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segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

LUCIA FLEURY


Lúcia Fleury de Oliveira (São Paulo, 1933). Escultora. Iniciando-se no campo da escultura em 196, fez estudos com Caciporé Torres na Fundação Armando Alvares Penteado – FAAP. 

Recebeu menção honrosa no Salão Paulista de Belas-Artes de 1962 e no I Salão de Arte Contemporânea de Campinas (1965), bem como medalha de bronze e o primeiro prêmio “Governador do Estado” no Salão Paulista de Arte Moderna de 1965 e 1968. Figurou ainda na XI Bienal de São Paulo (1967). 

Nas suas esculturas mais recentes, caracterizadas por um abstracionismo de configuração geométrica, tem utilizado especialmente o alumínio anodizado. 

Com seu jeito simples, miúda, feminina, delicada, muito meiga e quase distante, 

Lúcia Fleury volta à “Álvares penteado”. Ela expõe no Museu de Arte Brasileira suas esculturas livres, fortes, tão criativas e luminosas, bem múltiplas e sensórias, belas. Lúcia telefona, procura achar na cidade grande o crítico carioca Roberto Pontual, autor do breve registro acima, que a catalogou em seu monumental “Dicionário das Artes Plásticas do Brasil” (560 págs., Ed. Civilização Brasileira). O crítico está na Collectio, num jornal, na Mansão França, voltou ao seu hotel, foi ver um artista, ninguém acha Roberto Pontual. 

Lúcia Fleury só recebe um recado, ele quer atualizar seu registro no “Dicionário”, deseja ver as suas obras, talvez levar suas esculturas para uma exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. 

Lúcia desiste, afinal. Vai mostrar seus lunáticos múltiplos, suas esculturas para o ar livre e para interiores, de acrílico, fórmica, aço inoxidável, alumínio, madeira e ferro, a um grupo ruidoso de jovens universitários. Eles fazem mil perguntas à jovem artista. 

– Como e quando começou a esculpir? 

– Quando procurei uma escola que me ensinasse escultura em 1962, foi para aprender técnica. Eu já vinha com uma certeza que era aquilo que eu queria fazer e que seria capaz de fazê-lo algum dia. Essa certeza foi a grande descoberta que me atingiu de uma maneira decisiva e fulminante e transformou minha vida dois anos antes, nos fins do ano de 1958. Eu havia tido meu segundo filho em setembro, e pouco antes do Natal, fui com meu marido José Luiz e minha filha mais velha, descansar alguns dias à beira mar, em São Sebastião. Chovia bastante e nós passávamos muitas horas lendo. Lembro-me precisamente de ter lido Saint-Exupèry e Enéas Ferraz e de ficar horas flutuando num clima de encantamento e reflexão. Então, pensando no Natal, senti vontade de modelar imagens, coisas que nunca havia feito. Eu nem sequer desenhava. Nunca havia me envolvido em artes plásticas. Nunca tive oportunidade. Apenas o piano, único instrumento de arte que conheci. Foi meu desabafo durante toda a adolescência. Cheguei a compor bastante. Depois, voluntariamente, afastei-me dele. Não era mais um caminho. A vontade de modelar foi-se tornando tão imperiosa dentro de mim, que saí debaixo de chuva, trouxe barro de uma olaria e fiz minha primeira escultura. Era Nossa Senhora sentada num barquinho, o menino Jesus todo enrolado como estava meu filho recém-nascido, S. José e um anjo observando, ajoelhados. A descoberta do “poder fazer” foi alucinante para mim. Saí gritando pela casa adentro. Era aquilo que eu queria fazer mesmo. De volta a São Paulo, procurei onde aprender escultura. Depois de algumas buscas, acabei no ateliê de uma ceramista, fazendo relevos. E quando fiz a cabeça da mãe da professora, mais se afirmou a minha decisão de continuar. Nesse meio tempo tive outro filho e logo depois meu marido ganhava uma bolsa de estudos. Deixando então as três crianças, partimos em fins de 1960 para a Europa, onde permanecemos oito meses. Foi com olhos de escultora em formação, procurando ver tudo, e consciente de que era bastante jovem para assimilar o máximo, reformular maneiras de ver e sentir. O maior impacto dessa viagem foi a Escandinávia. O despojamento, a pureza de formas, o altíssimo padrão de desenho industrial e arquitetura, eram absolutamente novos para nós. Voltamos em 1961. No início de 1962 comecei realmente a fazer escultura. Entrei no ateliê de Anny Galitzin, escultora austríaca radicada aqui. Durante um ano e meio recebi aulas com modelo vivo. Anny, além de ter o dom de transmitir ensinamentos, vinha com toda a experiência de sua formação europeia. Mas ela dissolveu o ateliê e foi quando matriculei-me no curso livre da Fundação Armando Álvares Penteado, onde adquiri outros conhecimentos com Caciporé Torres, durante três anos. 

– Recebeu influências de artistas consagrados? 

– Não. Nenhuma, vinda de outros artistas, embora reconheça o impacto do escandinavo mesclado às fortes impressões recebidas do Japão dez anos mais tarde. Ambas reforçando a tendência, que eu já possuía, à procura de soluções limpas, que não confundem o espírito, mas, ao contrário, o conduzem de uma maneira forte, nítida e, no entanto poética. 

Lúcia Fleury toma fôlego, conta que suas esculturas são feitas laboriosamente, num tenaz trabalho de artesã. Ela corre oficinas, serrarias, arma e esculpe, corta ferro e rebita, tem o manejo certo de muitas e complicadas ferramentas. Quando não tem força para os maiores lances, recorre aos operários amigos, que a ajudam sob duas orientações. As suas obras vão compor interiores ou jardins, são formas “para serem convividas e sentidas”. Explica que descobre muita coisa pesquisando – por exemplo, o alumínio por ser tão sonoro quanto o bronze; usa o aço inoxidável quando precisa de reflexão perfeita, o acrílico “surge dentro de minha escultura como uma pincelada de cor”. 

– Cada escultura é um problema novo. Eu invento uma solução nova para que ela fique com as formas que eu quero, na posição que cismei, captando luz e cores, modificando o espaço. Trabalho diariamente várias horas. Mas muitas vezes a solução de um problema eu a encontro guiando automóvel, escutando música, acordando de madrugada. Escultura faz parte de minha vida, totalmente.

Lúcia responde com desembaraço sobre escultores que admira: Lardera, Calder, Moore, Tommi, Ramniez, a nossa Mary Vieira, tão pouco divulgada no Brasil, os esquimós canadenses. Acha que Mário Cravo está obtendo, depois desse consagrar com ferro e sucata, “um resultado muito bom com suas resinas plásticas”. Gosta da arte maior de Lygia Clark, conheceu-a outro dia, “continua muito criativa, embora se afaste gradualmente da escultura, andando por outros caminhos, fazendo pesquisas sensoriais muito ligas aos problemas da comunicação e da vivência humanas”. 

Lúcia Fleury fala, fala: Sim, arte pode e deve ser ensinada, nas escolas de nível médio e superior... Criatividade é essencial ao desabrochar da personalidade, ela acompanha o homem através da vida... A arte brasileira, tirante a influência e a pseudovanguarda, existe e se afirma... As Bienais são uma realização bastante importante para os artistas nacionais, mas dever ser mais didática para o público... Os primitivos estão em escalada, mas há muita mediocridade infiltrada entre eles... Arte cinética é bem o retrato de nossa época, onde luz, som e movimento são poderosos meios de comunicação... Achei importantíssimas as retrospectivas de Di, Anita Malfatti e Rego Monteiro, três expoentes da Semana de 22, acontecimento artístico importante e decisivo de nossa história... Precisamos agora, 50 anos depois, dar um balanço no movimento da Semana, fazer a sua síntese, definir, mapear, realizar um reconhecimento geral, tudo resultando num movimento, em 72, de gente falando brasileiro contemporâneo... Não, aqui em São Paulo não há crítica de arte, de 1962 para cá, em nove anos, obtive 8 prêmios. Continuo trabalhando em silêncio e os críticos também... Sim, sofri e sofro influências da profissão de meu marido arquiteto, cujas andanças e pesquisas acompanho desde os temos de Faculdade até hoje, pois me interesso pela arquitetura em si, paisagismo, comunicação visual, tudo que diga respeito à sua profissão... O valor que mais admiro é o Amor. Tenho um grande respeito pela liberdade e individualidade da criatura humana, e, portanto, pela justiça e pela paz... Vejo com muita esperança as vozes que se erguem proclamando o homem um novo ser, cujo maior bem é o espírito e a criação superior da alma... E a arte, a arte que fazemos, nós os artistas, é inseparável da vida... Para mim arte é vida... É vida interior que, numa sensibilidade mais aguda, é extravasada em arte... É vida interior e resulta da reflexão sobre tudo o que nos atinge, através dos homens, da natureza, das nações... Eu vejo as coisas ligadas à escultura e à vida, me sinto ligada à humanidade toda porque pertenço a ela. 

Lúcia Fleury, a escultora múltipla e nítida, manda a sua mensagem criativa de fé e de poesia. José Luiz chega do escritório com maquetes e fotografias, jovial e corado, com uma barba grossa, qual Dom Sansone da Granja Viana. Os filhos Mônica(14 anos), Marcos (13 anos) e Carolina (11 anos) esperam na Granja Viana, onde moram, a 24 quilômetros da Capital (foram pioneiros, no bairro distante, entrecortado de granjas e hortas pequenas e médias). Lá ela vive, na casa moderna, situada num amplo terreno de 7 mil metros quadrados, com seu belo ateliê, suas árvores, seus passarinhos, suas jardinagens, seu “hobby” inconfesso. Lúcia Fleury desistiu de procurar Roberto Pontual. Também, para completar sua biografia no “Dicionário”, não falta muito. 

Nos três últimos anos participou de várias exposições em São Paulo, Campinas e Rio de Janeiro, ganhando em 1971 a menção honrosa do Salão Paulista de Arte Contemporânea e o 2º prêmio da I Bienal de Artes Plásticas de Santos. Possui obras no acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo, Museu de Arte Contemporânea de Campinas, Museu de Arte Brasileira da Fundação “Armando Álvares Penteado” e em várias coleções particulares. Visitou a Europa, viu museus e exposições em Munique, Verna (Iugoslávia), Grécia, Paris, Creta, Rodes e Atenas. Viu especialmente esculturas e múltiplos, as artes atuais. Em 72 espoe e ganha prêmio no MAM. Sua proposta é a utilização das embalagens de isopor como veículo de utilitária popular, dentro da realidade brasileira (baixo poder aquisitivo do povo). 

A minha medida 
Obra de arte não precisa de explicações. 
Deve ser sentida, antes de tudo. 
Mas, a obra sozinha não revela tudo a respeito das intenções do artista. 
Sobre o tempo e espaço para palavras. 
Para uma comunicação de raízes. 
Portanto, esta apresentação, que eu não pedi a nenhum crítico, poeta ou amigo, mas faço-a eu mesma. Depoimento que traça graficamente as linhas de força que sustentam minha obra, qual sia tema de uma árvore antiga. 
A dimensão do Homem, sentido e finalidade da arte, é a minha medida. 
Donde, esta busca de equilíbrio (quando a tônica é denunciar o caos) 
Para dizer aos homens, da minha fé, da minha esperança, do meu esforço para realizar até o fim, até as últimas consequências este gesto: 
Tentativa consciente e “inventar” o espírito, 
de reunificar fragmentos. 
Nesta busca, indago, pesquiso, vivo largamente o meu momento histórico, com sua tecnologia, suas descobertas, sua tragédia, sua ânsia de dimensões outras e mais amplas. 
Assim, com a mesma matéria que o homem cozinha seu alimento, e constrói sua casa, eu crio uma realidade toda nova para ele, que somente alcançará uma dimensão maior de arte, à medida que “inventivar” o espírito, isto é, torna-lo mais inventivo, criador, coparticipante de um mundo quase todo por fazer. 
LÚCIA FLEURY – Outubro de 71 – S. Paulo

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