material biobibliográfico: milhares de recortes de jornais que remontam a 1927, revistas, manuscritos, originais de livros inéditos, álbuns de projetos arquitetônicos, fotos de família e amigos, toda a crítica se sua obra e uma infinidade de coisas mais. Em preparação está o livro, cuja maior parte é completamente desconhecida do público. Segundo J. Toledo, o texto mostra o polimorfismo do artista, com suas pesquisa, decepções, polêmicas. O último capítulo trata exatamente dois acontecimentos que antecederam sua enfermidade bem como toda a polêmica testamentária e o descuido governamental gerado pelo seu infausto falecimento, em 4 de junho de 1973. O filme, interrompido quando Flávio sofreu o derrame cerebral, foi rodado em 16 mm e tem duração de 45 minutos. Trata-se de um documentário e mostra Flávio de Carvalho no seu trabalho de arquiteto, pintos, desenhista e sua própria vida íntima. O monumento funerário, cujo projeto foi executado por J. Toledo e, conjunto com o arquiteto Ricardo Badaró foi entregue à prefeitura de Valinhos que também pretende preservar o patrimônio do artista para futuramente criar ali criar um museu para aquele que a muita luta e polêmica abriu, a golpes de talento, os caminhos da Arte Moderna no Brasil.

A SÉRIE TRÁGICA por ALMEIDA SALLES
– “Flávio é o maior desenhista brasileiro, ontem e hoje”. 
Francisco de Almeida Salles diz isso com tranquilidade. Ele foi um amigo que frequentou como tantos outros intelectuais, artistas, gente de teatro, modelos, jornalistas, que tinham intimidade com o artista. Em 1967, a convite da EDART, Almeida Salles fez a apresentação da Série Trágica de Flávio, desenhado pelo artista enquanto sua mãe Ofélia morria. Esse texto foi apenas divulgado pelos 1.500 exemplares do álbum e também apresentava mais 20 desenhos de Flávio, sob o título “jeito de ver mulher”. Dele destacamos os trechos iniciais: “Quando a “Série Trágica” foi revelada em 1947, um halo sinistro a envolveu. Estávamos egressos no Brasil de Getúlio Vargas, doméstico e pastoril. A Bienal – essa carta de alforria do nosso municipalismo artístico – ainda não tinha nascido. Regíamos com o sangue da província, ainda traumatizada pela revolução literária de 1922 e embora Oswald de Andrade se preparasse para morrer e Mário de Andrade tivesse morrido há dois anos, a ousadia de Flávio de Carvalho, postando-se lúcido diante do coma maternal, abalou o burgo piratiningano, rico e burguês, mas submisso aos padrões estereotipados da moral e do sentimento herdados do reinado patriarcal de Dom Pedro II”. “Ainda, nesse tempo, colavam-se gesso á cara mortuária dos grandes figurantes da cena do mundo. Ninguém se arrepiava com os moldes que nasciam das faces cavernosas, já imersas no sonho da morte. Mas um artista de 48 anos, nascido na passagem do século, filho único de Ofélia Crissiuma de Carvalho, não sabendo expressar-se mais profundamente por intermédio da sua gagueira de traços acumulados sobre a folha alva, ousou transformar o quarto da mãe morrendo em atelier de registro do estranho fato.”

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