Mabe, sucesso com telas e tacos
– A arte é uma vibração humana. Quando pinto, procuro o outro. O Mabe que há dentro de mim. O Mabe preocupado com o mundo, a terra, a vida, o céu. Meus quadros são frutos do raciocínio, do amor que tenho pela arte, pela minha pintura.
Aos 47 anos, cara de índio, cara de japonês, cabelos grandes, Mabe fala sem indecisões. Sentado numa poltrona de couro, numa das três grandes salas de seu ateliê no Jabaquara, mostra álbuns, totós e recortes. É extremamente organizado e leva a sério sua arte p- um dos poucos pintores brasileiros com valor comercial lá fora. Termina atualmente oito grandes telas para a XI Bienal de São Paulo. Sabe que vai criar polêmica, pois está passando do abstrato – que o deixou famoso - para um retorno gradual ao figurativo.
No cafezal (óleo sobre tela - 1956) |
– Não é bem figurativo o que faço atualmente. Primeiro era caligráfico. Depois passei para uma composição abstrata, forte. Agora estou introduzindo figuras, dentro dessas composições. Algo mágico, algo meio fantástico. Talvez passe ao surrealismo, se sentir assim, algum dia.
Ele acordou às 10 horas, comeu ovos quentes, pão com manteiga, café e salada. Deu uma rápida olhada pelos jornais só nos assuntos de arte. Atendeu o procurador-secretário, Francisco Yutaka Sanematzu. Na noite anterior – como em todas – foi dormir tarde.
– Gosto de sair com os amigos, tomar uísque, bater papo até altas horas. Vivo uma vida intensa, quero chegar aos 90 anos pintando, assim como Picasso...
De manhã, Mabe não pintou. Desceu para o jardim, brincou com o cachorro, andou para o parque japonês, deu de comer às carpas e tilápias do grande lago que mandou construir ao fundo de sua casa. Umas tacadas de golfe, que aprende agora, no amplo gramado.
óleo sobre tela |
Depois, sentou-se defronte às suas telas, analisando cores, espaços e formas. Mabe é um perfeccionista, desmancha telas já pintadas, pinta outra vez, até gostar.
– Na pintura existe o bom e o ruim. O bom pode ser figurativo ou abstrato, O significado interessa pouco. A forma, a cor, a razão, o jeito, o raciocínio de cada tela é que é importante. Os ruins se apagam, ficam os bons – Da Vinci, Miguelângelo, Botticelli, Chagall...
Mabe gosta de “almoço à brasileira” – rabada ou dobradinha, aos sábados feijoada. Cerveja, sempre. E após cada refeição, um pouco de arroz branco japonês e picles. Descansa 30 minutos. À tarde, até às 5 horas, dedica-se a pintar. Depois, sai cm os amigos, frequenta galerias, “é a hora do descanso, de tomar contato com a vida, do uísque revitalizador”. O companheiro inseparável é o pintor Wakabaiashi. E também Fukushima, Nomura, Suchimoto – todos artistas nipo-brasileiros de sucesso. Os sábados e domingos dedica à família e não sai de casa. Joga o “mahjong” (espécie de dominó japonês) com a mulher e os amigos chegados – mais de 20 – que vão à sua casa. Vê pouco televisão – só noticiários.
Abstrato - óleo sobre tela (1977) |
– Estou achando a arte brasileira meio confusa, como a de todo mundo, aliás. Não gosto dessa art-objeto, da arte cinética, da arteônica e coisas assim. Pintura é, antes de tudo, raciocínio, composição, paciência, forma, cor, luz.
– E as bienais?
– É bom continuar, para a gente ver o festival de arte que vai no mundo.
– As galerias?
– Gente boa, necessária.
– Os leilões de arte?
– Não gosto, muito dirigidos.
– Os jovens...
–... Precisam primeiro ver, aprender, viver, para depois começar a fazer arte.
Mabe recorda os tempos no interior de S. Paulo, quando tinha 22 anos e trabalhava na lavoura – comprou umas tintas a óleo, livros de arte e começou a pintar. Com tábuas, fez um ateliê em pleno cafezal.
– Tenho energia, tenho amor pela vida, minha luta é para aperfeiçoar a arte que faço.
Manabu Mabe, filho de Soichi e Haru Mabe, nasceu em setembro de 1924, em Kamamoto, Japão. Imigrou para o Brasil em 1934 pelo “Plata Maru”, naturalizando-se cidadão brasileiro. Pintor profissional. Faz também esculturas em bronze e desenhos para tapeçaria. É paisagista amador. Um dos maiores colecionadores do país de peças incaicas e astecas, pelas quais tem verdadeira paixão.
Natureza morta |
– Ao chegar do Japão, fixei-me no interior do Estado, em Lins, Birigui e Guararapes, trabalhando como colono durante muitos anos em fazendas de café. Meus primeiros quadros datam dos meados de 40. Vindo para a Capital fui morar no Jabaquara, onde comprei uma pequena casa que, hoje, grandemente ampliada, é minha residência e também meu ateliê. Era ajudante de tintureiro. Tingia e pintava gravatas, que vendia aos amigos e em algumas lojas da cidade. Autodidata, admirando muito o pintor japonês Takaoka, radicado em S. Paulo. Iniciei-me na pintura figurativa, e logo passei à abstrata.
Mabe fez uma carreira fulminante a partir de 1959, quando ganhou os maiores prêmios das Bienais de S. Paulo, de Paris e de Córdoba. O “Time” de fevereiro desse ano projetou-o mundialmente com uma reportagem de página inteira. Geraldo Ferraz e outros críticos nacionais, o crítico italiano Giuseppe Marchiori e o francês Georges Boudaille escreveram então detalhadamente sobre sua arte.
– O meu ateliê à Rua Canjeranas, 33, é visitado por “marchands” internacionais e compradores daqui, como Adolfo Block, Juracy Magalhães, Aluísio Faria, Haidée Lee, Gilberto Chateaubriand, Roberto Campos, Carlos Lacerda, Abreu Sodré e outros. Adquiri em 1966 os terrenos vizinhos, reformei e ampliei a casa, fiz um jardim tropical oriental, nos fundos. Em 1969 recebi o prefeito Faria Lima e mais de 100 convidados especiais, inaugurando a casa-ateliê modernizada.
Do ano de suas premiações internacionais, até aqui, tem feito exposições em vários países, não só nas Américas, como na Europa e na Ásia. Abriu seu ateliê em Nova Iorque, na Waaden Street, 22, passando 3 a 4 meses por ano nos Estados Unidos. Temcontartos permanentes com uma galeria do Rio de Janeiro, uma de Nova Iorque e uma de Paris. Em S. Paulo, vende diretamente ou através da “Documenta”, “Cosme Velho”, ou “Astréia”. Participou de várias bienais e realizou mostras individuais em Londres, Mineápolis, Tóquio, Dallas, Washington e Paris. Vários museus importantes do mundo tem obras suas, e, no Brasil, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, Museu de Arte Moderna da Bahia e Museu de Arte de Porto Alegre. Pintou mais de 1.000 telas até hoje.
– Prêmios que conquistei: Grande Medalha de Ouro do Salão Paulista de Belas-Artes; Prêmio Leirner de Arte Contemporânea; Prêmio Braun na Primeira Bienal de Jovens de Paris; Melhor Pintor Nacinal da V Bienal de S. Paulo; Premio Fiat da XXX Bienal de Veneza; Primeiro Premio da I Bienal Americana de Arte de Córdoba; Premio Aquisição do Dallas Museum of Fine Arts, Dallas – EUA.
Casado com Yoshino Mabe tem três filhos – Ken e Joh, gêmeos, de 19 anos, e Yugo, de 16 anos. Os três estudam e se preparam para a universidade. Os gêmeos pintam bem. Mabe os estimula, empresta suas tintas e telas.
– Meus “hobbies”? Filmagens, com minhas maquinas alemã e japonesa: temas viagens, aspectos populares de feiras, cidades, etc.
Manabu Mabe vai saindo para o São Francisco Golfe Clube, levado pelo Sr. Aoki, gerente do Banco Tozan. Em quinze dias surpreendeu a todos, com “drives” espetaculares, de200, 300 metros. Um manejo exímio do taco. Ele que jogou antes Basebol e lutou caratê, acha atualmente o golfe genial. Está convidando os amigos Grassman, Aldemir Martins e Di Prete para esse esporte.
15/8/71.
A VOLTA À FIGURA
Ao desabrochar para a arte abstrata informal... em torno de 1957, Mabe o fez apoiado nas próprias reservas poéticas e revelando que tomara raízes no Brasil sem desenraizar-se do país de origem, identificando-se à atitude dos artistas japoneses que renovaram suas tradições no diálogo com a arte europeia deste século. Os títulos de seus quadros ajudam a dar acesso a este pintor que interpenetra incessantemente interioridade psicológica e exterioridade física e que encontra um simbolismo intuitivo em suas manchas de cor para traduzir emoções e fenômenos transitórios, diluíveis, mas retomados sem intermitências pelo espírito. – WALTER ZANINI, crítico de artes plásticas em 1966, sobre a pintura de Manabu Mabe.
Há cerca de catorze anos, apontávamos Manabu Mabe como o acontecimento-revelação da pintura brasileira, na coluna que então mantínhamos no “Correio da Manhã”. E somente em 1960 pudemos mostrar o seu extraordinário talento ao público carioca, no Museu de Arte Moderna. O que aconteceu com fabulosa trajetória de Mabe, inclusive no plano internacional, é do conhecimento geral: tornou-se um dos mais representativos pintores brasileiros ou nipo-brasileiros; e num sentido mais amplo, do estímulo criador que o Brasil oferece aos valores que o escolhem como pátria adotiva.
Nesta visita a São Paulo, visitamos o ateliê de Mabe, recordando o jovem operário de Lins, que em suas folgas, estudava nos livros e revistas ao seu alcance; e pintava disciplinadamente o que ensinavam os grandes pintores europeus, contendo o seu temperamento, as suas origens e a sua força criadora. Era um bom pintor-figurativo algo castrado, como muitos outros brasileiros da época.
Abstrato vermelho (óleo sobre trela - 1978) |
Até 1957, quando as comportas da disciplina foram rompidas e o pintor explodiu num gestual caligráfico, desenvolvido e másculo, coerente com as suas origens orientais e o abstracionismo dominante. Uma pintura de composição livre e até insólita, estrutura dinâmica, violência gestual, a laca industrial, variações sobre o vermelho, o preto, o branco e o amarelo. Depois, refinou-se: passou a usar óleo-cera, inclinou-se para as formas livres, quase tachistas, buscando expressar a emotividade total e acidental, numa reação à caligrafia de efeitos poéticos (tokonoma). E chegou o nosso grande Mabe a uma pintura mais elaborada e pensada, a um cromatismo mais refinado e sutil com transparências e empaste – na verdade, um mestre do “impasto”, um grande pintor que pode provar por muitos anos sua capacidade de transcender o problema da exaustão de um estilo. Agora, nesta visita de junho-71, Mabe mostrou-nos uma semifiguração, consequência de uma nostalgia permanente da figura, que ele realmente nunca abandonou, em telas que nunca expos, ao longo de sua fulgurante carreira. Sem reeleição brusca da linha e características pictóricas da produção anterior – as grandes superfícies, o espaço, a matéria rica, o impaste, as transparências, as cores, a pincelada mesmo – Mabe transforma as suas formas em figuras humanas, em animais, em símbolos cósmicos, delineando volumetricamente algumas atitudes e situações expressivas das reações e condicionamentos dois homens e dos animais. Consegue manter as suas qualidades plásticas no lirismo com que une abstração e figuração. O novo Mabe pede uma percepção mais atenta, uma reflexão mais profunda sobre o virtuosismo e a sinceridade da sua proposta ambivalente. O compromisso com a figura é tênue – não fixa detalhes anatômicos definitivos ou claros, mas consegue criar um nítido clima figurativo, dando às suas formas o contorno humano e animal. E o faz enfocando aspectos bastante comprometidos com o erotismo, a religiosidade, o cósmico, a família, o protesto ou o pungente. O mundo continua bom e poético para Manabu Mabe, que não exalta nem avilta ou degrada a figura, tratando-a simplesmente como ela o é, de fato, em várias situações...O bom e o belo se sua arte partem, sem perda, para objetivos nobres e de certa maneira utópicos. Mantidas as qualidades plásticas e pictóricas da sua pintura, parece-nos ao atual Manabu Mabe, entre a identificação e a não identificação da figura humana, interessa mais o valor que se lhe atribui. – JAYME MAURÍCIO, crítico de artes plásticas, em 1971, após uma visita recente ao “atelier” de Mabe no Jabaquara.
Sem título (óleo - 1989) |
Manbu Mabe, de acordo com o currículo distribuído com o convite da presente exposição, dedicar-se-ia “à pintura abstrata”, teve, entretanto, até há pouco, uma fase erótico-figurativa, inclusive com exposição realizada em São Paulo, que aliás o mesmo currículo não registra; significaria isso que o artista retornou ao abstracionismo, com a intenção de nele permanecer?
Premiado na Bienal de Jovens de Paris, na Bienal de São Paulo, na Bienal de Veneza e na Bienal de Córdoba, Mabe, depois de seu sucesso em São Paulo,, projetou-se internacionalmente, conquistando boa posição no mercado de arte norte-americano.
Na presente exposição, as pinturas, que são de tamanho modesto, funcionam como “cartões”, para as tapeçarias em que foram ampliadas. Na galeria, não souberam informar o nome do tapeceiro que asexecutou, sendo-nos dito apenas que haviam sido feitas na oficina de um cunhado do artista. O detalhe importa, porque a pintura desta série ganharam enormemente ao serem transpostas para outro material. As cores são fortes e nítidas, e os jogos de cor conduzidos com sabedoria. A espessura dos grãos de tecido dá relevo e dignidade ao trabalho, e como se trata de realizações diretamente endereçadas à decoração, as pequenas pinturas a óleo, colocadas aol ado, e que serviram como ponto de partida para os tecelões, não lucram com a comparação. Inclusive pela liberdade com que se fez a passagem da tela para o tapete, este tornou-se bem mais rico e convincente que aquela; em que medida o própria Mabe terá orientado essa passagem, ou dela participado? Como se trata de trabalho especializado, o habitual é que o pintor forneça apenas o cartão a ser transportado, não interferindo na execução. Há, por exemplo, uma grande peça, em amarelo-branco-e-preto, que é impressionante, cheia de vida em seus grãos gordos, e outra vermelho-branco-e-preto, também belamente ornamental. – ARNALDO PEDROSO d’HORTA em “O Estado de São Paulo, outubro de1972, comentando a mostra de Manabu Mabe.
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