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terça-feira, 23 de dezembro de 2014

WALDEMAR DA COSTA


Em agosto próximo realizo, a convite do Museu de Arte Moderna e com patrocínio do “Pão de Açúcar”, que concorreu para a feitura do catálogo, uma exposição “Retrospectiva de 45 anos de Pintura”... Simultaneamente um grupo de artistas amigos e que estudaram comigo, realiza uma homenagem aos meus 35 anos de professor... Na retrospectiva exporei 124 ttrabalhos, desde um estudo da Escola de 1928 até a atualidade... Na homenagem, os artistas Amélia Toledo, Charoux, Clóvis Graciano, Fliaminghi, Ianelli, Izar, Maria Leontina, Miriam Chiaverini, Rachel, Ubirajara, expõe 10 trabalhos cada um... 

O calor humano dado pela amizade me é indispensável e é para mim uma grande alegria ter e manter amigos assim. 

Simpático, afável, enxuto em seus quase 70 anos, o velho sotaque português (é brasileiro de Belém – Pará). Waldemar da Costa está sorridente em sua casa da Vila Nova Conceição, na fria noite paulistana. Ele abre a porta para Charoux e Fiaminghi, dois antigos alunos seus, velhos amigos de hoje. Os dois pintores vem cuidar da exposição que Waldemar fará no MAM, quando ex-discípulos seus o homenagearão especialmente. Zoraide (Zozó), pequenina, agitada, aparece logo e já prepara um chá forte, para esquentar todos. O pintor-professor senta-se à mesa, examina as peças do catálogo da mostra-homenagem. Nas paredes das salas, à sua volta, telas de ex-alunos, como Maria Leontina, Charoux, Raquel, Ferraz, de artistas amigos, como Portinari, Rebolo, Carlos Lemos – e ainda 3 telas suas da fase atual. 

Waldemar da Costa, pintor, professor, mestre, como se auto define? 
O meu nome todo é Waldemar da Costa Guimarães. Descendo, pelo lado materno, de duas famílias “importantes”... Uma, os Costas, cuja ascendência (Távoras) lutou contra o Marquês de Pombal, em Portugal. João Gualberto da Costa, meu bisavô, veio para o Brasil por volta de 1803, fixou-se em S. Luiz do Maranhão e aí contra a ordem se estabeleceu, lutou pela independência. Foi um rebelde da época! Felizmente, a causa foi ganha e meu bisavô foi condecorado por D. Pedro... Era a ação!... A outra família é a dos Guillon. Essa ascende ao marques de La Fontaine, o fabulista fabuloso. Era o sonho!... Da parte de meu pai (português), ao contrário, não houve sonho nem ação. Eram os Lopes Guimarães, pares do Reino e lentes da Universidade de Coimbra... Era a ordem... A ação e o sonho maternos não se deram muito bem com a ordem paterna e como sói acontecer separaram-se... Na minha arte figurativa sente-se bastante esta luta constante... Pose-se dizer que são composições com uma desordem organizada... Antonio Pedro, o crítico e pintor português, quando esteve em S. Paulo, escreveu na revista “Atlântico” que minhas naturezas-mortas eram cuidadas, a fingir que não. Assim sou eu. 

Fiaminghi parece um marinheiro basco, com sua boina tosca e longos bigodes. Charoux escuta atrás dos óculos e da cara vienense e rosada. O relógio antigo inglês, na saleta, bate as horas. Na mesa da entrada, bem destacadas, cerâmicas francesas, italianas e portuguesas, das Barradas. Uma bela tapeçaria de Maria Teresa lemos de Arruda Camargo pende, soberana, na parede estreita. Waldemar vai dizendo que já pintou, até hoje, de 300 a 350 quadros. Agora a produção é menor. Pinta diariamente em seu ateliê da Rua João Cachoeira, ali perto.

Como foi a evolução de sua obra? 
Lenta, pensada, sentida. Ao chegar a Paris vindo da Escola de Belas-Artes de Lisboa, onde o ensino era francamente acadêmico, encontrei o movimento que se chamou mais tarde de “Escola de Paris”, em pleno sucesso. Aderi imediatamente a ele por estar de acordo com o que ele representava: uma volta à realidade tranquila... Tinha passado a época dos grandes movimentos – fauve, expressionismo, cubismo, futurismo e quase todos os pintores que tinham pertencido a qualquer uma dessas manifestações retrocederam na sua visão fantástica para uma representação objetiva... Naturezas-mortas, paisagens, figuras nuas ou vestidas, ou ainda semivestidas, com posturas calmas e tranquilas, eram os assuntos preferidos. Foi com essa arte que participei nos vários salões e exposições que fiz durante os três anos de minha estada em Paris. Foi ainda com essa visão que participei dos Salões dos Independentes, em Lisboa, e no Primeiro Salão de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1931. Passaram-se alguns anos antes que eu evoluísse para o expressionismo, o que sucedeu no período de 1944 a 1948... Buscas de uma construção purista vieram a seguir, passando depois para uma geometrização ainda figurativa, onde se sentia já o desmembramento das figuras e objetos, caminhando para uma solução francamente abstrata... Foi na Itália, como bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian, de Portugal, que me inspirei para aplicar metais nos quadros. Então, numa abstração lírica, comecei a empregar o ouro e a prata como elementos plásticos... Mais tarde volto a uma construção geométrica, tirando partido de efeitos luminosos dos referidos metais. No momento atual a arte que faço situa-se nos temas “Estático-Semovente” e “ Movimento”... São formas metálicas que fazem lembrar peças de máquinas imaginárias, tornando a crueza da tecnologia mecânica em objetos oníricos e poéticos. Participando de uma época em que tudo é tão material e prático, procuro criar um mundo técnico em que o homem não abandone o sonho, através de formas e movimentos dados por efeitos luminosos. 

Zozó substitui o chá por um licor de estima. A conversa se torna mais aquecida. Waldemar continua o depoimento sem interrupções. 

Tive já vários ateliês de pintura. O primeiro no Boulevard Montparnasse 75, em Paris, onde trabalhei de 1929 a 1931 e onde, por empréstimo, Portinari, que não tinha ateliê, fez os seus primeiros trabalhos na França, em 1929, quando então chegou a Paris... No Rio trabalhei em casa (era solteiro), na Rua Santa Cristina, em Santa Tereza... Em S. Paulo o meu primeiro ateliê foi no Teatro Municipal, no salão da sapataria, cedido pelo Departamento de Cultura; foi aí que comecei a lecionar, tendo tido entre outros alunos Clóvis Graciano. Mas foi no ateliê da Brigadeiro Luís Antônio, 3147, que, desde 1939 até 1948, realizei o maior número de trabalhos e onde também mais aulas dei. Frequentaram minhas aulas os artistas Charoux, Fiaminghi, Amélia Toledo, Ianelli, Maria Leontina, Rachel, Izar e outros. Zozó foi também minha aluna então e em 1950 nos casamos. A casa de meu ateliê tendo sido vendida, passei para a Rua João Adolfo. Aulas, aulas e mais aulas. Foram então meus alunos, entre outros, Charlottte Adlerová, Helena Vaz, Claire Hugon, etc...

No Museu de Arte, onde fui professor de técnica de pintura, frequentaram, entre outros, as minhas aulas, Ubirajara, Mariza Portinari, Miriam Chiaverini, Raimundo de Oliveira, Aparício Basílio da Silva e Inez Rosenthal... Fui para Portugal em 1956, fixando residência em Lisboa, onde tinha meu ateliê em casa, à Rua Marcos Portugal 91-1º... Mais alunos: Josefina Lind, Antônio Ferraz, Antônio Paisano, Antônio Bouças, etc. Fui contratado pelo “Círculo das Artes Plásticas da Universidade de Coimbra”, para dar aulas, sendo o fundador do curso. Foram meus alunos, entre outros, Loff, Manoel de Oliveira, Sampaio e Mello, etc. Em 1966 fixei-me novamente em S. Paulo. Desde então, tenho meu ateliê à Rua João Cachoeira, 1453... No momento, alguns dos meus alunos já começaram a expor, como Lia Amaral de Souza, que, em breve, realizará uma individual na Bonfiglioli. Outros alunos são esperanças promissoras... Devo dizer que, de Santos, tive ótimos alunos, neste meu presente ateliê, como Vera Prado e Luiz Martins. 

Estão chegando à casa portuguesa (“pequena por fora, mas grande por dentro”, como a define Waldemar), seu cunhado, irmão de Zozó, o famoso cirurgião Edmundo Vasconcelos, com a jovem e bela mulher, Elza. Edmundo tem prosa fácil, conta episódios daqui e de fora, sua erudição é vasta e universal. 

Fiaminghi anotou mais um erro na revisão do catálogo, que é de Geraldo Ferraz: “Waldemar da Costa: aqui e agora”. O catálogo tem também uma introdução-homenagem dos 10 alunos de Waldemar, e a resposta deste, em linhas de muita emoção. O silêncio se faz de novo, o professor fala de seu lazer, de suas ocupações diárias. 

Moro em casa própria numa vila da Rua Ministro Jesuíno Cardoso. Meu ateliê – uns 300 metros adiante – é na Rua João Cachoeira. Não sou de levantar cedo; sou preguiçoso. Bem contra os hábitos paulistanos; gosto às vezes de tomar meu café da manhã na cama, onde leio meu jornal som sossego. Às 10 horas começo as aulas, que são dadas duas vezes por semana, às terças e quintas-feiras; nos outros dias, aproveito para pintar. Uma vez por mês passo o fim de semana na Praia Grande – “Cidade Ocian” – onde temos um pequeno apartamento. Nas férias descanso e pinto. A minha família: eu e Zozó, minha mulher, que foi minha aluna e que hoje me ajuda nas aulas para principiantes. Também Valdomiro, que considero como meu filho adotivo. Ele, além de estudar e trabalhar faz teatro no grupo teatral do Ginásio Costa manso. Pensa estudar arquitetura. Mora no meu ateliê. 

Waldemar conta que já teve um “hobby”: criar galinhas. Foi o pioneiro da avicultura em Petrópolis, na Granja Santa Rita e, em S. Paulo, criou-as no Sítio da Pedra Bonita, em Jandira, perto de Cotia, “quando a pintura não dava”. Hoje o tempo já é pouco para o que ainda quer realizar. Nas horas de folga, lê sobre Arte. Possui quase dois mil volumes relacionados às artes. Confidencia: 

Dizem que sou alegre, simples e afável e, no entanto, a minha pintura, do início até a atual, era nostálgica e melancólica, influências de uma infância infeliz? Talvez! 

Como encara a pintura brasileira de hoje? 
Evoluiu muito, mas ainda não tem um alto nível internacional, como nossa gravura, por exemplo, que frutificou mais intensamente, graças aos excepcionais professores que tivemos, como Friedlander... 
A arte, nestes 36 anos de S. Paulo, evoluiu enormemente... Quando fui um dos fundadores da “Família Artística Paulista”, tudo era feito por nosso próprio esforço... Alugava-se local ou pedia-se emprestado; fazia-se catálogo, tudo com o dinheirinho recolhido entre os expositores (sabe lá com que sacrifício), e muito raramente o público retribuía, já não digo com aquisições, mas com a sua presença... A Bienal trouxe uma outra amplitude para o nosso ambiente. Galerias se abriram, salões se organizaram, marchands apareceram... Hoje uma grande parte dos artistas pode viver do seu trabalho... Confio na juventude artística que me rodeia... Assim como outrora, os problemas são os mesmos, como também os anseios, somente os tempos mudaram e com eles a forma de expressão. Nada é definitivo em arte. Tudo é um pequeno minuto expressivo da evolução constante de um movimento perpétuo. 

Zozó está inquieta e participante. Todos ali ouvem e respeitam aquela pequena senhora dedicada, que fala depressa, com sua alma bem feminina de companheira e mulher. O frio aumenta lá fora. Zozó: 

Há pessoas cujo convívio – conscientemente ou não – é-nos prejudicial. Sufoca-nos a personalidade e amesquinha-nos o raciocínio, tornando-os tíbios e medrosos. No entanto, aqueles que são o oposto, fazem com que as nossas poucas ou fracas qualidades venham à superfície e brilhem; que a nossa personalidade se afirme e o caráter se fortaleça. Destes últimos, o Waldemar é o protótipo. Aqueles que com ele convivem só alegria de viver, força para lutar, tolerância e amor ao próximo, dele aprendem... O meu encontro com ele foi o acontecimento mais marcante da minha existência. Assim como a muitos que dele se aproximaram, transformou completamente a minha vida. Reconstituiu-a, renovou-a, enriqueceu-a. 23/7/1972. 

A Família Artística Paulista 
O pintor conseguiu passar nesses tempos da década de trinta com galhardia conquistada em Paris – a celebrada aura de Montmartre deixou-lhe alguma coisa de refinado, que palpita à maneira de Cézanne ou de Elime Othon-Friesz, como já se disse dele, como já se disse dele. Na sua adesão à nova visão provinda do neorrealismo que emergiu do cubismo e do expressionismo, não há extravagâncias. Ele tinha profundidade, e muito sua, verificável em qualquer destas figuras. Waldemar da Costa parece-nos ter sofrido, multiplicadamente, o desgarramento de quem não se fixava num meio. Esteve no Salão que a revolução de 30 permitiu a Lúcio Costa, em 1931, o primeiro Salão Nacional em que o espírito moderno fez a sua intromissão para ficar. Apareceu aí ao lado de um Cândido Portinari, com quem estivera em Paris – contudo, que destinação diferente da sua. Não se deixou empolgar por nenhuma política. Interessava-lhe conhecer e fazer conhecido o tinha alcançado. O mestre tinha de emergir dessas contingências. De fato, já nessa década de trinta é dele que se aproxima, insipiente pintor, um homem do povo: Clóvis Graciano. Foi dos que mais se responsabilizaram pela Família Artística Paulista, movimento que tem aparecido ultimamente na publicidade, sem incluir o nome de Waldemar da Costa, o que é erro histórico e diminuidor da verdade que houve em tal movimento. GERALDO FERRAZ (Catálogo da Exposição do MAM, 1972).

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