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sábado, 1 de novembro de 2014

GOELDI, pioneiro e mestre da gravura


Um depoimento de Nelson Mendes Caldeira

Seu quarto era cheio de pedacinhos de madeira que ele cortava e lixava, para pendurar na parede ou guardar numa pequena caixa, como jóias. Falava dos diferentes tipos de madeira com um carinho e um conhecimento que revelavam as raízes profundas de arte de um xilógrafo: “esta é quente e dura; esta outra é sedosa, macia ao corte”. E passava a mão pelos pedaços de tábuas, como a provar o que dizia.” 

Forte, agitado, inquieto, falando alto, cheio de idéias, jovial e franco atrás dos seus cabelos brancos, pouco mais de sessenta anos, Nelson Mendes Caldeira lê as palavras de Ferreira Gullar sobre Goeldi, publicadas no catálogo da Galeria Astréia, que expôs obras do mestre da gravura em maio de 1969. Dos anos 50 para cá, Nelson, descendente quatrocentão de bandeirantes, foi um dos empresários nacionais mais vitoriosos: trouxe cervejarias para o nosso país, ergueu o CBI (na época, o maior edifício de concreto armado do mundo), inovou o mercado imobiliário, atuou no campo dos investimentos, etc. Fez-se amigo e admirado por gregos e troianos, Kubitschek e Lacerda, Abreu Sodré e Natel (seu sócio num empreendimento imobiliário). Mas, mais que tudo, como a grande obra de seu espírito de “entrepreneur” decidido - projetou, fundou e ergueu o Museu Goeldi. Ele se recorda, ágil na conversa, ao lado de sua irmã Zuleika. 

Conheci Oswaldo Goeldi, desenhista, gravador e professos, nascido no Rio em 1985, sessenta e cinco anos depois, em 1960,um ano antes de sua morte infausta... Estava no Rio, com Maria Eleonora Odivewllas, minha segunda mulher, que o conhecido artista Reis Júnior retratava... Reis vivia com Beatriz Reynal, poetisa, afamada, lutadora da Resistência francesa na guerra, e ela, por sua vez, grande amiga de Goeldi... Disse a Reis que desejava comprar uma gravura do mestre gravador, para minha pinacoteca particular. Reis me levou ao apartamento de Goeldi, pobre e modesto, situado num prédio entre Copacabana e Ipanema... O artista recebeu-nos com simpatia, embora seu ar grave, fechado, conversando com inteligência, era um tipo de alemão, nariz agudo, olhos penetrantes, mostrando sensibilidade em tudo... Abriu uma vela cômoda e começou a mostrar seus trabalhos de grande categoria... Separei maravilhado, ao invés de uma, 32 gravuras... Na hora, não decidi sobre a compra, retirei-me, ficando de voltar noutra hora para o acerto final.”


Nelson é um apaixonado por Goeldi - até hoje - e pela boa gravura. Em seu apartamento, na sala principal, estão alinhadas gravuras de Goeldi (sempre), Hayter, Lurçat, Pignon, Sérvulo Esmeraldo, Sued, Artur Luiz Piza (brasileiro que mora em Paris, considerado um dos 10 maiores gravadores do mundo), Campilo, Friedlander, Severini, Erni, Cursio, Hamaguchi, Gruber, Grassman, Aldemir, Graciano, Antônio Henrique Amaral, Darel, Isabel Pons, muitos outros. Ele corre os olhos pela coleção, continua: “Voltei ao ateliê do Goeldi, ele ia separar afinal 5 gravuras para mim, mas ficaram 11, não houve jeito de diminuir... Fiquei com essas 11, e ele me deu mais uma de presente, portanto, 12... Era, esta, “A Despedida”... Disse-me que ia expor na Bienal do México, ficou contente com o negócio e, eu, honrado... As obras foram para o México e, lá, Goeldi recebeu o prêmio internacional de gravura... Dias depois de ler a sua vitória maiúscula, abro o jornal, em São Paulo, e vejo a notícia de sua morte... Fiquei muito chocado, e, quanto às gravuras, recebi-as do Itamarati, de volta, meses depois, com grande atraso... Mas já estava tomado do vírus goeldiano, tinha comprado gravuras e desenhos de Goeldi de Yolanda Penteado, Quirino da Silva e Grassman... Hoje, entre tudo, tenho umas 160 obras catalogadas do grande ás da gravura do Brasil em todos os tempos.” Nelson levanta-se, mostra peças antigas de seu mobiliário, trazidas da Europa: são armários do século XVII - ele conhece 48 países, exatamente. Sua primeira mulher, Cristiane Mendes Caldeira, hoje mora em Paris, era conhecida também pela grande sensibilidade humana e artística, a maior conhecedora da obra de Proust que tivemos. O mecenas empresário volta a sentar. “

"Em 1962, Di Cavalcanti expôs numa galeria da Rua São Luiz, e fomos logo depois ao atelier de Gruber - esse pintor e gravador - Darel, Sued e alguns outros... Conversamos e Gruber sugeriu que eu comprasse a coleção de gravuras de Goeldi, que o artista ao morrer deixara testamentariamente a Beatriz Reunal... Procurei alguns amigos empresários e todos achavam que eu estava alucinado, achavam esquisito eu, homem de negócios, atarefado e com mil fontes de trabalho, andar ocupado com amigos artistas... Não desisti, tomei um avião, fui ao Rio, encontrei-me com Darel e Grassman, fomos ao encontro de Beatriz Reynal... Ela ficara não só com toda a obra goeldiana, como o seu material do ateliê, chapas antigas, e ainda terras que Goeldi possuía em Petrópolis... Comprei logo 30 gravuras... Depois, efetuei novas aquisições, sempre de Beatriz, chegando tudo a 160 obras.” 
Nélson Mendes Caldeira esteve dois meses doente, foi hospitalizado, agora volta ao trabalho no escritório. Mas ainda não chegou a hora de sair, assunto Goeldi o apaixona, fala de cátedra 

Já em São Paulo, influenciado por amigos e por decisão que já ruminava anteriormente, decidi fundar o Museu Goeldi, tendo como base as 160 obras do mestre gravador... Tudo foi feito num átimo. Instalei-o em minha própria casa, no terceiro piso inferior, eu morava numa ampla casa da Avenida Higienópolis, perto da Angélica... Ficou tudo muito bonito o Museu, amplo, iluminado, tinha placas indicativas, era visitado por jornalistas, artistas, pesquisadores, museólogos do Exterior, que muitas vezes interrompiam-me no almoço para que eu descesse e falasse - cm que prazer! - sobre Goeldi... Mas o trabalho aumentou, o Museu vingou, tive alguns problemas, mudei de casa, e decidi passar todo o acervo para a Fundação Armando Álvares Penteado, de meus amigos Anie Álvares Penteado, Lúcia e Roberto Pinto de Souza... E a Fundação fez uma monumental mostra de Goeldi, em 1964, mostrada por Cyro Marx, as três salas repletas de suas gravuras, com prefácio do catálogo do próprio Roberto. A exposição tinha 130 obras de Goeldi e umas 30 de Grassman, também cedidas por mim. E foi um sucesso.”


Zuleika mostra o catálogo, ali se informa sobre a criação do Museu Goeldi, “contribuição inestimável de Nélson Mendes Caldeira ao Brasil, ao desenvolvimento de nossas artes plásticas”. E também cita os auxiliares de Nélson na empreitada, Grassman, Darel, Gruber, Sued, Flávio Motta, Jayme Maurício, Geraldo Ferraz, Beatriz Reynal, Reis Júnior e Quirino da Silva. E Roberto ainda comentava sobre o conjunto de desenhos, aquarelas e gravuras da exposição, “a imensa sensibilidade, a poderosa imaginação, a extraordinária desteridade artesanal que faz de Goeldi o maior gravador da época contemporânea, aquele artista que recebeu, com unanimidade de aplausos, os maiores prêmios internacionais da I Bienal de S. Paulo e da II Bienal do México”. 

O acervo do Museu Goeldi ficou depositado na Fundação Armando Álvares Penteado e agora é novamente exposto. O Museu de Arte Brasileira, dirigido pelo professor Carlos Von Schmidt, apresenta as obras numa sala à direita. Elas ali estão enfileiradas: gravuras, xilogravuras coloridas, aquarelas, guaches, litografias, desenhos. Líricas, trágicas, a série didática, a série do homem e a guerra, gravura de técnica mista, como aquele “O Sinaleiro”, onde Goeldi usou carvão vegetal, carvão comte, toques de nanquim, pena, toques de pastem vermelho e azul. Ali estão também os retratos de “Carlitos”, gravuras humorísticas, noturnos, a “Cabeça Fantástica” (Phantastiken Kopf) feita por Goeldi na Alemanha em 1930, o seu “Auto-Retrato”, realizado a lápis e carvão vegetal em 1954. Em geral, as 130 peças abrangem um período que vai de 1940 a 1961. Não há catálogo desta vez. Nélson Mendes Caldeira, que se deslocou até o Museu, corre à frente de cada obra, parece um menino encantado, anota detalhes, observa, comenta com Zuleika as excelências de Goeldi. 

O Museu Goeldi tinha secretária e auxiliar, era muito visitado, mas parei com ele, eu morava em cima, mudei, fiquei sem condições de dar um atendimento melhor ao público... E nós, os goeldianos fundadores, raramente nos reuníamos... Antes da decisão de localizar o acervo aqui na Fundação, a coleção foi para o Rio para uma grande exposição no Museu de Arte Moderna, junto com outras obras de Goeldi emprestadas por Abelardo Rodrigues... Esteve também no Museu Nacional (3 salas), depois andou na Bienal, em 1963, onde Goeldi teve Sala Especial... E ainda, antes de fixar aqui definitivamente, andou pelo Paraguai, a convite de Lívio Abramo, que o expôs em Assunção, com um catálogo muito bem elaborado... Agora, está aqui na Fundação, servindo a estudantes, gravadores, artistas e ao público em geral.” 

Qual a importância de Goeldi na arte brasileira? 

O pai da gravura brasileira, pioneiro e mestre... Um dos maiores gravadores, de todos os tempos, do mundo... Eu gosto e conheço gravura, mas como Goeldi, perfeito em tudo, ainda não vi... Seu talhe, seu conhecimento da técnica, a composição temática, o domínio artesanal, a mistura de técnicas, a perfeição das tiragens - das quais não fazia mais que 5 a 10 de cada matriz - sua honestidade profissional, tornam Goeldi um artista maior da arte contemporânea, genial e imortal... Fez seguidores, criou uma escola, ensinou, estão aí Grassman, Sued, Mundi, Darel, muitos outros, e o próprio Gruber, tem muito de goeldiano em muitas obras suas... Atualmente gosto enormemente da obra de Grassman, de Gruber e de Artur Luiz Piza, que mora em Paris, gravando uns “reliefs” (relevos) da mais alta categoria de criatividade... E tantos outros que se projetam, aqui e fora, os japoneses, por exemplo, mas nenhum, nenhum mesmo, com a força, o lirismo, a criatividade, a expressão, o domínio artesanal que Goeldi atingiu, e que dificilmente será ultrapassado neste século...” 


Como era a figura humana e artística de Goeldi? 

Goeldi, nas vezes que fui ao seu ateliê, e segundo vi, trabalhava incessantemente, voltado inteiramente para sua arte... Preciso, técnico, perfeccionista, consciente, eliminava as provas que julgava incorretas, até acertar... Conhecia na palma da mão o seu meio, evidentemente seu aprendizado em Genebra, onde cursou a Escola de Artes e Ofícios, e o encontro em Berna, com o desenhista austríaco Alfredo Kubin, foram marcantes em sua obra... Pessoalmente, era taciturno, fechado, introspectivo, melancólico, solitário, esta talvez, sua característica principal... Amava a gravura, amava Beatriz Reynal, os dois pólos de sua existência fecunda e admirável.

Nélson Mendes Caldeira está falando que Goeldi inovou mil coisas na gravura, técnicas, cores, o uso do papel japonês. Tudo construiu com genialidade nata. Acha que ele foi compreendido em vida e mereceu desde sua morte, a consagração e críticos e artistas. Agora, falada doação que fez de 5 gravuras de Goeldi,ao Museu de Arte Moderna de Nova York, ao Museu de Arte Brasileira da Fundação Armando Álvares Penteado, ao Museu de Arte de São Paulo, Ao Museu de Arte Contemporânea e ao Museu de Arte Moderna. Nélson faz parte dos conselhos diretores do MAB e do MASP, e sua pinacoteca particular, com cerca de mil obras, é das melhores do país: Mignard (pintor preferido de Luiz XV), Picasso, Braque, Di, Pancetti (organizou a primeira mostra de Pancetti, depois da sua morte), Portinari, Guignard, Aldemir, Volpi, Gruber, Grassman, Genaro de Carvalho, Gomide, Borges Lagos, Mabe, Djanira, Bandeira, Brenand, Raimundo de Oliveira, Elisa Martins da Silveira, Heitor dos Prazeres, tantos outros... Não fosse ele um mecenas da arte atual do Brasil, segundo críticos e artistas. Ele olha, entre tantas obras, o retrato de sua filha Patrícia Maria, de 12 anos, exímia esquiadora.

Parece que vejo Goeldi sisudo e grave, com sua boina, seu cigarro no canto da boca, seu reto caráter... O Goeldi falando com sotaques, rememorando... “Em 1915 comecei a desenhar, obedecendo a uma necessidade interior... Em 1919 voltei definitivamente ao Brasil, desenhando muito na escola da rua... A gravura em madeira comecei em 1924... Nunca sacrifiquei a qualquer modismo o meu próprio eu - caminhada dura, a única que vale todos os sacrifícios”.

Texto: Luiz Ernesto Machado Kawall - TRIBUNA DE SANTOS, 30 de junho de 1972

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