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terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Cassio M’Boy – talento, arte, cultura caipira

A Rossini Tavares de Lima, 
defensor maior da cultura popular. 
L.E.M.K. 


Descendo de família originária dos primeiros povoadores das terras de Piratininga. Nasci numa fazenda de café, no município de Mineiros do Tietê, São Paulo... Três meses depois, fui levado para uma fazenda de café em Botucatu, cuja escola rural cursei. Em 1929, já era proprietário em sítio no Embu, após ter vivido alguns anos na cidade de São Paulo... Faço escultura e pintura desde menino. Fui “santeiro” popular durante o tempo que permaneci na zona rural... Fiz parte da Comissão Paulista de Folclore, entidade oficial da UNESCO... Fui pesquisador folclórico da Divisão de Festejos Populares do DEIP... Em 1937 ganhei a Medalha de Ouro da Exposição Internacional das Artes e Técnicas em Paris, recebendo diploma do Ministério do Comércio e Indústria da França... Em Veneza, expus no setor brasileiro da XXVI Bienal as telas “Nossa Senhora do Coração” e “Mãe de Ouro”, tendo sido esta a primeira tela vendida naquela Bienal... Em 1950, concorri ao Salão Nacional de Tóquio com o “Saci” e ao Salão de Maio de Paris com a “Nossa Senhora Bonita” e “Mãe d’Água”... A tela “Nossa Senhora do Desterro” faz parte da Pinacoteca do Museu de Arte de São Paulo... Pertenci à equipe de artistas plásticos que realizou o grande vitral documentando a atualidade artístico-plástica do Brasil, no Museu da Fundação Armando Álvares Penteado de São Paulo... Agora, duas telas minhas – “Fuga para o Egito” e “Presépio” – foram escolhidas para figurar em cartões de Natal da UNICEF, organização da ONU que reverte seus fundos para a assistência à infância pobre e que serão vendidos em todo o mundo... E o governo estadual está querendo comprar outras duas telas minhas – “Fundação de São Paulo” e “Fundação do Embu” – já fiz até o preço.


 Moreno queimado e curtido de sol, os cabelos longos e grisalhos, a camisa colorida, os pés descalços que logo vão calçar sandálias de couro rústico, o seu jeitão de boiadeiro rude, Cássio M’Boy está nos fundos de sua casa, cortando grama com o tesourão. Ele tirou o sábado para capinar sua rocinha caseira, plantar algum milho, melancia, abóbora, um feijãozinho. Mora no Caxingui, numa casa de cuidados caipiras, de pequeno burguês, como ele mesmo define, “pra proletário não falta muito”. É enxuto, franco, inteligente, sacudido e ágil nos seus 70 anos... 

Minha vida é essa, vou capinando, vou fazendo a minha roça, o meu ambiente caipira, todos os dias vou à “porteira”, na rua, ver quem passa na estrada... “Bom dia, seu Cássio, hoje vai chover? Não vai chover? Então está bem”... Quero ver a rua, ir à feira, fazer minhas compras. Fico horas batendo papo com a vizinhança, gente amiga, povo bom. Saí a 12 anos do Embu, fui para o bairro de Higienópolis. Não aguentei aquele chiquê nem três meses. Fui para o Brooklin, depois comprei esta casa, estou contente e alegre aqui... Por aqui ainda vou ficando mais uns 20 anos... 

O bigode de Cássio é mais branco que os cabelos. Ele muito se impressionou com a morte de Sérgio Cardoso, “fizeram com o Sérgio o que fizeram com o Nijinski, que morreu enlouquecido com o casamento. Coitado do Sérgio... E olhe, ele bem dirigido, superaria Leopoldo Fróes”. Ele fala e opina sobre todos os assuntos: política, arte, religião. Cássio acorda ao meio-dia, levanta-se, lê o “Estado” e a “Folha”, observa que um jornal desdiz muitas vezes o outro. Faz seu café de ermitão, liga o rádio, quer ficar a par do noticiário geral. Aprendeu a cozinhar com um famoso cozinheiro do conde Prates faz ele próprio seu almoço, um peixe frito, uma omelete com arroz simples, “feijão, feijão”, “verdura, verdura”. Nada de coisa complicada, detesto “estrogonofes” e outras coisas de grã-finada. À tarde, mil transas. Vai ao centro, cuida de suas coisas, raramente pinta – ele sempre foi de não muito pintar. Filosofia_ - “Em toda a minha vida tive sempre o cuidado de não comer a carne de vaca que comprei, só bebo seu leite, vivo agora dessas quireras”... 

- Quantos quadros pintou? 

- Não tenho a menor ideia. 

- Onde estão eles? 

- No Brasil, por aí, no mundo. 

- Tem emprestado suas telas para mostras no interior, etc.? 

- Não, nossos museus não têm gente habilitada para cuidar das obras. Não confio. 

- O que tem pintado atualmente? 

- A história do bicho papão. Veja a tela que a menina da roça não usa cruz no pescoço, mas uma figa, e na parede de seu quarto não tem uma imagem de santo... Resultado, o bicho-papão apareceu, claro. São histórias assim, da roça, das fazendas do interior, que pego para fazer minhas pinturas ditas caipiras... Muitas vezes, invento também, mas acho mesmo como dizem os entendidos, que tenho a verdadeira vivência, a verdadeira carga de cultura caipira dentro de mim... E, veja, só, sou formado em Sociologia, já vendi em Copacabana, já andei de raque e cartola o quanto quis... Na verdade, acho que sou mesmo um autêntico caipira erudito. 

O quadro que Cássio citou está inacabado, a um canto da sala – que ao mesmo tempo é sala de entrada, de estar, serve de ateliê e onde estão todas as telas que restaram ao artista primitivista-caipira, após 30 anos de pintura- dez, dozes telas, se tanto. Elas estão dispostas nas paredes. Nos quartos figuram quadros de outros pintores, alguns do Embu, alguns de Osasco, como Américo Modanes, líder de um grupo de primitivos e ingênuos, que Cássio formou e incentiva até hoje. Assuas são principalmente telas angiológicas e folclóricas, e, para cada uma, Cássio dá explicação. Mestre na arte de interpretar lendas do nosso populário e estórias ingênuas dos Mineiros do Tietê, de Botucatu, da vida roceira que levou. A tela do bicho-papão tem, por isso, essas lembranças, essas achegas, a tramela, a colcha de retalhos, o baú de folha-de-flandres, o tradicional pinico. 

- Cássio, como nasceu seu nome artístico, Cássio M’Boy? 

- Meu pai, como minha mãe, eram quatrocentões, eu era bem nascido... Eles tinham horror a ter filho artista. Prometi que, se chegasse a tanto, não usaria o nome de família... E não usei mesmo. No começo, assinava só Cássio... Depois, em 37, concorri a uma exposição internacional em Paris, ganhei um prêmio importante... Precisava então de um sobrenome artístico. Utilizei o M’Boy, pois eu era o Cássio do M’Boy, nome primitivo do Embu.... Quando ganhei oi prêmio em Paris, meu pai pediu para colocar o nome de família, mas aí eu disse: “Agora, já estou consagrado, fica Cássio M’Boy, mesmo”. E assim ficou... Só que tinha um “de” no meio: “Cássio de M’Boy”. Tirei-o certa ocasião, a pedido do José Geraldo Vieira... 

- Nestes anos tidos, quais foram seus maiores amigos? 

- Literatos, poetas, jornalistas, pintores, que sei eu? Anita Malfati era minha amiga, minha companheira, minha irmã. Passava dias e dias no Embu, conversando e pintando... Mário de Andrade. Oswald, Portinari, Flávio de Carvalho, Nonê, Menotti, só o Cassiano Ricardo conheci mais tarde... Aliás, é do Cassiano o prefácio de meu livro de poesias, que está no prelo, na Martins... O Monteiro Lobato destratou o caipira, com seu horrível Jeca-Tau, falso, desfigurado. Neguei três vezes a mão a ele... Quando fico amargurado com certas coisas, fico quieto, não falo com ninguém, então faço poesias... Só que o livro está custando a sair. Eu, pedir, implorar, ajoelhar, isso não faço, nunca fiz... Se querem editar, editem, o Cássio é que não vai chatear ninguém... O artista seve ter auto-respeito, e eu acho que tenho muito... Deve também ser reconhecido em vida, mas, se não for, não faz mal, será depois de sua morte... Nesse ponto, penso como João Vilare: “A arte que tenho não pertence a mim, massa Deus”... Não sou religioso, sou ateu místico... Como dizia, se tenho amargurar, me escondo, não exponho minhas chagas no Viaduto do Chá, não sei valorizar a dor, como fez Verônica no Sudário... Na minha pintura não há dramas nem amarguras... Só uma vez fiz um óleo, Cristo carregando a cruz. Deve estar no Convento do Embu, deve estar, não sei o que fizeram com aquelas coisas lá... Tem algum hobby? - Não, todo colecionador é um doente, e eu estou forte e rijo, na mente e no corpo, não coleciono nada... Não tomo álcool desde que terminou a guerra. Nesse dia tomei um litro de pinga, jurei que nunca mais punha a maldita na boca e cumpria até hoje a promessa... Como pouco, não fumo, não jogo... Fiz as revoluções de 22, 24, 30 e 32 e estive pra ser fuzilado. Com este meu jeito caipira, era espião de Isidoro... Tanta coisa acabo escrevendo o romance de minha vida... Mas o que gosto, mesmo, é o de conversar em casa, em exposições, nas feiras, sou até conhecido por aqui como o “Praça da Alegria”. 

Cassio serve o cafezinho solúvel. Reclama das cuias, não as encontra mais na cidade grande, aquelas “do tipo-roça”. Mexe em seus guardados, mostra telas achadas em seu quarto de solteirão – tem dois filhos adotivos e um neto. Fala de pinturas e pintores, não perde as melhores exposições. É sempre um papo disputado e disposto, o velho tipo faceiro e caipira, “erudito também”, como corrige. Agora elogia um pintor caipira que também se fez no Interior, também autêntico, também da roça sofrida e amada – José Antonio da Silva. 

- A cultura caipira existe e é autêntica. O caipira é o melhor protótipo do nosso povo. Descende dos bandeirantes, dos tropeiros, das raças formadoras do nosso povo. Querem ver caipiras na verdadeira acepção do termo? É ir em Iguape, nos dias da festa do Bom Jesus. A minha pintura caipira é o sentir, é o pensar, é o agir do nosso caipira da roça, caipira da cidade, caipira onde estiver, sem mistura, sem miscigenação, sem falsidade. Eta, “seu” Cássio M’Boy.

Texto publicado originalmente no jornal "A Tribuna, de Santos, SP, em 3/9/72.

Gênio anônimo, popular, poético 

Cássio M”Boy... Saudação e saudade... Hoje, Dia das Mães, recebi seu álbum. Sem endereço para resposta, possível graças ao grande Rossini. Fiquei na minha salinha, na cadeira que foi de meu pai viajando nas dimensões cabocas do Brasil. “Caboco” com L é invenção. “Caá-boc”, saído, emerso, tirado do mato. Não pode haver L nenhum, nem existe brasileiro que pronuncie “Caboclo” e sim CABOCO! Perdoe. Adiante. Para mim v. é pintor, com a legitimidade, força, exatidão do gênio anônimo e popular. Não há mutilação em sua pintura de encanto contagiante. É natural, espontâneo, puro, como os ditos “primitivos” que só pintavam com o sentimento interior do entendimento coletivo. Para todos os olhos, ricos e pobres. Não há anacronismo para o povo, é sim uma justa posição de imagens. Não elimina as velhas anteriores e tudo é contemporaneidade expressiva, na reexposição mental. V. leu, viu, é inteligente, (não há caipira burro no plano do interesse pessoal), e essa sua cultura em vez de deformar sua recriação, disciplina a veracidade plástica... Penso numa cantiga do Pará 
 – Quem te ensinou a dançar? 
 – Foi andorinha do ar? 
Quem te ensinou a pintar, feiticeiro? 
Não “M’BOY”, cobra, mas M’Baé, cousa, substância, tutano, talento... Um beijo no focinho. 
LUÍS DA CÂMARA CASCUDO

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