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quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

REBOLO

Rebolo Gonsales, irreverente, vitorioso, mestre paisagista 

– Será que eles vão me pagar “jeton”? 
Francisco Rebolo Gonsales desliga o telefone, faz a pergunta: O dia está muito frio e cinzento para ir á cidade. “Eles são o governo” – “eles” que tragam o livro de atas para assiná-lo. Na noite anterior, fez parte da Comissão Julgadora do Salão Paulista de Belas-Artes. Desde que ganhou um prêmio destacado no Salão, faz parte do júri de premiação. Mas naquele tempo, “só havia o Salão para concorrer”, explica. Hoje o artista tem à sua disposição galerias de arte, museus e arte moderna, os leilões, a Bienal. 

– Bons tempos aqueles, de muita miséria, mas até que era bem divertido – diz Rebolo, com um ar maroto e jovial. Resolvido. Não sai, hoje, de sua ampla e bela casa do Morumbi. Fica escutando rádio e pintando. – A gatinha já tonou leite? 
Auto retrato

Alegre, vivo, irrequieto, ágil nos 68 anos, Rebolo logo bagunça todo o ambiente. A mulher, Lisbeth, afilha de 25 anos, Susi, estudante de pós-graduação de antropologia cultural, o genro Antonio Gonçalves, professor universitário, especialista em Sociologia do Trabalho e agora também conhecedor do mercadão de artes, todos têm um fascínio incontido por aquele homenzinho baixo, atarracado, sempre dedicado à sua arte-maior de pintor consagrado. Agora, ele está bravo com o Corinthians: 

 – Não sei o que deu no timão. Um time que tem Rivelino e outros campeões mundiais, não poderia perder assim do Botafogo! 
Rebolo jogou futebol – e bem. Foi titular do Corinthians – Campeão do Centenário em 22 – e de outros times; chegou à equipe “B” da seleção paulista. Sempre na ponta-direita e sempre com o apelido de “Formiguinha”. Hoje, aos sábados e domingos, em casa, não perde irradiações (rádio e TV) de futebol. Sizi diz com muita graça que o pai liga rádios pela casa pela casa inteira, anda de um lado a outro, não perde um lance. De vez em quando, o filho de espanhóis que nunca perdeu o sotaque caseiro da infância, se enfeza, solta um linguajar típico da Andaluzia. 

Rebolo já pintou de manhã pequenas telas, “para que os amigos que não tenham um milhão possam comprar”. Fez umas águas-fortes, a técnica muito própria, misturando ponta-seca e aquarela. Quem o levou à gravura foi seu amigo Marcelo Grassman. Como Volpi, o saudoso Mário Zanini e o Nóbrega, já fez muitos murais. Desenhos, muito poucos. Calcula que hoje tenha pintado uns 4 mil óleos. Os temas? Confessa: 

– Sou pintor de origem modesta. Nunca me considerei um vanguardista, mas, moderno, sim. Um impressionista avançado, com namoros pelo expressionismo, digamos. E sempre me considerei fiel à minha linguagem, à minha temática – paisagens suburbanas, aglomerados urbanos, casinhas e suas hortas, naturezas mortas. Tudo em S. Paulo que vai desaparecendo, pela volúpia e ganância imobiliária. 
Cena de jogo num bar  (1938)

Pintou toda a manhã desde as 7 horas, quando acordou e tomou apenas um cafezinho simples, com duas fatias de pão. Almoçou bem pouco – carnes e verduras, regime imposto pelo médico de suas coronárias, que já nadaram na delas. Ele não pode tomar cerveja, nem “caipirinhas” – mas o Clóvis Graciano, dileto amigo e compadre-duplo (padrinho de Suzi, batizado e casamento), sai muitas vezes do sério. No Clubinho, do qual foi fundador e presidente, no barzinho do MAM, com Almeida Salles e Delmiro Gonçalves, e em outras ocasiões furtivas, não rejeita um bom uísque. Torna-se então extraordinariamente loquaz, abre debates e discussões sobre arte & futebol, ciência & cultura. Política detesta. 

– A arte brasileira atual? Tem coisas autênticas, mas um certo vale-tudo a prejudica. Dentro do grupo vanguardista, alguma coisa é interessante, até no campo das colagens... Os primitivos eu os adoro, mas os primários... Que Deus e todos os diabos nos livrem deles. Agora, o que está regredindo, mesmo, é a pintura dita acadêmica... Querem fazer coisa avançada e o que produzem é um falso moderno, de muito mau gosto. 

Tudo que Rebolo fez até hoje, diz, foi com esmero, capricho, consciência, a paciência da arte bem executada, do labor melhormente concluído. Começou como pintor de paredes, com o irmão, nos lados do Cambuci, passou para a pintura interior de igrejas – Santa Cecília, Santa Ifigênia, como aprendiz, e um convento da Avenida Nazaré, este com Volpi. Depois veio o tempo da firma de decorações, até há poucos anos, e sua pintura “sutil, consciente, instintiva, pura, lírica, caprichosa, ciosa, regionalista, impressionista” – segundo seus melhores críticos e maiores estimuladores Luiz Martins, Walter Zanini, Luiz Horta, Quirino, Paulo Mendes de Almeida, Mário de Andrade, Geraldo Ferraz, Tarsila, Carlos Lacerda ,Di Cavalcanti, Antônio Bento, Sérgio Milliet, Osório César, José Geraldo Vieira e outros. Fecha um dos olhos, num trejeito habitual. Toma um cafezinho sem açúcar. Está de roupa esporte moderna. Já fumou hoje oito cigarros marca “LM” ou “Hilton”. Elogia o Museu da Calçada da Collectio, e conta uma historieta muito engraçada. Um “marchand” Esperto, quando da demolição recente do Edifício Santa Helena, onde tinha atelier, sala nº 32, com Pennacchi e Humberto Rosa, foi lá arranjar a plaqueta da sala de Rebolo. O mestre de obras informou que “um senhor magro e careca” já as levara todas. 

– Aposto que foi o José Paulo, o diretor da Collectio. Aliás, vamos tirar o chapéu para ele, revolucionou o mercado de arte, fez as galerias darem o devido aos pintores, faz leilões, organiza mostras, promove e vende os artistas. 

– Rebolo, você é feliz? 
– Muito, nunca esperei tanto da vida, não só no campo material, como principalmente no espiritual. Fiz-me pintor conhecido e respeitado pelos colegas e grandes críticos – aqui e na Europa. Vendo facilmente minhas pinturas. Moro admiravelmente neste Morumbi que vi nascer, e onde tive uma chácara. Tenho uma família que gamo. E principalmente, pinto, pinto, pinto, ouvindo a passarada das matas aqui em volta cantando. 

Rebolo Gonsales está satisfeito, sim. Em 73, conta, o Museu de Arte Moderna por iniciativa “dessa grande amiga e pastora Dina Lopes Coelho”, exporá a retrospectiva da arte reboliana. Este ano, ele ainda espera viajar, Bahia, o Sul, não como turista, mas para “fixar paisagens e pintá-las sempre”. Ele atende um último telefonema e critica uma inauguração recente, as pessoas “ficaram de costas para os quadros do pintor, uma desconsideração, uma balbúrdia”. 

Pega sua “Variant”, último tipo e vai levar repórter e fotógrafo ate o ponto distante de taxi. Há vinte anos, recorda-se, fazia o mesmo com Sérgio Milliet, Arnaldo Pedroso d’Horta, Claudino Amaral, Volpi, Bonadei e outros amigos que o visitavam no matos (então) do Morumbi. Mas só que a condução era outra – sua motocicleta “Galatéa”, de tão saudosa memória... 

– Bons tempos aqueles, de muita miséria, mas bem divertidos... Outro dia encontrei a Didi, nossa modelo bem branquinha do Santa Helena, não a reconheci, estava gorda e barriguda... Os tempos passaram, – diz um tom de melancolia, o Paco do Caribê, o Formiguinha se Sérgio Milliet, o Rebolinho do barzinho do MAM e do Pepe’s, o Rebolo Gonsales da primeira linha da arte brasileira de nossos dias, realizado, feliz, vencedor. 17/10/71 

Um artista do futuro 
Rebolo é, incontestavelmente, uma das figuras exponenciais do Santa Helena. Talvez a mais difícil de ser compreendida por uma visão intelectualista, como a que predominou até há pouco nos meios artísticos de vanguarda mas que já está basicamente superada. Por isso, ele é um artista do futuro. 

A arte em uma importância prospectiva fundamental. Ela nos ajuda a descobrir o que começa a ser necessidade premente para a humanidade, em cada etapa nova da sua evolução. Hoje temos necessidade de uma aproximação nova com a Natureza. São muitos os caminhos deste encontro. Talvez o mais fundamental seja o da vivência poética espontânea das coisas mais simples. Pode parecer simplório, mas é o que leva às coisas mais básicas e, portanto, mais altas. Toda a obra de Rebolo gira em torno desse encontro do Homem com a Natureza, na vivência e fruição espontânea das coisas simples da vida e do mundo. A sua admirável intuição poética lhe revela a vibração vital sútil da Natureza, o seu tempo-verdade, tão diferente do tempo-robot. Por isso, a sua arte é mais mágica do que as variadas pesquisas psicodélicas dos dias que correm, apesar da sua grande significação como mundo ocidental, e mesmo como experiências de um novo caminho para romper a robotização. 
Rebolo 

A pintura de Rebolo me fascinou sempre, porque sentia nela uma verdade profunda, que não encontrava em outras obras de maior impacto. Depois, percebi que tinha uma relação essencial com o tempo, semelhante a que sentira na grande pintura chinesa da época Sung, o apogeu da pintura do Extremo Oriente. Gradualmente, fui compreendendo que toda obra de arte plástica era na realidade um espaço temporalizado, dando uma vivência da duração da intuição de Bergson, a quintessência da vida. 

 Devemos a Rebolo uma variedade impressionante de apreensões artísticas do tempo-vida, nas suas melhores paisagens, naturezas-mortas (ou melhor, vivas) e nos seus retratos e figuras humanas. A significação dessas obras irá sendo compreendida cada vez melhor, na medida em que for desaparecendo a idéia superficial deque a obra de arte é essencialmente uma estrutura formal, em vez de um instrumento de comunicação de verdades fundamentais para a existência humana. MÁRIO SCHENBERG, para o catálogo da retrospectiva de Rebolo, no Museu de Arte Moderna de SP. 
óleo sobre tela (1956)
Francisco Rebolo Gonsales está completando 70 anos neste ano de 1972, as homenagens são muitas, partem da Câmara Municipal que lhe conferiu a Medalha Anchieta, do Museu de Arte Moderna, do Centro de Artes Novo Mundo, da AAMAM, do Clubinho dos Artistas, de “A Galeria”, da Galeria “Seta”,, da Galeria “Azulão”, do Senado Federal, dos colegas pintores, dos companheiros do Grupo Santa Helena. Entre tantos coquetéis e honrarias, o Rebolinho está feliz, na sua casa do Morumbi, ao lado de d. Lisbeth (a grande companheira de tantos anos de lutas), de Susi e do Antônio Gonçalves, de Norma e Armando, Maria e Nelson. Suas opiniões são seguras, não fora ele, durante tantos anos, além do mestre pintor, um líder nato de sua classe. 
Arte brasileira – está em ascensão, com algumas quedas inevitáveis; 
Leilões de arte – muito bons, chegam até t arde demais; 
Bienais – ponto de partida do grande movimento dasartes, hoje em dia; 
Anti-arte – é um desastre, por ser insensível que o povo gosta e quer; 
Valores atuais – aprecia vários, Stockinger, Volpi, Pennacchi e centenas de outros, que não para de enumerar; e coma maioria deles mantém a maior camaradagem (Graciano, Bonadei, W. Lewy, Grassmann); 
Santa Helena – tinham aqueles pintores um ideal conjunto de ação e uma filosofia de vida e, nas artes, tentaram – e com sucesso – atrair para o movimento artístico os literatos de 22; 
Clubinho e Sindicato dos Artistas – Desempenham papel relevante no movimento de arte em nossa terra, aglutinando artistas, desencadeando propostas novas, abrindo caminhos para os movimentos que viriam a seguir, inclusive as Bienais etc. Num tempo de guerra contra o nazi-fascismo, tinham também uma posição de luta da democracia, ao lado do povo; 
Família Artística Paulista – “La même Chose” que a resposta anterior (o Rebolinho ri, franze toda a testa, num gesto típico); Paz – Fui atleta, fui pintor de parede, sou artista, vivi muito e lutei bastante, a vida me ensinou muita coisa, a melhor das quais é que vale a pena lutar, por princípios, pela paz, pela fraternidade, pela justiça, por um amanhã melhor.

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