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segunda-feira, 5 de junho de 2023

24 horas no universo feérico de CARMEN PRUDENTE

- Senhor, ajudai-me a viver o dia de hoje. 

Carmen Prudente acordou às 7:15, fez a reza diária que um velho padre do sul lhe ensinou. Não dormiu muito bem, anda meio fatigada e preocupada, desde que Médici foi ao Hospital do Câncer. O presidente disse que dará um milhão inicial para a construção do Pavilhão nº 2. Mas, e os outros dezessete milhões necessários à obra? A Rede Feminina instalada em 183 municípios, as 174 voluntárias da Capital, a “Quitandinha” do próprio Hospital - que só no ano passado arrecadou uns 300 mil cruzeiros - não poderão arcar com tanta responsabilidade. Ademais, Carmen anda cansada e rouca, as aulas, palestras e telefonemas se sucedem, o médico quer que ela pare um pouco, pode ter um esgotamento como o do meio do ano. Corre os olhos pelo “Estadão”, os acontecimentos do Chile e da Argentina a preocupam mais, a morte de Neruda e de Ana Magnanai - de câncer. Já toma o primeiro café com leite do dia, pão e manteiga, geléia, ela mesma preparou tudo, vive sozinha, não tem nem empregada (só uma arrumadeira). 

O telefone está cocando no apartamento onde mora, cheio de lembranças de viagens e do Prudente, o marido que se foi há 8 anos, - um casamento felicíssimo, segundo as amigas, e o que se completava. 

- Alô, é você Majô... Passei mais ou menos... Sonhei com o Prudente, veja você, uma coisa maravilhosa, estava tudo escuro, de repente ele saiu de dentro e ficou tudo colorido, ele ria e veio até mim de braços abertos me buscar... Como eu não gosto de não sonhar... Gosto, sim, dos fenômenos espirituais, até de parapsicologia, converso sempre com um professor, você sabe... Não, não, não, reencarnação não acredito, depois, já basta agüentar esta vida, não acha?... Sou muito religiosa, sim... Com firmeza de caráter, fé sincera e bom humor pra agüentar as coisas ruins, a gente suporta qualquer tranco... Eu tenho uma fé profunda, sei peneirar o bom do mau, comigo, os sepulcros caiados não pegam... Veja a Igreja, como resiste a intrigas e pressões... As baixezas aparecem num país, estouram em todos, há uma força organizada, mas Deus com sua providência divina a todos socorre na hora certa... Se eu sonhar outra vez com o Prudente e acordar, fecho os olhos e s aperto, êta sonho bom, Majô. 

Majô é a Maria José da Cunha Carneiro, uma das amigas íntimas de Carmen Prudente. Ela conhece os dois desde pequena, amizade de família. Carmen conheceu Antonio em 1938, num congresso médico na Alemanha, ele chefiava a delegação brasileira. Paulista, de descendência ilustre, seu avô, Prudente de Moraes, chegara à presidência. Ela, jornalista gaúcha, era também nascida em berço ilustre - o pai, Heitor Annes Dias, médico conceituado, o avô materno, Julio de Castilhos, condutor de revoluções no Sul. A mãe, uma grande dama, culta, fina e bela, cantada até hoje em prosa e verso nos pampas, Carolina de Revoredo. Majô vai passar no Hospital mais tarde, é voluntária, combinam e se despedem afetuosamente, o tratamento é de “tu” e “ti”, que Carmen usa às pessoas de sua maior afeição. 

Jurandir já está com o carro lá em baixo, ela gosta e brinca com o motorista do Hospital. Ele vai levá-la agora ao dentista; Carmen cumpre pacientemente o ritual, as três injeções não doem, mas dão aquela sensação de dormência boba na boca, uma azar, logo hoje que tem reuniões e palestras pela frente. Às 10 horas está na Swissair, fala em Frances com o gerente, está agradecendo a passagem que a empresa suíça deu à Rede, para uma noite em Catanduva em benefício do Hospital. |Passagem até a Europa, ida e volta, num DC-10. 

- Ah, meu filho, estou louca pra andar num avião desses... Vamos ver se dou sorte, este ano vou à Europa, a convite, com tudo pago, senão não aceitava... Nunca viajei com dinheiro da Rede Feminina... Vou falar num congresso em Lion, sobre a luta contra o câncer no Brasil, a convite da Organização das Voluntárias da Europa, sou a única representante da América do Sul... Depois, sigo para Mônaco, há lá uma reunião internacional para se discutir sobre a educação popular em assuntos de câncer, tema de minha especialidade, isso é quase que minha vida... E finalmente Portugal, no Porto, a convite da União Internacional contra o Câncer, inauguro o Instituto de Câncer local... Sou uma viajante emérita, conheço os cinco continentes, escrevi uns dez livros de viagens reunindo minhas reportagens da “A Gazeta”... Pena que o grande incentivador delas não possa amais lê-las, o Prudente lia e ria... Tantas confusões armava mundo afora... Aqui no Brasil, nos últimos dois anos e cinco meses, viajei 35.518 quilômetros, para debater, falar, tratar de assuntos do Hospital e da Rede Feminina de Combate ao Câncer... Leio e recorto tudo sobre todos os países, principalmente os que não conheço - um dia chego até eles. 

Já está na hora de rumar para o Hospital, cujo Instituto Central foi inaugurado em 1953, com 300 leitos, e onde funcionam a Associação Paulista de Combate ao Câncer (fundada por Prudente em 1934), a Rede Feminina que se estende a 183 municípios, a Triagem de Espera com 50 leitos, tudo funcionando a tempo e hora, nos prédios cinzentos e bem ajardinados, ali na Liberdade, os prédios incrustados na rua revolta pelas obras do Metrô e onde desfilam as boates e bistrôs da colônia japonesa que ali reside. 

Carmen entra como passo leve e rápido, cumprimenta porteiro e atendentes, sobe ao andar onde estão reunidos engenheiros e arquitetos - faz oito anos, faleceu Rino Levi, que projetou o Instituto, uma placa em sua homenagem é descerrara. Todos se reúnem em seguida para traçar diretivas quanto á construção do segundo pavilhão do Hospital, a capacidade será dobrada, se a obra chegar ao fim - com o dinheiro que Carmen Prudente se encarregará de arranjar. Agora ela passa pelo Pavilhão Infantil, todo decorado com desenhos originais de Walt Disney, afaga crianças com extremo afeto. É quase uma da tarde, é hora de chegar ao seu escritório, iniciar o atendimento vespertino, resolver mil casos, ver e prover, ouvir e resolver, dar e decidir, transmitir alegria e paz. Aurora, a secretária, senhora disposta e voluntária também, dá à Carmen Prudente o abrigo rosa, que ela coloca sobre o tailleur das andanças matutinas. No braço, as insígnias da Rede, as cinco cruzetas e os dois botões - vinte e sete anos de lutas à frente da assistência do combate ao câncer. Os telefones são três, um do PBX, dois outros diretos. Um deles já toca, manda vir o almoço, simples frugal, come ali mesmo, a bandeja sobre a mesa apinhada de papéis, lembretes, recordações de viagens, notas, fotos, cartas, caixinhas, o móbile alemão, anjos de Natal, o escritório é ao mesmo tempo sala de atendimento, biblioteca (vasta e variada) e - Carmen não gosta do termo - um museu bem organizado com mil condecorações e diplomas dela e de Antonio Prudente. Judith Celestino fala de problemas do Clube do Siri, com 20 mil crianças, “a coisa mais linda que temos aqui”, diz Carmen, que já atende o outro aparelho. É Iolanda Cerello. Estás organizando uma festa, cuida da recreação dos doentes. A Hebe vem? Ótimo... Veja se o Consulado Americano empresta uns filmes coloridos, melhores, cinemascope, coisa assim... Em meio à mesa revolta, desenhos de crianças, a frase anotada de Santo Agostinho; “Ele está presente, quando a solidão nos pesa, nos ouve, quando só o silencio nos responde, nos ama, quando todos nos abandonam”. 

Maria Tereza Esteves, presidente da Rede em Itu, entra com duas companheiras voluntárias. Trouxe um cheque de Cr$ 14 mil, contribuição da Prefeitura e de firmas locais para a campanha. Carmen sorri - o sorriso que derruba barreiras, conhecido de norte a sul do país - fala, agradece. 
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- Outro dia, uma Prefeitura enviou 20 mil cruzeiros... Também recebemos contas de luz de toda parte... Brinquedos, móveis, utensílios, roupas, aceitamos tudo, cada gesto dos que dão são prova de amor e de solidariedades humanas... Estamos aqui para trabalhar e servir, não vemos barreiras pela frente, estamos hoje em dia espalhados por 17 Estados... O mundo de Deus é bem feito, mas tem suas misérias e provações, e nós temos uma missão a cumprir, a de minorar o sofrimento dos doentes e infelizes... O ideal é suportar a vida com firmeza, muita fé e bom humor... Tenho minha particular própria, meus problemas íntimos e cotidianos, mas, aqui, sou a mulher jovial de Jung e outros estudiosos... Sou obrigada a ser alegre, a fazer do sofrimento que vejo à volta, a minha felicidade, senão a de muitos... Prudente era assim também, tinha uma fé profunda e cristã... Ele era, sobretudo, um homem bom. À noite, em casa, pensando em seus doentes, sentava-se ao piano, compunha lindas canções... Até hoje, só escrevo ou traduzo, ouvindo música... Rosita, como foi o movimento da Quitandinha, hoje? 

Carmen atende mais telefonemas e muitas pessoas ainda. José Maria Homem de Montes, atual presidente da APCA, dá noticias, cobra outras. Avisa que José Ermírio de Moraes está entrando de rijo na luta contra o câncer e atual entidade pode virar Fundação. U’a mulher humilde traz presentes para as crianças cancerosas internas. Outra veio de Londrina, quer visitar um doente, o dia não é de visita, Carmen tem de encontrar a fórmula certa para contentar a todos. Lelé, um servente que está com os Pudente há 20 anos, entre, vem buscar a foro do Presidente abraçando Carmen, no dia da visita recente. “Ainda não fui a um lugar duas vezes em meu governo, só aqui”, disse Médici à presidente da Rede. Ela se emociona, conta detalhes da visita presidencial. Majô chega, avisa que o carro já as espera, são cindo horas. É hora de irem a Santos, onde Carmen vai falar à noite, a convite do Rotary: suas viagens, idas e vindas por esse mundo afora, ocupando o tempo, sendo útil, sempre positiva, franca, leal, culta, inteligente, afetuosa, depreendida, com a coragem que Deus lhe deu, no pequeno corpo de gaucha miúda e morena, firme e decidida, jovem e disposta para sempre a grisalha de amada cabeça que mil gentes procuram ali na José Getúlio. 

A Carmen que chega a Santos faz uma conferência com muita graça - as peripécias no Japão são realmente pitorescas e divertidas - e que logo após diz à repórter, grave e bela, abrindo muito os olhos cor de jabuticaba, que a luta continua, continuará a viver como até hoje, sente-se feliz trabalhando em benefício do próximo, nós todos. Já são quase onze da noite, o rosto de Carmen se ilumina. 

- O câncer não é uma, mas muitas doenças... Também dá em criança e não pega por contágio... Tratado desde o início tem cura, sim... As pesquisas, em todo o mundo, vão adiantadas... Um dia, ele será curável... O Prudente acreditava que será ainda neste decênio... Eu tenho fé em Deus que sim. 

Ela volta agora ao apartamento da Cincinato Braga, o dorme-não-dorme até as sete da manhã, na pequena cama em que dorme agora, sob aquele mesmo crucifixo que o Prudente gostava, o marido companheiro, alma nobre, com quem tenta sonhar agora, um sonho colorido e feliz. 

LUIZ ERNESTO Especial para CLÁUDIA
27 de setembro de 1973.

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