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quarta-feira, 26 de novembro de 2014

FLEXOR

Flexor era um pioneiro, um lutador, um inovador, um bom amigo, o melhor companheiro, um homem justo, um incentivador dos artistas e das artes... Sim, sinto comovidamente a sua falta, sempre, principalmente nas horas matutinas, quando acordava estuante de vida e passava ao trabalho preciso, ordeiro, abnegado e sincero do dia-a-dia. Meu marido criou e deixou uma escola, formou muitos artistas, e sei até de muitos alunos que, depois da morte de Flexor, não conseguiram mais pintar. Margot viveu com Flexor quase 40 anos. Tem cabelos brancos alourados, usa óculos de grossas lentes e aros. Não esconde tique e ar parisienses. Ao lado de Evelyn e Romy Fink e de Gregory Fink, proprietários da Chelsea Galerias de Arte, de autoridades, empresários, artistas, gente da sociedade, críticos e jornalistas, ela abre a mostra de trabalhos de Flexor, ainda não faz um ano da morte do mestre abstrato. Está ali também Álvaro Pinto de Aguiar Júnior, do Grupo Novo Mundo, cujo Centro de Artes cooperou decididamente para o sucesso maior da mostra. 
Margot está depondo: 
Flexor era um homem cerebral, pensava muito antes de falar, de idealizar uma obra, emocionava-se dentro do seu processo criativo e cada vez que concluía um quadro... Em seus últimos trabalhos se vê perfeitamente as manchas de um círculo que se fecha em torno de si mesmo, isso era ele, puramente emocional e cerebral... Na última fase era, sem dúvida, um cubista e o maravilhoso abstracionista-lírico de sempre. 
Além do térreo sofisticado, a galeria tem mais dois pisos, de pedra mineira, e o público já sobe a escada e mármore para ver as obras – 36 óleos e 26 aquarelas – de Flexor, colocadas também nos andares superiores. 
Flexor trabalhava muito, pois, embora romeno de origem, tinha uma ordenação verdadeiramente germânica no trabalho... Sua cultura era vasta e de formação francesa... Quando trabalhava tinha um tudo em ordem, fazia um quadro sem deixar sair um pingo de tinta no chão... Era organizado e metódico, começava geralmente a pintar às 9 da manhã e deixava ao meio-dia. Almoçava bem, comia de tudo – antes de cair doente – descansava um pouco, voltava a trabalhar... Recebia seus inúmeros alunos, pintava escutando Bach, Vivaldi e Beethoven, música clássica, sempre. 
Flexor formou um grupo em torno de si e de sua arte, orientado dezenas e dezenas de artistas em seu Ateliê Abstração... Todos bons artistas. Entre outros, Nicola, Douchez, Raimo, Wega, Izar Amaral Berlink, Anatole Wladislav, Alberto Teixeira, Gisela Lerner, Iracema... Com pensamento claro e palavra fácil, gostando de desenhar e adorando ensinar. 
Flexor foi um dos maiores professores de arte que o Brasil conheceu... Além disso, foi o primeiro artista a introduzir entre nós o abstracionismo, e, no começo, foi muito combatido. O público não estava preparado para esse gênero moderno da pintura... Mas desde há uns 10 anos, Flexor foi reconhecido justamente, como um dos mestres da arte da atualidade. 
Flexor pintou, ao que sei, mais de mil quadros – a óleo e aquarelas. E muitos desenhos. Mas, gravura, só fez uma. “A mulher de pedra”, para o NUGRASP – Núcleo de Gravadores de São Paulo... Foi sua única gravura, frita a pedido de Izar, e é muito bonita... Seu último óleo chama-se “Venus”, esse que, aqui na exposição da Chelsea, está ao lado de meu retrato, pintado em Nice, há 40 anos, em guache envernizado... Bons tempos, aqueles. Conheci-o mocinha em Paris, lá por 1932 e nos casamos no mesmo ano... Fomos, sim, muito felizes, e tivemos dois filhos, que nasceram na França, em Paris, André Vitor, que lá moa até hoje, e psicólogo e o outro, Jean-Marie. Este ficou aqui e é diretor do Departamento de Geofísica da Universidade da Bahia... 
Flexor nasceu na Romênia, mas estudou na França, que deu forma à sua cultura artística e humanística... Conheceu, em Paris, Lhote, Léger, muitos outros mestres e começou o abstracionismo influenciado por Leon Degand, que foi o primeiro diretor do Museu de Arte Moderna de São Paulo, e que já fora seu amigo na França... Antes disso, Flexor era geométrico, foi cubista, pós-cubista... Quando jovem, foi pintor de nus em Paris, isso antes da guerra. Tinha então influências do impressionismo... Em sua última fase, Flexor era um misto de abstracionista e cubista, misturando lembranças de seus nus e dos tempos da geometria e da abstração da sua idade madura. 
Flexor adorava o Brasil e a arte brasileira, sem embargo de ter sido um pintor internacionalmente conhecido... No começo, aqui, foi influenciado pela cor e pelo barroco brasileiro. Seus amigos mais chegados eram Sérgio Milliet, que almoçava duas vezes por semana em casa, Mário Pedrosa, Antonio Bento, Luiz Martins, José Geraldo Vieira e, entre os pintores, dezenas e dezenas, mas, íntimos, mesmos, dois: Ianelli e Douchez... Seu “hobby” era colecionar santos antigos e pedras, peixes fossilizados do Ceará... E adorava, sempre, tocar piano, mas só peças clássicas. Não gostava da pintura nem da música populares... Era mais místico que religioso; misticismo que se reflete nas suas numerosas obras religiosas. 
Margot dá um suspiro, recorda-se de Flexor em Praia Grande, onde iam nos fins-de-semana, e Flexor pintando no ateliê improvisado da casa de praia... A casa de São Paulo, a da Vila Mariana, Rua Gaspar Lourenço, 587, projetada pelo arquiteto Rino Levi, foi inspirada no ateliê de Flexor, de Paris, com um mezanino alto, onde o pintor tinha seus pertencer artísticos... Tudo Margot diz que conserva como a morte encontrou Flexor, naqueles dias horríveis da operação precipitada no Hospital Santa Catarina... O mesmo ateliê em ordem. A mesma sala organizada, o belo salão de exposição, com umas 50 telas do artista companheiro, uma, duas, três, de cada fase... Fotos, álbuns, recortes, a fita do Museu da Imagem e do Som do Rio; Flexor foi ao Rio de Janeiro em 1968 e gravou seu depoimento para a história. 
Romy Fink (dirigiu durante muitos anos o Balé Russo de Monte Carlo) é inglês e fixou-se há 11 anos no Brasil. Dirige, ao lado de Evelyn e do filho Gregory, as três Chelseas da Capital e a do Guarujá. Na Inglaterra e outros países europeus, lidou também com livros de arte e foi crítico de arte e famoso “marchad”. Fink disse de Flexor: 
Nos últimos 10 anos de sua vida, houve um raro relacionamento entre Flexor e nossa galeria, a Chelsea. Esse grande artista do Brasil e do mundo havia exposto conosco seis vezes, sendo duas em Nova Iorque e Chicago. Tínhamos com Flexor uma amizade íntima e entendíamos sua arte, sua obra, seu ser como artista. Flexor situa-se num plano elevado na arte contemporânea, ao mesmo nível de mestres europeus e dos mestres da pintura chinesa da época “Sung”. Deu nova grandeza à pintura, foi o primeiro artista que encontrou uma simbiose perfeita entre suas concepções filosóficas e a pintura – linguagem falada – que se exprimia com arte e com mensagem. E afirmava que a ideia de se fazer uma obra de arte, sem exigir do público uma interpretação, é mera decoração. Muitos pintores já conseguiram fazer isso quando se tratava de misticismo ou religião. Mas Flexor adotava ideias da filosofia moderna, em t ermos de pintura atual. Por exemplo, a filosofia da escola de Carmap, que é incompreensível para pessoas não especializadas. Ele tentou explicar e manifestar a todos que se aproximada de sua arte de uma maneira bem séria. Flexor nunca achou que a pintura se pudesse olhar “em passant”, mas que uma obra tem que ser comtemplada e entendida e, para ser mais que entendida, amada. A obra de Flexor vive em nós, com suas novas lições, novos ensinamentos, novas concepções de imortalidade. Vivi e viverá, enquanto o homem tiver olhos para ver e compreensão para entender. 
Samson Flexor nasceu em Soroca, na Romênia, em 1907. Pintor, desenhista e professor. Estudou na Escola Superior de Belas-Artes e na Academia Ranson de Paris, participando, desde 1926, na capital francesa, dos Salões de Outono, das Tulherias e dos Independentes e ainda do Salon des Surindépendentes, de cuja direção foi membro entre 1929 a 1938. Nesse período inicial de sua carreira, segundo sua nota biográfica publicada no “Dicionário de Artes Plásticas do Brasil” de Roberto Pontual, dedicou-se à pintura mural com predominância dos temas sacros e realizou exposições individuais em Paris, Nova Iorque, Bruxelas, Lisboa, Stuttgart e Montevidéu. Nessa época travou contato com André Lhote, Fernand Léger e Henri Matisse e veio um pouco mais tarde ao Brasil, fixando residência a partir de 1940 em São Paulo. Terminou aqui a série “Composições Sobre o Tema da Paixão”, de estudos expressionistas e cubistas, onze telas sobre a paixão de Cristo, que expos no Museu de Arte Moderna de São Paulo Em 1951. Realizou em 1948 uma exposição de seus trabalhos semi-abstratos de temas brasileiros numa galeria de Paris. Estimulado por León Degand, que dirigia então o Museu de Arte Moderna de São Paulo, passou a dedicar-se à pintura de concepção abstrata, fundando a seguir a escola e o movimento “Ateliê Abstrato”. De 1957, quando viajou e expôs nos Estados Unidos, até 1971, realizou cerca de 50 mostras individuais no Brasil, nas Américas e na Europa; participou de mais de 20 mostras coletivas, de seis Bienais de São Paulo, de Veneza (1954), de Tóquio (1955) e dos Salões Paulistas de Arte Moderna (Grande Medalha de Ouro); primeiro prêmio, em 1970, da Bienal de Montevidéu. E realizou afrescos oficiais em Paris, painéis em São Paulo, painel geométrico (esmalte) no Clube Atlético Paulistano, afrescos (300 metros quadrados) da Igreja do Perpétuo Socorro em São Paulo, projetos de vitrais para a igreja de Copacabana do Rio de Janeiro e numerosos afrescos em residência particulares. Suas obras estão em coleções famosas e em museus de arte moderna de São Paulo, Rio, Paris, Montevidéu, Genebra, Chicago e Moscou. Naturalizou-se brasileiro em 1955. Casou-se com d. Margot Flexor em Paris em 1932 e teve dois filhos: Jean Marie e André Vitor. Morreu no dia 31 de julho de 1971no Hospital Santa Catarina em São Paulo. 

Um combatente da pintura moderna 
Por quinze anos Samsom Flexor empenhou-se, no Brasil, pelo ensinamento e pelo exemplo num útil combate pela pintura moderna. Por mais positiva que fosse essa ação não teria seu valor se não se apoiasse numa obra pessoal que não cessou de crescer e de assegurar sua continuidade. Com ela, Flexor voltou a Paris, neste bairro de Montparnasse, onde trabalhou outrora e que permaneceu caro a seu coração. Tive ocasião, em diversas bienais de São Paulo, de seguir as etapas de sua evolução e me parece que ele chegou hoje a um ponto de equilíbrio feliz entre pesquisas que foram sempre muito sábias e uma expansão de formas que conquistaram a liberdade. A construção, já de muito tempo aparente, tornou-se subjacente e possui mais autoridade. E como em pintura restituir às formas este movimento vital, essa respiração que lhe é indispensável, sendo pelas cores que vivem elas também, segundo a luz onde elas mergulham, versáteis, plenas de evolução em potencial. Com respeito a isto, as cores de Flexor são muito notáveis, quase indefiníveis com suas tão delicadas, seu brilho surdo. O cinza evoca joias, pérolas, opalas; o negro, os laços profundos; os brancos são carregados de reflexos azulados, rosas, de verdes leves transparentes. Dir-se-ia nuvens densas que se movem lentamente sem se desfazer, mas se transformam sem cessar; formas arredondadas, vivas, que não terminam; fazem um jogo entre si, de se sobreporem, desse misturarem, sem perder sua existência própria. Esta arte sem entraves, síntese equilibrada entre a construção e o lirismo, nos faz penetrar na intimidade dos elementos e nos oferece imagem de continuidade. MÁRIO PEDROSA. Rio, 1961 (do prefácio para a individual no MAM de São Paulo). 

A contemplação das cinco telas é como a contemplação de um altar do século XX, erigido no templo do Nada. Flexor é o nosso Grunevald, o nosso Brueghel. Como o Renascimento, essa passagem da fé medieval para a dúvida moderna pinta o terror do Deus que se evade, assim Flexor, essa articulação da passagem da dúvida moderna para algo inimaginável, pinta o terror do Nada que invade. Existe toda uma multidão de textos que comprovam esta afirmativa. Mais que ilustração, Flexor parece ser demonstração experimental de textos como os de Kafka, Rilke, Heidegger, Camus, Becket. Inúmeras sentenças desses textos parecem comentários das telas de Flexor. Há um clima comum a todas essas articulações e este clima pode ser resumido na sentença de Heidegger: “existimos para a morte”. As telas de Flexor são retratos das aberturas para a morte, portanto autorretratos do século XX. GERALDO FERRAZ. São Paulo 1966. 

O itinerário de Samson Flexor no Musée Rath... suas primeiras obras brasileiras dedicadas às “abstrações tropicais”, traduzem um lirismo formal e colorido, seguido por um momento de serenidade, onde, guiado pelas opções religiosas, Samson Flexor atinge uma síntese expressiva... Vem em seguida um “período” de abstração fria e “cristalina” próxxixma do construtivismo e das preocupações óticas e ambíguas do “Op’art”. Finalmente, é o “levantamento de vôo” para as pesquisas muito atuais onde o olho “escuta as pulsações dos elementos e faz eclodir, na extensão da tela, estranhas crateras, flores venenosas, ondas incomodadas, signos de uma totalidade plástica e poética, a qual aspira Samson Flexor. CHARLES GEORG – Conservador do Musée d’Art et d’Historie. Genebra, 1955.

...um exemplo marcado desse novo espírito é o pintor Flexor, que se encontra entre nós... É preciso verificar-se a influência da guerra na evolução de sua pintura: influência que se caracterizou pela perda da liberdade e por uma quase delirante euforia em reconquistá-la; fases de que a sua pintura nos mostra com a nitidez de um gráfico, as criações mais impressionantes. Durante a ocupação, uma timidez exasperante; depois, o orgulho do homem que se sente capaz de criar livremente do espírito. É um drama que vale a pena ser visto e admirado... SÉRGIO MILLIET – São Paulo, 1946 – O Estado de São Paulo.

Publicado originalmente no jornal "A Tribuna", de Santos, em 25/6/1971

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