- Sou uma pessoa intuitiva e procuro exprimir-me com a maior espontaneidade, sem preocupações intelectuais, mas creio que a minha arte tem uma tendência mágico-espiritualista... Na minha espontaneidade manifesto principalmente coisas do inconsciente e não sei explicar porque determinados códigos ou alfabetos ocorrem... Talvez seja manifestação de um inconsciente coletivo ou cósmico, como dizem os orientais.
Mário Gruber, Lourdes Cedran e Mário Schenberg |
Lourdes Cedran nasceu em Valinhos, estudou arte na “Delarte”, foi aluna de Bonadei. Ionaldo Cavalcanti, Jachieri e Rissone. Desde 1965 vem expondo em S. Paulo, Rio, Belo Horizonte, Salvador, Florianópolis, Belém, Curitiba e outras capitais. Prêmios: Medalha de Bronze, XV SPAM; Prêmio Estímulo, I Bienal de Artes Plásticas da Bahia, 1º Prêmio-Escultura, Salão de Santo André; Prêmio de Aquisição, 3º Salão de Jundiaí; Prêmio de Aquisição, Prefeitura de Piracicaba (Desenho); Prêmio de Aquisição, Prefeitura de Piracicaba (escultura). Tem várias obras em museus e coleções particulares de importância, no País e no exterior. Esteve na Europa em missão cultural do governo de S. Paulo e integrou a Missão Cultural Brasileira que viajou para Assumpção, Paraguai. Dinâmica, franca, ardente, empolgada. Lourdes Cedran vai mantendo uma trajetória ascensional no panorama da arte em, nosso país. Na “A Ponte”, galeria de Berta e Isaac Krasilchik, faz uma individual, mostrando (e vendendo bem) 32 trabalhos - desenhos em técnica mista, série 1973. Ao lado de duas grandes amigas, a artista Anésia Pacheco e Chaves e a legendária Lígia Freitas Valle, dialoga com firmeza e inteligência. Alguém diz que o crítico Kruse acha em suas obras uma “volta do vazio absoluto”, com um “conteúdo que indaga”. Lourdes:
- Suponho que ele queira ressaltar a utilização comunicativa no meu desenho, além da pura plasticidade... Isso existe em todos os meus trabalhos artísticos. Há vários anos sinto a importância do vazio, não só como uma função plástica, mas também como elemento básico de comunicação e de sugestões psíquicas e metafísicas... Para mim, o vazio é o mistério primário.
- Considera ainda ele que “a simplicidade de seu traço é pedagógico e único na arte brasileira”...
- Creio que o traço em si é profundamente característico da personalidade do artista, e, claro, cada um tem o seu traço, talvez até por uma razão biológica... O que varia muito é a utilização do traço... Eu procuro dizer o máximo pela linha.
- Como vê a arte brasileira? E em outros países?
- Acho que arte brasileira evoluiu e assumiu um papel muito importante no campo da arte mundial, notando-se o desenvolvimento de tendências tipicamente brasileiras em várias formas de arte, carregadas de nossa luz, nossa cor e vida... Sinto que a arte brasileira, ou melhor, o artista brasileiro, se libertou muito das influências da arte européia, criando as suas próprias características... No campo da arte mundial há um espraiamento de tendências em transformação rápida revelando a complexidade e a angústia do homem contemporâneo.
- Que achou da XII Bienal?
- Ainda não vi toda a Bienal, pois prefiro vê-la em etapas... Do que vi, ou seja, parte do 2º e 3º andares, achei o Grande Prêmio, dado ao belga Foulon, muito justo... Seu trabalho não só é magnífico como de uma sutileza difícil e encontrar e atingir no desenho... Ele conseguiu através de um método que “alguns” chamariam antigo, uma atualidade arrasadora... Vilalba, o espanhol, é tragicamente belo, forte e arrojado, refletindo bem o momento angustiante que o mundo está atravessando... Barrocal, outro espanhol sensacional, é muito inventivo, de uma beleza plástica que me impressionou... Lembro ainda Camerino, da Suíça, muito bom, como achei magnífico os repolhos do Japão, nem como o “silk-screen” desse país, realizado em terra... Darcy Penteado, entre os nossos, é um dos que devem ser vistos, com a sua proposta de humanização do mundo e do homem que está se robotizando... É de estremo bom gosto e requinte e logo se vê ser o trabalho de um esteta. Num pequeno apanhado geral, acho que esta Bienal está mais dinâmica, mas tem ainda que se libertar e se reformular em vários campos.
- Como encara arte conceitual com a dita arte moderna?
- Invertendo um pouco a ordem, acho, em primeiro lugar, que a arte moderna tem passado por inúmeras transformações e fases desde o começo do século, não podendo ser identificada com nenhuma delas, tomadas individualmente. Muitas vezes percebo o mesmo impulso expressivo manifestado por meios diferentes e com estilos bem diversos... O desaparecimento de determinados tipos de manifestação não pode ser considerado como fim da arte moderna... A arte conceitual, como a vejo, corresponde a uma preocupação de dar um conteúdo de idéia à arte... Desse modo pode-se considerá-la como uma das tendências eternas da arte, mais fortes em alguns períodos, menos em outros... Creio que há uma necessidade de uma arte magia ao lado de uma arte conceitual para exprimir os conteúdos espirituais supra conscientes, como dizem os indús. Eu mesma, na I Bienal da Bahia, onde fui premiada, fiz a aproximação entre arte conceitual e arte mágica... A arte moderna é predominantemente um processo de comunicação entre o artista e os fluidores da obra, que é vista como um instrumento de comunicação e não como um objeto em si... Daí a possibilidade de o artista utilizar qualquer coisa como instrumento dessa comunicação, inclusive os detritos.
- E como vê a escalda dos múltiplos, dos objetos, não haveria aqui uma massificação da arte?
- Não deve ser confundido o múltiplo com a massificação da arte... O múltiplo é apenas a utilização da idéia básica, já contida na gravura, para outros campos de arte... A massificação tem o inconveniente de uma banalização de imagens e objetos cuja força expressiva sofre sempre um desgaste.
- E o trabalhos dos marchands e galerias, os leilões...
- Enquanto a obra de arte continuar como uma mercadoria existirão instrumentos de sua distribuição no mercado, como galerias, “marchands”, leilões, etc. O leilão teve uma influência considerável para a expansão do mercado de arte, atraindo e criando novos colecionadores... Por outro lado, muitas vezes leva a especulações prejudiciais, freqüentemente vinculadas a circunstâncias extra-artísticas, como altas e baixas da Bolsa ou as influências do mercado imobiliário... Considero prejudicial à criação artística, assim como a compreensão a e fruição da arte, a sua transformação numa forma de investimento de capital.
Lourdes Cedran agora fala de si, provocada. Este ano vai para o exterior, cumprir compromissos assumidos em viagem anterior. Já termina trabalhos para a importante galeria “L’Oeil de Boeuf”, de Paris. Diz que só trabalha à noite, depois das 23 horas, e muitas vezes até o amanhecer - é noturna por natureza, nada disciplinada. Chega a ficar meses sem realizar uma obra de arte, só pensado e sonhando, de repente desce a inspiração, trabalha noites e noites sem dormir... Está vendendo bem seus desenhos, base de Cr$ 2 mil a Cr$ 2,5 mil cada, em galerias ou fora delas. Seu dia-a-dia é o de cumprir as obrigações de funcionária pública ligada ao setor estadual de artes e os cuidados de dona de casa, com marido, filho, etc. Hobbies, dois: a coleção e anéis, que aumenta a cada país que vai e a de bonecas típicas, idem, idem... Confessa que leu toda a obra de Somerset Maughan, que aprecia muito, mas sua paixão mesmo é Goethe, que a envolve completamente... Também prefere David Neal e Gustav Meyrink, e, entre nós, afora outros, Clarice Lispector, que acha fascinante. E na poesia: Baudelaire, Bandeira, Neruda, Maiacovski, todos eles, é claro, sem esquecer Tagore. E Lourdes ainda acrescenta, antes que a interrompam, os dois mestres geniais - Tolstoi e Dostoievski. Alguém fala dos jovens, hoje em dia, Lourdes retorna a palavra.
- Sim, os jovens têm tido oportunidade e, sobretudo há os que crêem neles, como eu... A audácia é uma de suas características, porque ainda não se comprometeram, e a associam sempre à sua criatividade muito mais autêntica e séria do que a de muitos artistas que se dizem “realizados”... Realmente, o jovem de hoje é uma fonte borbulhante de criatividade, e apenas em alguns casos ela às vezes não é devidamente utilizada ou é mal utilizada.
A Cedran está falando agora de um jovem que adora, um jovem artista de 77 anos - Volpi.
- Volpi é para mim o símbolo do artista que conseguiu através de toda a sua vida e obra permanecer puro, sem se macular ou se comprometer com quaisquer injunções, sejam as de ordem artística ou comerciais... Dentro dessa pureza e autenticidade ele criou seu trabalho e foi evoluindo sem pressa, sem concessões, sem vaidades, no caminho seguro do artista coerente, que vai dizendo a sua linguagem sem se preocupar em agradar este ou aquele... Se formos analisar a sua obra desde a fase acadêmica até a delicadeza da sua síntese atual poderemos constatar sua evolução, sem influências exteriores... Na medida em que os elementos foram-se tornando supérfluos na construção do trabalho, ele foi amplificando, sintetizando e enriquecendo a cor e a composição num processo de despojamento e beleza único na arte brasileira... Volpi soube dar a uma “bandeirinha” a dignidade, o corte, a força plástica que jamais se viu em outro artista... Creio que Volpi é um dos poucos artistas que realmente permanecerão na história da arte brasileira.
A TRIBUNA
28 de outubro de 1973.