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sábado, 6 de junho de 2015

ISMAEL NERY – SUA ARTE E SEU TESTAMENTO

Ismael Nery
Reunindo 104 obras de Ismael Nery, da fase considerada a mais sofrida e angustiada do artista, o Museu de Arte de São Paulo está apresentando uma exposição de desenhos e aquarelas do pintor surrealista e intelectual cristão, hoje considerado pela crítica um dos 5 maiores nomes da arte brasileira em todos os tempos. A mostra fica aberta a visitação pública no subsolo do MASP, até o final do mês, numa promoção da Galeria Seta e Giuseppe Baccaro, “marchand” residente no Recife e a quem se deve a iniciativa da exposição. 

O catálogo tem artigos de Manuel Bandeira, Murilo Mendes, do próprio Baccaro e do prof. P. M. Bardi, diretor do Museu de Arte, sobre a vida e a obra de Ismael Nery. As pessoas que visitam a exposição recebem um impresso – publicado pela casa da criança de Olinda, em cujo benefício são vendidas as obras de Nery – com o Testamento espiritual de Ismael Nery, um documento de raro valor, próprio de um artista fino, sensível, inteligente e espiritualista, como Ismael. 

Sobre Ismael Nery diz seu amigo, o poeta Murilo Mendes, segundo uma compilação de 17 artigos, publicados sobre Ismael no “O Estado de S. Paulo”, organizada por Myrna Grzich, jovem, pesquisadora de nossas artes. 

Retrato de Murilo Mendes por Ismael Nery
Foi em fins do ano de 1921 que conheci Ismael Nery. Eu trabalhava na antiga diretoria do Patrimônio Nacional. Ismael Nery foi nomeado desenhista da seção de arquitetura e topografia. Vi um belo dia um moço elegante e bem vestido entrar na sala. Ajeitou a prancheta, sentou-se e começou a trabalhar. Meia hora depois saiu para o café. Aproveitei sua ausência e resolvi espiar o que ele fazia: rabiscava bonecos em torno de um projeto de edifico. Ao regressar puxei conversa com ele; saímos juntos da repartição. Assim começou uma amizade que se prolongou ininterruptamente até o dia de sua morte, em 6 de abril de 1934. Foi, pois, sob as espécies de pintor, desenhista e arquiteto que conheci Ismael Nery. Mas, em breve, outros aspectos, estes os mais profundos de sua personalidade, me eram desvendados: o do poeta, do filósofo e mesmo do teólogo. Aqui, devemos fazer uma observação. Se o critério de cultura está condicionado à pose de uma biblioteca, Ismael era mesmo do tipo inculto, pois não a possuía. Seu método de cultura era muito prático e inteligente. Quando ele queria saber qualquer coisa, dirigia-se a algum conhecedor autêntico do assunto. Muitas vezes sabia em 10 minutos o que levaria semanas a aprender se consultasse um livro. Ismael lia no grande livro sempre aberto, no livro dos homens e da vida. Era um polemista nato, um conversador apaixonado que vivia em vigília permanente. Ismael conservou-se sempre cristão. A época em que viveu era muito desfavorável ao catolicismo no Brasil. Os intelectuais eram, na grande maioria, agnósticos, comunistas ou comunizantes. Mesmo muitos com tendências espiritualistas disfarçavam-nas; a religião parecia-nos como qualquer coisa de obsoleto, definitivamente ultrapassado. O catolicismo era sinônimo de obscurantismo, servindo só para base de reação. Nós todos éramos delirantemente modernos e queríamos também instalar uma espécie de nova ética anarquista (porque de comunistas só possuíamos a aversão ao espírito burguês, uma vaga idéia deque uma nova sociedade – a proletária – estava nascendo). Nessa indecisão de valores é claro que saudamos o surrealismo como o evangelho da nova era – a ponte da libertação. 
Auto-retrato (1930)

Ismael voltou a Paris em 1927 e fez conhecimento com alguns pintores e escritores surrealistas. Mas, apesar de lhe interessarem muito as idéias novas, permanecia firme na sua fé que considerava apoiada sobre um valor absoluto, definitivo e eterno. Tomando a Cristo como filósofo e modelo supremo dos poetas e dos artistas, Ismael transpôs certos exemplos e ensinamentos, dando-lhes atualidade viva, provando, assim, sua permanência e perenidade. Era, portanto, possível em 1930, ser um grande artista, homem moderno e católico de comunhão frequente. Assim foi Ismael Nery. Quem não passou por tal experiência, talvez não possa julgar o alcance dessa revolução. Faltou a Ismael um cronista, ou melhor, um taquígrafo. Em certas ocasiões esboçava um livro sobre Ismael Nery. Livro difícil, pois se tratava de uma personalidade tão complexa e tão grande. Ismael não dava importância a qualquer realização. 


A meu ver, embora pareça paradoxal, o que o prejudicou, humanamente falando, foi o excesso de qualidades. Era, por exemplo, um dançarino notável, tendo recusado uma vez, em Roma, um convite para trabalhar com o célebre Volinini. Foi um dos primeiros arquitetos modernos do Brasil. Tantas idéias e sugestões lhes vinham à cabeça que não tinha paciência para pousar a mão num trabalho lento: o intelectual sufocou o artesão. Desenhava com espantosa facilidade, improvisando a todo momento, nas mesas dos cafés, em qualquer pedaço de papel que tivesse ao alcance da mão. Não tinha em casa nenhum quadro de sua autoria. Jogava os desenhos no cesto, de onde eu conseguia retirá-los, ora com a ajuda de sua mulher – a poetisa Adalgisa Nery – ora subornando as empregadas. Ismael era poeta contumaz, e ninguém conheci mais poeta do que ele. Punha realmente a sua qualidade de poeta acima da de filósofo, e muito acima da de pintor. Como às vezes eu o interpelasse a respeito da possibilidade de escrever poesias, Ismael respondia que “não desejava ser poeta oficial”. Escreveu de fato poucas poesias; as que encontrei entre seus papéis, publiquei-as na revista “A ordem”, em fevereiro de 1935.

Auto-retrato 
Ele, o homem preocupado com o eterno, compreendia e sentia melhor que ninguém até mesmo a poesia do cotidiano, do banal, pois nenhum pormenor escapava à universalidade do seu olhar. Possuía uma incomparável organização de sentidos, que considerava uma grande arma para a vida. Era partidário de um sistema de educação harmônica da inteligência e da sensibilidade, contra o cultivo unilateral do emperramento. Havia um homem comum dentro desse homem excepcional e singularíssimo, um homem que adorava o cineminha de bairro, a conversa mole no café, as regatas, a leitura de jornal, o futebol e boxe. Gostava da displicência do homem brasileiro, do seu jeitão de fazer pouca força pela vida, enxergando nisto um instinto de sabedoria. 

Estabelecia todos os dias mesa-redonda sobre o caso em seu foco, acontecido aqui, na França ou no Japão. E quando não surgia nenhum caso interessante para discutir, dirigia-se ao hospício, aos albergues, às prisões, aos sanatórios, aos bastidores de teatro, trazendo novos fatos que nos transmitia, obrigando-nos a tomar partido, a formular opiniões, a sair da rotina, enfim. Mas tão grande era sua aversão à publicidade que nunca se preocupou com a irradiação de seu sistema, de maneira intensa e superficial, preferindo a concentração e a profundidade.

Pintura em tela
Muitas vezes interpelei-o a respeito da transmissão de suas idéias estéticas, filosóficas e religiosas. Dizia-lhe que um homem de sua estatura era indispensável ao mundo; que sendo impossível aos seus amigos divulgar tais idéias, devido ao tom singular com que ele as apresentava. Ismael me respondia que não havia nenhuma importância nisso, e que “se suas idéias fossem verdadeiras, haveriam de se transmitir na sucessão das idades, não importando que aparecessem com o nome dele ou de outro”. Ismael nos mostrava um Cristo reconstituído à sua verdadeira estatura – era uma vassourada poderosa na concepção do Cristo pelo século XIX, o “meigo nazareno”, ou o filantropo, o reformista social, o moralista. Surgia-nos um Cristo companheiro cotidiano do homem, seu guia no tempo e na eternidade. Surgia-nos como o artista máximo, o criador de um grande estilo de vida. Nós alegrávamos de que não podíamos mais crer no Cristo devido a uma fatalidade histórica: os tempos eram outros, o ciclo cristão, como escrevia Marx, estava encerrado. Ismael um dia fez um desenho: um homem, de joelhos, diante do crucifixo, com a seguinte legenda: “Meu Deus, provisoriamente não posso acreditar em vós, devido a uma fatalidade histórica. Mas todos os anos, na Semana Santa, vou ao cinema assistir ao filme da vossa paixão e morte, e choro”. 

Testamento de ISMAEL NERY 

Esperei até hoje para que vos me descobrísseis. Quis dar-vos o prazer de vos sentir crescer. A minha excessiva proximidade impediu, porém, que me olhásseis como realmente sou. Contar-vos-ei agora aminha história, e descreverei o meu físico para que disto tireis o proveito necessário e justifiqueis a minha e a vossa existência.
Pertenço a esta espécie de homens que não constroem nem destroem, mas que explicam toda a construção e toda a destruição. Eu sou um predestinado, como foram também, meus predecessores e como serão os meus sucessores. Através dos séculos deveremos desenvolver o gene que no princípio da vida recebemos. Nós somos os grandes sacrificados que sofrem por todo o erro e atraso dos homens. Somos os homens que amam e consolam: não somos amados nem consolados. Se não fossemos portadores do germe de que vos falei, há muito que a nossa raça teria acabado violentamente. Quando tudo tiver atingido seu fim, aí começara nossa visível utilidade. O homem agora distribui suas esperanças na arte e na ciência. Chegará um tempo em que a arte e a ciência não bastarão mais para suprir a ânsia crescente de compreensão que a humanidade tem. Toda a arte resume-se em suprir as necessidades científicas, toda a ciência resume-se num estudo do equilíbrio da vida e numa tentativa formidável de conhecimento da matéria da vida. Ah! Se nós nos pudéssemos conhecer, ou se, pelo menos, pudéssemos chegar a conhecer um outro homem! A solidão do homem é o que mais o apavora na vida. Os homens se olham como desconhecidos com as mesmas roupas. Vivemos desconfiados – tudo fazemos para garantir o que possuímos, com medo dos ladrões de toda espécie que vemos em todos os homens. 
Inventamos o direito e a polícia; pomos em nossas casas grades de ferro e portas de bronze. O homem se esquece de que o que possui moralmente não é acessível aos ladrões, mas aumenta seu desassossego comas suas posses fiscais, esquecendo a ciência por ele já conquistada. Para que guardais uma mulher que não é vossa? Para que vos bateis por uma idéia que não sentis? Para que duas casas com um só corpo? Para que o sustento de uma vida sem consolo? Ah, a esperança! Que é a esperança? Tenhamos esperança – aumentamos a esperança – eu em Deus e vós em mim e em meus sucessores. Um conselho vos dou, com a autoridade que me conferem as rugas de minha testa, o meu olhar febril e minhas mãos mutiladas: não façais o que vos causar nojo, mesmo que tal nojo seja mínimo. Orientai vossa ciência para conseguirdes um aumento micrométrico de vossas sensibilidades. Já reparastes, meus irmãos, que vivemos num mundo em que existem soldados, juízes e prostitutas? Onde se encarcera um homem pelo depoimento da testemunha, ou se enforca um outro por insultar um líder? Existem testemunhas? Existem líderes? Que é a vontade do povo? Que é o bem geral? Já fizestes, com a ciência que tendes, a psicologia de um chefe? Por que não acreditar em Deus, quando acreditais até nos regimes políticos? 
A humanidade, como as plantas, precisa de estrume. Dos nossos corpos renasceram aqueles corpos gloriosos que encerram as almas dos poetas, aquele de que nós já trazemos o germe. Tudo foi feito no princípio – porém tudo só existirá realmente em tempos diversos. Os poetas serão os últimos homens a existir, porque neles é que se manifesta a vocação transcendente do homem. 
Todo o homem recita um poema na véspera de sua morte. A humanidade recitará também o seu nas vésperas da sua, pela boca de todos os homens que nesse tempo serão poetas. 
– “Mirabili Dominus in opera ens”. (Novembro – 1933)

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