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quinta-feira, 13 de novembro de 2014

VOLPI, NO LIMIAR DOS 80 ANOS



Eu, como me sinto ao chegar nos oitenta? A mesma coisa! Qual a diferença que faz? Oitenta anos... tem muitos que ficam mais velhos antes….. Outros, em vez, vão na frente, a idade não quer dizer nada. No quarenta, em Itanhaém, subindo por um rio, conheci um caiçara que tinha uns 140 anos, e o filho tinha também um século! Pois o filho estava doente e o pai parecia filho do filho... Vai alguém explicar essa saúde. Eu pego uma gripe as vezes, mas tenho muita saúde, sempre tive. Eu talvez chegue nos 100 anos, mas, de repente posso ter algum treco... e lá vou eu... Óstia !”

Volpi está no ateliê da Gama Cerqueira, no Cambuci. Ganhou mais uma neta – agora, são duas – estes dias, “mas ainda não acertaram o nome dela, acho que é Mônica, sei lá.”. 

A luz da matina – e Volpi só pinta no claro, com luz natural, do dia – entra firme na sala ampla, ele mancha a tela com pinceladas firmes de tons vermelhos e marrons. O quadro foi doado para o Museu de Arte Moderna, que abre sua retrospectiva – 350 obras, de 1914 a 1975. 

 “Não sei o que a Diná Coelho arrumou, só quero ver no dia... Lá no Rio quem organizou tudo foi a Aracy Amaral, a retrospectiva ficou boa, foi no Museu de Arte Moderna de lá”.

Fora, além de algumas crianças que brincam no pátio, arrulham os pombos, duas lembranças de sua mulher Judite, de quem o velho artista fala afetuosamente – e guarda penduradas na sala principal da casa, muitas telas ingênuas. “É, a Judite também pintava, nas horas vagas”, arrisca Volpi, com o sorriso franco e bom, lembrando um legítimo toscano das montanhas. 

Eu acordo lá pelas seis e meia, sete horas no máximo, depende também da hora que vou dormir, às vezes levanto só as oito. Eu sempre escuto o jornal da Tupi, que é mais cedo, ou, depois das sete, aquele, acho, que da Globo... Hoje eu peguei pra trabalhar das sete e meia... Eu acordo, lavo o rosto, e banho não tomo, só de noite que eu gosto, é mais sossegado, a gente pode ficar uma meia hora tomando um banho... Me visto, ponho qualquer camisa, vou tomar o café, que é uma simples laranjada e um cafezinho... De manhã, não como, não tenho o hábito, há muitos anos é assim”. 

Então, ouço o jornal da rádio, pra saber o que se passa, e já venho trabalhar no ateliê. Só durante o dia leio o jornal, um pouco de tudo, do estrangeiro, política, tudo, só arte é mais raro, os jornais pouco publicam. Aqui, logo cedo vejo o que tenho, às vezes preparo as telas, os chassis, as tintas... A tela é de linho, compro no comércio o pano, eles trazem da Rua Augusta, 20, 30 metros, não sei o nome da loja... O chassis faço eu, o carpinteiro corta o sarrafinho, armo eu cada tela, não é por economia não, comprar feito seria melhor, mas a tela que faço é melhor que todas as outras, como não? Os pigmentos das tintas também misturo, e diluo, é um processo meio complicado,. Entram os líquidos que eles me compra, gema de ovo, vai tudo secar no sol... O pessoal vem aqui e brinca que sou um praticante de química. Ah!” 

Eu pinto para mim, não para as encomendas, mas ás vezes tem alguém que encomenda, uns amigos do Rio, daqui... Eles vêm ver se tenho um quadro, às vezes gostam do que fim e levam, aí eu vendo... Mas só vendo as coisas novas, as minhas telas antigas eu é que compro. Quando me trazem, como não! São coisas que às vezes dei de graça, são do 14, do 20... Lá pelo meio dia, meio dia e meia, a empregada me chama, não tem hora certa, depende da cozinha.”

 “Aperitivo não tomo, se não, vou comer mais ainda. Como de tudo no almoço, arroz e feijão sempre, carne ou frango, a macarronada só uma vez por semana, todo dia enjoa. Sempre tomo vinho, o vinho é bom toda a vida. Compro esse tipo “Bola”, uma espécie de chianti... Às vezes, eles me trazem vinho também. De sobremesa, frutas, só frutas, doces não. Aí volto ao trabalho, não descanso não... se deitar pego no sono, não gosto. O trabalho vai embora até que eu enxergue bem à luz do dia. Por aí até as cinco horas no inverno, no verão até lá pelas seis. É um problema de cor, os meus quadros são para se ver com a luz natural, ficam melhor.” 

"Aí vou pra dentro, se vem um amigo, converso, se não vem vejo a televisão. A casa tenho há muitos anos, era velha quando comprei, construí na frente lá por 57, 56... Depois, derrubei a casa velha, lá por 62, fiz este ateliê nos fundos... ficou bom. Lá na frente eu guardo as telas dos amigos artistas, tem do Rebolo, Gobbis, Zorlini, Souza, Fiaminghi, Silva, Charoux, Hilde De Fiore, Barsotti, Raimundo, tem esculturas do Bruno Giorgi e um grande cusquenho, arte popular em penca, ex-votos, santos, me trazem, eu gosto”. 

"Este cigarro de palha que eu estou fumando? Eu mesmo preparo o fumo, o fumo vem de Rio das Pedras, que é o melhor, ou Tietê, o Goiano e o Poço Fundo também são bons, têm uns mais fortes, outros mais fracos... Fumo cigarro de palha desde os 30, é bom, assim se fuma menos, não se traga muito. A palha boa é que é difícil arranjar, mas às vezes também me trazem umas muito boas. Lá pras seis, seis, sete horas, eu janto, em geral tomo uma sopa de alho e farinha de milho e uns temperos crus, azeite, pimenta do reino e, no fim, frutas e mais frutas."

 "Quando eu vou ao Rio, gosto do caldo verde que faz a Leontina, mulher do Bruno. Per la madona... No sábado e domingo, pinto também, se não saio, ou vem os amigos. Futebol não assisto, é muito fanatismo. Gosto de jogar paciência, o “solitário”, é um jogo que faço sozinho, isso distrai, o Bruno é que me ensinou. 

Volpi, provocado, passa das artes domésticas para sua arte, sua pintura, os críticos. 

 “O que os críticos falam da minha pintura, deixa que eles comentem, não me importa. Desde o 14 fui autodidata, nunca aprendi em escol , fiz tudo sozinho, nem em academia entrei... igual ao Rebolo e tantos outros. Pintei paisagens, marinhas, figuras, modelos vivos – principalmente no Santa Helena, sempre “do natural”. Na Itália, tudo o que podia ver, eu via. Giotto, Piero de la Francesca, todos bons, grandes pintores, só gosto de arte boa, tanto lá como aqui"

"Em Arezzo vi uma exposição muito boa, dos bizantinos, vi o Margaritone e tantos outros... Influências, todos tem, não é coisa prejudicial..."

"A questão é que sempre pintei as minhas pinturas que “saem”, nunca fui atrás de corrente alguma. Os concretistas me convidaram, fui expor com eles.. mas nunca pensei em seguir alguém ou qualquer corrente... Uma vez em 57 ou 58 fomos ver uma casa aqui perto, com o Mário Pedrosa, tinha umas linhas geométricas minhas na fachada, ele achou fantástico, e eram do 30 ou do 40... Sempre pintei o que senti, a minha pintura aos poucos foi se transformando, começa com a natureza, depois aos poucos vai saindo fora, às vezes, continua, eu nunca penso no que estou fazendo. Penso só no problema da linha, da forma, da cor. Nada mais... Meus quadros têm uma construção, o problema é só de pintura, não representam nada. Isso vem aos poucos, é uma coisa lenta, é um problema, toda a vida foi assim” - conclui.


VOLPI - A CHEGADA GLORIOSA AOS 80


Com a simplicidade dos bons e a auréola consagrada dos mestres, o famoso artista foi assinar o mural da Capela do Cristo Operário, no Ipiranga, que realizara há 25 anos atrás. 

 – Como me sinto nos oitenta? Ostia! Um jovem... Acho que dá para viver mais uns 80. Minha vida é meu trabalho. E meu trabalho é vida. Necessito trabalhar. Então, se estou trabalhando, tenho vida. Até ter algum troço e ir no embrulho... Aí, acabou. 

Volpi está na Capela do Cristo Operário, Rua Vergueiro, 7.300, no Ipiranga, onde o levamos pára assinar o mural que fez em 1951/1952, a pedido de Frei João Batista, onde compôs as artes da capelinha com outros artistas como Bruno Giorgi – mas seus trabalhos foram vetados pelo arcebispo de então – Iolanda Mohaliy, Moussia Pinto Alves, Geraldo de Barros e Elizabeth Nobiling. Ele assina, a lápis de cor, azul, o seu famoso “A. Volpi” e agora Radhá Abramo, grava sua conversa para o Serviço de Documentação da Prefeitura, a cargo de Maria Eugênia Franco. 

Mais um ano, menos um ano, que diferença faz? Nenhuma! Oitenta anos... tem uns que ficam mais velhos antes. Eu não, me sinto forte, só as vezes pego uma gripe. A idade não quer dizer nada. Eu sempre tive muita saúde, acho que do vinho, da sopa de alho que como todos os dias! No dia do aniversário, quarta-feira, vai ser um dia como todos os outros, levanto, trabalho, recebo os amigos, acho que vai ter uma macarronada no almoço, vejo a televisão, brinco com as netas, à noite tem essa exposição – acho que é uma homenagem – da Cosme Velho. Lá vai ser meio cansativo, tenho de ficar em pé muito tempo, mas, é o jeito. Quem sabe eu vou treinando para chegar nos 100 anos... Ótimo! 

Volpi está alegre, ali na Capela, onde as honras da casa são feitas por Frei Romeu, responsável pelo núcleo dominicano no lugar. O registro está terminado – e abrangeu aspectos de importância da vida e da obra de Volpi, desde seus inícios como pintor e decorador de paredes no Cambuci, sua passagem pelo concretismo, a visão do Giotto e Piera de la Francesca na Itália, aspectos de sua pintura etc, etc... Um Volpi vivo, sagaz, oportuno, firma nas respostas, que, se se pode afirmar assim, são todas de fina sabedoria intuitiva, e carregadas do caloroso sabor humano que envolve toda a figura volpiana. 

Nós o acompanhamos, no carro de seu genro e ao lado de sua filha. Ali Volpi vai desfiando reminiscências sobre seu mural na Capela do Cristo Operário, entremeando seu depoimento com observações curiosas e francas. Volpi se detém, a pedido, nas oportunidades que teve de fazer pintura religiosa, embora se confesse um não religioso de maneira total. Achamos que quase tudo dito por críticos ou terceiros, pelo próprio Volpi, poderia ser mais bem esclarecido. 

Esse mural, as têmperas do Cristo Operário, foi o “Ciccillo” Matarazzo que pagou, ganhei 10 contos”. Eu vinha de casa, de bonde, descia no ponto final do “Alto do Ipiranga” e andava a pé até aqui. Levei um mês, ou um pouco mais, para acabar o mural. Ele é composto de 3 partes: o da esquerda é o da Sagrada Família, São José Trabalha, Cristo é uma criança que trabalha também, e N. Senhora é uma madona, que olha pela janela; o segundo, do centro, é o Cristo Operário, O Cristo aparece de braços abertos – mas isso não tem um sentido religioso, é só da composição – e ao fundo pintei uma fábrica; e o terceiro, à direita, é São José dando comida aos peixes. Há uma unidade, uma composição geométrica nas 3 têmperas, isso apenas para dar um espaço maior ao mural... E no mural não há religião nele, apenas os elementos religiosos servem para compor as pinturas. Não há religião nisso. 

– Você é religioso, Volpi?

 – Não, mas, certo, pertenço à Igreja. Me batizaram na Igreja. Mas não sou religioso, nem vou à missa. E me casei na igreja também... Antigamente, eu ia muito à igreja, mas por outras coisas, para ver as namoradas, as meninas... Deixa isso... 

– Que outros murais fez em igrejas? 

Em Brasília, pintei um afresco – dois painéis – na Capela N. S. de Fátima. Aí pelo 1957, foi o Juscelino que inaugurou. O Mário Pedrosa foi que me levou, parece que o Niemeyer que queria... Era uma capela que funcionava como uma igreja, hoje estragou-se toda, me disseram... Depois, acho que em 67, no tempo do Castelo Banco, pintei um mural na Igreja do Itamaraty. Era um afresco, retratando D. Bosco, Esse está bem conservado e assim não estraga.Me disseram que está muito bonito. 

– E os santos e madonas, já pintou muito?

Ostia! Nem sei mais quantos! Mas foi tudo de encomenda, me pagavam... Tudo de encomenda, Santo Antonios, São Franciscos, São Beneditos, aquele do cavalo, São Jorge, e quantas madonas... Tudo sem modelo, o que dava na minha cabeça. E nada de religião nessas pinturas. Uma madona o que é? Uma mulher, com uma criança, e só. As primeiras tinham coroa, depois até isso eliminei, elas ficaram mais simples e belas. Ótimo!

 – E de vez em quando você não reza? 

– “Que rezar o que? Eu vivo a vida e gosto do meu trabalho e dos meus amigos. Morreu, acabo. Quem tem fé, acredita. Mas quem não acredita, morre, e está liquidado tudo. Eu qualquer hora tenho algum treco, e lá vou eu! Mas acho que dá para chegar nos 100 anos!” 

– Você não pintou um mural, com o Rebolo? 

É, isso lá pelo 40... O Rebolo é que pintou, e eu ajudei. Era um convento de freiras na avenida Nazaré... Pintamos cenas religiosas, mas se estragou tudo, parece, o Rebolo só comprava tinta barata. Eu avisei ele... Naquele tempo a vida era difícil, e quantas artes “renascentistas”, “Luiz XV” e essas coisas a gente fazia. Mas não era arte, era para ganhar o pão nosso. E se pintava aos domingos, nos bairros, nas praias, e quando a gente vendia um quadro, era aquela festa, ficava um tempão sem trabalhar... Ostia

Volpi volta a falar do mural do Cristo Operário. Frei João Batista foi quem o iniciou ali junto à Capela, e Volpi voltou a pintar. 

O tema central, é Cristo operário, por isso no fundo está uma fábrica e os tijolos, bem ao natural”. 

Vai falando, e o carro está quebrando a Rua Gama Cerqueira, já se aproxima do portãozinho de ferro do 154, onde Volpi é recebido afetuosamente pelas filhas.

 – Eu fiz também os desenhos dos vitrais, e quem executou foi o Eurico Zuca. Demorei um mês para fazer os 3 painéis, e fiz os projetos também, devem estar por aí... Acho que quem casou primeiro lá foi o Geraldo de Barros, depois foi o Walter Zanini com a Neusa, uma moça do nosso bairro... Talvez eu fui nesses casamentos, não me lembro... Sei que existem fotos... Os murais estão em bom estado. Mas eu não assinei porque não assino essas coisas. Agora, eu assinei, porque me pediram, pedido de jornalistas e de padre a gente precisa atender... Já sabiam que é meu. A Capela Sistina todos sabem que é do Miguelangelo. E vai dizer que esta toda assinada? Me disseram também que nos tempos antigos até os quadros não assinavam. Ostia!

Folha de São Paulo, 11 de abril de 1976.

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