CABOCLO COM ALMA DE BANDEIRANTE
DÁ AULA DE HISTÓRIA EM SOROCABA
Doente e retirado, é um dos grandes folcloristas do Brasil - Cônego e tem sangue de alemão - Uma história com Pedro Calmon
SOROCABA, 25
- Pedro Calmon apareceu nesta cidade para fazer uma conferência de História. Pegou seu palavreado barroco e estourou no meio do auditório frágil.
Depois, quis conhecer a cidade:
- “Você não tem um historiador, aqui? Me apresentem um, que seja o melhor da cidade!
O grupo luzidio se entreolhou. Logo essa, agora! O maior historiador da cidade era um padre. E não seria fraqueza, apresentar logo um padre simples, ao grande Pedro Calmon?
Mas a apresentação se fez. O padre pôs-se a falar. E mostrar a cidade, no carro repleto. Sabia tudo: a história da cidade, seus ciclos econômicos, a genealogia da sua gente. Pedro Calmon guardou até o barroco.
E, no aeroporto, de volta dizia:
- “Pois olhem. A melhor coisa que me aconteceu nesta cidade, é ter conhecido esse grande historiador, o padre Luiz Castanho de Almeida”!
Só que Pedro Calmon errou duas vezes: o padre era cônego, a primeira: e não era apenas um grande historiador, mas um pesquisador notável de folclore, a segunda. Vamos a ele.
CABOCLO, BANDEIRANTE E... ALEMÃO
Mora com a mãe numa casinha simples. A saleta, onde aparece, é cercada de livros de história por todos os lados. E de bom folclore. História e folclore são as duas coordenadas da vida do cônego Luiz Castanho de Almeida.
- “Sou um caboclo, mas tenho raça de bandeirante” - diz ele, quase gordo, de batina batida pelo uso. Atrás dos óculos frágeis. E melhora:
- “Mas tenho um pouquinho de sangue alemão, também”.
O cônego Castanho (seu nome popular) nasceu em Guareí, São Paulo. Data: 6 e novembro de 1904. Em 1927, ordenou-se me Sorocaba. Foi pároco e professor em Guareí, Itararé e Sorocaba.
Ele enxerga mal e está quase surdo. A esclerose dos nervos põe bambas as suas pernas. Os males começaram em conjunto, há uns vinte anos. Por isso, forçado ao repouso obrigatório, dedicou-se à história e ao folclore.
Na história, a de Sorocaba. No folclore, ao infantil.
Durante todo esse tempo, teve uma só secretária, enfermeira e animadora. Dona Ana Cândida Rolim. Sua mãe.
OBRAS E MATERIAL COLHIDO
Trabalhando assim, picado e pacientemente, o cônego Luiz Castanho de Almeida conseguiu reunir uma imensa obra. Sua “História de Sorocaba” é o livro oficial da cidade.
José Olympio há alguns anos, editou com sucesso o seu livro “A História da Revolução Liberal de 1842”.
Outros artigos de história (centenas) estão em jornais da cidade (especialmente na “Folha Popular”) e da Capital. Ou na revista “Vozes” (de Petrópolis). E, ainda, na Revista do Arquivo Municipal de São Paulo (Prefeitura).
Tem 3 livros de folclore: “50 contos populares”, “Contos Populares do Planalto” e “Contos do Povo Brasileiro”. Ao todo, já recolheu cerca de 300 contos da literatura popular. Isso sem contar milhares de mitos, fábulas, advinhas, provérbios, sabedoria tradicional e anônima.
Seus artigos no “O estado de São Paulo”, com o nome literário de Aloísio de Almeida, atingiram mais de três centenas.
A obra histórica tem elogios, inclusive, de Taunay. Sobre o material de folclore, ele mesmo diz:
- “Meu orgulho é ter tido boas referências, para meus trabalhos, de Luiz da Câmara Cascudo, o nosso “chefão” do folclore brasileiro.
Entre o material colhido, destaca também: centenas de receitas de curandeirismo e histórias populares da Ilha da Madeira (tiradas de um paroquiano, português da ilha).
Tudo que publicou, até hoje, era inédito.
O
CÔNEGO, COMO COLHE FOLCLORE
-“Criança gosta de padre - diz ele - e disso me aproveitei para colher os contos, parlendas e advinhas infantis de meus livros”.
Explica mais:
- “Chegava a duelar com a criançada, aqui na minha Rua Rui Barbosa, para conseguir sempre mais novidades”. Muitas professoras (principalmente uma irmã) ajudaram.
Benedito Ribeiro, um caboclo de Piracicaba (região de bom folclore), de uns 70 anos, chegou a ir durante muito tempo à sua casa, toda quinta-feira, para contar “coisas” do tempo antigo. Foi uma das melhores “fontes” do cônego Castanho.
- “Tudo o que colho é inédito, tem sabor regional, e é publicado inclusive com os erros originais” - esclarece.
Hoje, cada vez mais doente, tem enorme dificuldade na pesquisa. A mãe, contudo, ajuda sempre.
- “Infelizmente, também nossas boas tradições vão se acabando, com essa onda dum falso progresso material” - diz ele.
E se recorda, com saudade, dos seus antigos tempos de vigário. Quando, a seu pedido, a caboclada cantava a Salve Rainha. Toda em “caipira”, chorosa e em dois coros. E a Ave Maria também, a mesma (cantada) dos tempos dos jesuítas.
CONVERSA (AINDA) DE FOLCLORE
No campo do folclore religioso o cônego Castanho estudou os cancioneiros religiosos e os benditos antigos. - “Estes eram ensinados por Anchieta aos gentios, por mnemônica - grava.
Diz que as festas religiosas atuais têm coisas autênticas “que devem ser conversadas”.
A República, com a onda positivista inicial, estragou muito o folclore religioso. Lembra o cônego que, até 1889, o Exército cantava cantigas populares, rezava benditos e devoções. O soldado tinha a sua oração da noite, coletiva. Com a proibição, tais orações populares cultuadas pelos soldados foram sendo esquecidas.
O cônego define folclore segundo a linha tradicional: é a ciência das tradições populares, no meio civilizado, compreendendo também literatura tradicional e etnografia popular. - “O folclore é utilíssimo no ensino dos bons costumes e boas tradições de um povo” - diz.
Destaca, entre outros folcloristas brasileiros de valor, Luiz da Câmara Cascudo (o mestre), Renato Almeida, Théo Brandão, Oneida Alvarenga, Florestan Fernandes, Alceu Maynard Araújo, Renato Teixeira e o grupo de Santa Catarina. É favorável aos métodos (“fáceis”) de pesquisa moderna (gravações, etc.).
Há três centenas de metros de sua casa, vimos uma estátua na praça grande, era o “Monumento ao Tropeiro”. Homenagem da cidade aos tropeiros bandeirantes, que fizeram de Sorocaba, no século passado, o grande centro de tropas e boiadas (ciclo do muar) do Estado.
Victor Cioffi de Luca, sorocabano honorário, ao nosso lado explica:
- “O monumento, único no Brasil a homenagear um tipo regional, é iniciativa do cônego Castanho”.
O monumento tem história e tem folclore. Ao mesmo tempo. Claro.
TRIBUNA DA IMPRENSA
28 de maio de 1956.
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