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sexta-feira, 31 de julho de 2015

SAMICO, DO HUMOR À XILOGRAVURA


 Artista excepcional de Pernambuco, Samico realizou xilogravuras notáveis, envolto pelo espírito da arte armorial e se enveredando pela beleza de signos de outros tempos criando uma obra meticulosa, levando até um ano para terminar uma gravura. Um esteta no senso mais puro. 

Antes do desenho na madeira realizava uma série de estudos até chegar à impressão definitiva. Realizou diversas exposições marcantes tanto entre nós como no exterior, sendo que a mais recente foi na Galeria Estação, em São Paulo, comandada por Vilma Eid. 


Ela é apaixonada pelo gane artista de Recife, que faleceu em 2013, e pela arte brasileira pura de origem. Daí as viagens que faz pelo Brasil, descobrindo e valorizando pintores e escultores ínsitos, folclóricos, de artes sensitivas e insólitas. 

Gilvan Samico pode ser enquadrado entre os mestres da gravura, do design, do humor, do desenho, do real e do imaginário, de nossos brasis

UM RELATO HISTÓRICO: OS 10 ANOS DO MIS


“O Museu da Imagem e do Som será, na próxima década, a mais importante instituição cultural viva de São Paulo e do país.” Quem diz isso é um dos idealizadores do MIS, Luiz Ernesto Kawall, que teve participação ativa e fundamental na concretização deste centro cultural que tem como meta preservar e registrar a imagem e o som do passado e do presente, como um museu vivo, utilizando os meios mais avançados da tecnologia contemporânea. O atual diretor Boris Kassoy se encontra em Colônia, na Alemanha, para a realização no MIS da mostra “História da Fotografia” com o patrocínio da Bayer. Em Washington, Kassoy entrará em contato com os responsáveis pela Coleção Oliveira Lima, visando outra mostra importante. 

O depoimento de personalidades marcantes na vida nacional, nos seus mais diversos setores, é uma função das mais importantes para a formação de preciosas fonte4s de pesquisas para os futuros historiadores como para os pesquisadores de um passado recente. Períodos conturbados, movimentos artísticos marcantes, posicionamentos políticos são temas que normalmente são inclusos nos rumos de um depoimento. 

A Carta de Princípios e Finalidades do Museu da Imagem e do Som do Estado de São Paulo (ver abaixo) especifica detalhadamente em 10 itens a estratégia cultural a ser seguida, as linhas gerais de um caminho difícil já percorrido pelo MIS, com muitas barreiras sendo transpostas em benefício da sociedade e da história brasileira. 

UM TESTEMUNHO 

Luis Ernesto Kawall, relata o seu envolvimento na concretização do MIS paulista desde os tempos em que freqüentava a Faculdade de Jornalismo Casper Líbero da PUC: “Em 1951 me formei em jornalismo na 1ª turma da Faculdade de Jornalismo, sendo paraninfo Carlos Lacerda, que já vinha se interessando pelo jornal “A Imprensa”, que era feito pelos estudantes, havendo muitos contatos nossos com o jornalista carioca. Convidado por Lacerda permaneci como redator-chefe da “Tribuna da Imprensa”até 1964.” 
“De 1960 a 1961, trabalhei com Lacerda, no Rio, 6 meses como assessor de comunicação de comitê de eleição de sua candidatura ao Governo do então Estado da Guanabara e 6 meses como diretor da Tribuna da Imprensa.” 
“Em 1961, Lacerda cogitou da concretização do Museu da Imagem e do Som – MIS. Levei a ele disco de Dalgas Frisch, estudioso dos cantos dos pássaros, e de Guilherme de Almeida, Hino do 4º Centenário de São Paulo e fotos antigas de São Paulo”. 
“No Palácio Guanabara realizou-se em 1962 a reunião, com vários interessados, inclusive eu – convidado – para a formação do MIS. Faltava o prédio, mas imediatamente Lacerda conseguiu um andar no Banerj, sendo decidido a compra de fotos antigas do fotógrafo Malta, do Rio antigo, como também a aquisição do arquivo de “Almirante”. Depois o MIS mudou-se para o Ministério da Agricultura. Lacerda dedicava maior entusiasmo ao MIS carioca. 

A FORMAÇÃO DO MIS 

“Em 1967, Roberto de Abreu Sodré, foi indicado em Convenção, governador do Estado de São Paulo e escolhido pelo presidente da República Castelo Branco. Convidado para ser assessor de Sodré, impus a mim mesmo duas condições: se eu fosse assessor, tentaria criar o MIS e, segundo, daria força para Ubatuba, como saneamento básico, escolas e turismo, contribuindo para a infra-estrutura dessa cidade que devoto até hoje. Posso dizer com orgulho e sem falsa humildade, ter conseguido as duas coisas.” 

“Entrei no Governo no dia 15 de janeiro, dia da posse do Governador. Sendo já meu feitio, fiz um bilhete para Sodré. “Governador, não acha que deveríamos criar o MIS paulista, à semelhança do MIS carioca, arquivo vivo do registro histórico dos fatos importantes de São Paulo?”Neste mesmo bilhete, Sodré respondeu: “Luiz Ernesto, de acordo. Pode providenciar a comissão organizadora e tocar o projeto”. 

“Formei a comissão organizadora com Paulo Emilio Salles Gomes, Almeida Salles, Rudá de Andrade, Maurício Loureiro Gama, o fotógrafo Avelino Ginjo, Ricardo Cravo Albin, que dirigia o MIS carioca e eu. Sodré se interessou pelo MIS. A posse foi na Rua do Ouvidor, na Secretaria do Governo, presidida pelo Secretário José Felício Castellano. Algumas reuniões foram realizadas no Palácio Bandeirantes e outras se deram em minha casa, passando, esta, a ser um local provisório para debate4s e providências.” 

 “As doações foram aparecendo, com gravações de Murilo Antunes Alves, fotos antigas, através de Avelino Ginjo. E Leônidas da Silva, o “Diamante Negro”, ofereceu o disco com seu célebre gol de bicicleta, no Pacaembu em 1942 contra o Palmeiras, narração de Geraldo José de Almeida. O diretor executivo do MIS carioca, Ricardo Cravo Albin doou um disco, “Vozes do Brasil”, com trechos de discursos de Getúlio Vargas, Oswaldo Aranha, Roquete Pinto, Marechal Rondon, entre outros. 

“Em 1968, diversos fatores contribuíram para dificultar o surgimento oficial do MIS, por ser um período difícil, com o ato institucional e movimentos e agitações nas ruas , etc., e uma série de problemas, até a falta de verbas estaduais.” 

ESTATUTOS 

“Os Estatutos do MIS foram aprovados em 1969, numa cerimônia no Palácio Bandeirantes, sendo que Arrobas Martins, com ação firme, muito contribuiu para incentivar a criação do MIS. Ficou constituído o 1º Conselho de Orientação, assim: Paulo Emílio Salles Gomes pela Cinemateca; Almeida Salles, Rudá de Andrade e eu pelo Gabinete do Governador, Avelino Ginjo pela Associação dos Repórteres Fotográficos, Sérgio Viotti pela TV 2 Cultura e Sergio Vasconcelos Correa pela Ordem dos Músicos. Oficialmente o MIS foi criado pelo decreto-lei n.º 247, de 29.5.1970.” “Como idealizador e principal coordenador do MIS, Arrobas Martins, Abreu Sodré e Orlando Zancaner, este secretário de Cultura, insistiram muito para que eu fosse o 1º Diretor Executivo do MIS, mas mesmo assim não aceitei, pois, achava que me faltaria qualidades de museólogo e, como jornalista, estava empenhado nas duras funções de assessor de imprensa do Governador. Indiquei , então, Rudá de Andrade, conhecido por todos, e muito interessado no MIS.” “Terminando o governo Sodré, aceitei o cargo de 1º Diretor Técnico do MIS, função que exerci dando ênfase às gravações dos depoimentos, convênio com a Cinemateca e compra do acervo de documentários de Primo Carbonari, que, infelizmente, não se efetivou. O governo lançou dois importantes decretos, em um cedia os Campos Elíseos para sede do MIS e, outro, obrigava que cada administração pública encaminhasse todas as fotografias e filmagens, cada ano, ao MIS.” “O MIS teve várias sedes, a primeira, na Rua Antonio de Godoy, 88, com duas salas, e seu depósito de material no Palácio Bandeirantes; em seguida, nos porões do Palácio dos Campos Elíseos, que se encontrava em reforma; depois, mudou-se para dois sobradinhos, praticamente em ruínas, na Alameda Nothman e, transferiu-se, em seguida para a antiga seda da Secretaria, na Avenida Paulista, 320, sendo que, nesse local, foi obrigado a deslocar-se de andar para andar. Depois o MIS conseguiu alugar uma casa na Rua Oscar Pereira da Silva, 114, no Itaim, onde permaneceu por quase dois anos. Finalmente passou para a sede definitiva, à Avenida Europa, 158.” 

GRAVAÇÕES 

“Na minha gestão como diretor técnico incentivei as gravações de personalidades importantes como Arrelia, Piolim (no vagão do circo, onde morava), Volpi (em minha casa), Antonio Ermírio de Moraes (nas Indústrias Votorantin), Warchavck (1ª gravação feita, em 1971) e outras.” 

“Estudamos também um convênio com a Cinemateca para salvar seu acervo, o maior da América Latina. No 2º semestre de 71 fui notificado pelo diretor do DACH, Paulo Bonfim, que, como ocupava cargo de confiança, tinha que devolvê-lo. Terminei, assim, sendo afastado do cargo de Diretor Técnico, deixando expresso durante o exercício desta função o meu grande interesse pelas gravações dos depoimentos.” 

“A primeira gravação foi de Warchavch, de improviso, em sua casa na Avenida Europa. O famoso arquiteto cedeu livros e fotos, contou pormenores de sua vida, da “Casa Modernista” e do seu encontro com Le Corbusier. Silvia Baiense, com seu gravador portátil registrou a entrevista de 80 minutos.” 

O depoimento de Antonio Ermírio de Moraes foi na sede das Indústrias Votorantim. O depoimento foi coordenado pelo jornalista João de Scatimburgo e contou com a participação de diversos jornalistas da área econômica. As perguntas, enviadas antecipadamente, foram formulados pelo conselho do MIS. 

“O depoimento de Piolim foi coletada diretamente num vagão de circo na Casa Verde, no fundo de um quintal, na Casa Verde onde morava. Piolim se vestiu a caráter e falou sobre sua vida e a ligação que teve com os modernistas, oferecendo a bengala, as vestes, o colarinho e o chapéu para o Museu. A doação não foi aceita pelo Conselho, pois o MIS fundamentalmente visam o registro da imagem e do som. Parece que o MASP ficou com os objetos de Piolim. Paulo Em,ílio Salles Gomes coordenou esta gravação, na qual depuseram também Arrelia e Chincharrão.” 

“Na minha casa Volpi fez seu depoimento, dialogando com Mario Zanini, Rebolo, Spanudis, Aracy Amaral, Rudá de Andrade, Fiaminghi, Mario Schemberg, Almeida Salles, Clovis Graciano, Maria Eugenia Franco e Décio Pignatari. Do meio dia às 5, começando com um almoço, gnocchi à bolonhesa, bragiola e vinho Chianti, seguiu-se amplo debate sobre a obra volpiana com acirradas polêmicas e intervenções de Volpi, do maior interesse. A certa altura conseguimos esconder um microfone debaixo da mesa e confissões intimas surgiram.” 

ENTIDADE VIVA “Com o decorrer do tempo, o MIS se tornou um entidade viva com reuniões semanais do Conselho de Orientação, que sofreu modificações com a entrada de Walter George Durst, Maria Rita Galvão e Boris Kossoy em lugar de Sérgio Viotti, Paulo Emilio Salles Gomes e de Avelino Ginjo, respectivamente, estes dois últimos falecidos prematuramente, e que tanto deram ao MIS.” 

“O MIS, sob a direção de Rudá de Andrade, conseguiu firmar-se, com sede própria na Avenida Europa, construída pelo mesmo secretário Pedro Magalhães Padilha, que havia retirado a instituição dos Campos Elíseos. Tem atuação meio universitária, na difusão da fotografia, nos convênios firmados, no cinema e em diversas exposições. Infelizmente, em alguns setores, não atingiu o pretendido. Deve-se citar a atuação do secretário Max Feffer, que deu bom impulso ao MIS.” 

“Espero que, com Boris Kossoy, elemento de alto nível, outros objetivos sejam alcançados. O MIS foi formado para ser um museu vivo da cidade de São Paulo, uma importante instituição cultural, capaz de registrar a memória paulistana e isto será alcançado nos próximos anos.”

Entrevista à FOLHA DE SÃO PAULO
em 8/1/1981.

quarta-feira, 22 de julho de 2015

CAMPELLO: ARTE MÁGICA E FEÉRICA

A pintura não é para ser entendida, não importando a escola, o estilo, a tendência, o nome ou a idade do artista – alto, loiro, bonito. Vestindo a última moda masculina – “blaser” inglês listrado, gravata borboleta, cabelo grande basto, quase pelos ombros, Mário Campello domina amplamente sua “vernissage” na Cosme Velho, cercado de críticos, “marchands”, artistas e mil fãs. Campello não quer que se pergunte – mas todos perguntam – sobre se sua pintura é “naif” ou ingênua, se ela tem parentesco com o surrealismo onírico. Ele não aceita rótulos para sua pintura, ou mesmo para qualquer outra expressão artística. As 26 telas de Campello estão ali nas paredes galeria, seus parques feéricos. Duma luminosidade mágica, quase transcendente, tudo minuciosamente elaborado, coma composição perfeita e técnica apurada, muito próprias do artista baiano. 


Não sou “naif”, insisto e amanhã, inclusive, posso mudar meu estilo de pintura e não ser acompanhado por esse rótulo... Meu trabalho no momento pode ser visto mais como um realismo fantástico... Já fui figurativo, no início da minha carreira, e quanto às fases de um artista, acho que não se deve forçar mudança alguma, mas, sim, sua vinda ocasional, pelo trabalho constante e pelos mais diversos fatores, criados pelo meio ambiente... Penso que estou atualmente numa fase de depuração, os elementos que uso na composição de um quadro já foram por mim utilizados anteriormente e maneira isolada. 

Mário Campello não dá para a encomenda dos abraços e das felicitações. É a estrela da noite, todos os quadros estão vendidos, mesmo antes do vernissage. Tica Rivetti o cumprimenta afetuosamente, Regina Magalhães chegou com “A” a “Z” da sociedade. De Salvador veio a dondoca Lícia Reis, uma das 10 mais da Bahia. A vistosa manequim Rosely posa espalhafatosamente ao lado do artista. Maria Cecília Pereira do Lago faz sucesso com seu vestido paetizado que brilha no lusco-fusco da Cosme Velho. Até um velho amigo de Nova Iorque, Danilo Ramires, veio dos Estados Unidos para abraçar Campello. Campello sorri e conversa. Educado, duma finura de berço, afinal, seus pais são também quatrocentões da Boa Terra. À sua volta estão agora muitos artistas, Paulo Wladimir, Moraes, Roni Brandão, Ivonaldo, Charroux, este achando que Campello tem boa, muito boa técnica, o colorido dom esse dégradée, uma beleza.

Campello explica que na sua pintura atual, foi eliminando elementos, desde a figura humana até outros e outros. Não sabe, mas admite que um dia caia no abstrato total. 

A figura humana, por exemplo, deixou de existir, porque a natureza exuberante em cores e formas, eliminou-a, mas a sua presença muitas vezes não está totalmente abolida, mas pressentida... 

– Muita gente classifica sua pintura de decorativa... 

– Isso não me atinge porque se uma pessoa compra um quadro meu para decorar uma parede, isto é com, ela, não é comigo. Minha pintura reflete, apenas, minha vida interior... Ou que eu expresso através de minha arte é apenas isso. 

– Segue ou seguiu alguma escola? 

 – Iniciei-me, como todos sabem, com Carlos Bastos... De uns anos para cá a maior e melhor escola de pintura é o trabalho... Na minha arte, 80% é transpiração, 20 % é inspiração... Sabe que o ritmo de pintar, para mim, é muito importante, só pinto sentado e de pernas cruzadas, ouvindo rádio, quando até a respiração ritmada é importante... E assim lá vão 16 horas por dia, uma loucura. 

– Afirma-se que sua arte é irreal... 

– Exato... Gosto de ouvir Mozart e Vivaldi o dia inteiro, às vezes Morgana King, que é mais popular... As leituras são as de ficção ou do gênero espiritualista, estórias da Índia, dos iogues... Sempre me interesso por tudo que é irreal... Não gosto muito da matéria... Tenho medo de gente reunida, apartamento, povo, multidão... Minha pintura, assim, é mais irreal do que real, e pode até ser espiritual – essas bolas que faço em cada quadro não sei se são sol, lua, ou pode ser a Terra, vista de outros mundos? 

O quadro da arte brasileira está meio tumultuário atualmente... Não aceito modismos, nem arte com tendência comercial... A arte conceitual, os múltiplos, onde se pretende chegar?...Tudo me diz alguma coisa e ao mesmo tempo não me diz nada... Às Bienais não concorro, nunca mandei quadro para bienais ou salões, nem mandarei, detesto premiações e badalações... Mas tem gente boa, por exemplo, Mário Gruber, sem favor, é o maior pintor brasileiro... Reinaldo Fonseca, pernambucano que mora no Rio... Humberto Espíndola, o da bovinocultura crítica... Guilherme Faria, o desenhista... Juarez Magno, tantos outros... Acho importante que se difunda arte, a nossa pintura, como agora está fazendo a Editora Vecchi, fotografando quadros e pintores para sua nova revista... A pintura tem de ter ritmo, tem de ter harmonia. Estudei música durante 15 anos. A música permite devaneios e criação solta... É claro que tudo também vai da sensibilidade, da observação, da técnica de cada artista... Eu gosto de pintar na solidão, e sozinho, às vezes levo 20 dias fazendo um quadro... Mas a arte brasileira vai progredindo, sim. 


Campello fala de São Paulo, acidade é muito cinza, daí, talvez, ao vir para cá mudou sua pintura para um colorido intenso, que recordava a Bahia. Não quer comentar sobre os primitivos. Afirma que o Brasil tem bons primitivos, mas alguém já viu os tchecos e iugoslavos? E fala agora da escolha de revista alemã “Stern”, que o colocou entre os 10 maiores primitivos (embora não se julgue tal) do mundo e que comentou seu contrato com a organização norte-americana “Findly”, por 4 anos. Ela paga por mês religiosamente e promoverá 4 exposições suas, proximamente, nos Estados Unidos e na Europa. Campello conta também das inúmeras encomendas que já tem aqui, não sabe nem se vai dar tempo para passar os Finados em Ubatuba, tomar sol, tostar um pouco na praia espetacular do Tenório, ou das Toninhas. Nesses tempos de uma folguinha, Campello tem, entre outras habilidades, a de cozinhar, faz uma misturança de verduras e carnes, um laboratório revolto de pesquisas gastronômicas...

Falta pouco para a meia-noite, o luzido Sérgio engalanado hoje, de uniforme bordô, já se prepara para fechar o portão colonial da Cosme Velho. O sobradinho amarelo da Alameda Lorena viveu mais uma noite concorrida de arte.

A mocidade de hoje é sensacional e inclusive tem mais oportunidade na arte, mais facilidades, que eu, por exemplo, não tive... As crianças dos colégios me fazem perguntas ótimas, têm um interesse incomum, uma agudeza inteligente e prática... Recebo cartas, telefonemas, acho que quem tem imaginação criadora e muito talento hoje em dia não somos nós, artistas, mas a nossa juventude sensacional.

PRIMITIVOS OCUPAM O MUSEU DO SOL E A EUROPA

– Os pintores “naifs” não abrem nem encerram um ciclo novo, são a própria permanência do homem diante do seu mundo e da natureza, na recordação do Éden transposta para a cor e a forma;;; Os nossos primitivos verdadeiros, quer se perceba ou não, são personalidades sensitivas excepcionais, que expressam nas telas seu mundo interior não poluído, ferido, onírico, alucinante, suas recordações da infância, povoadas de magias poéticas e de purezas inocentes... Falo, claro, dos ingênuos autênticos, com sua vocação natural pura, que fazem essa arte maravilhosa que inauguramos no Museu do Sol, chia de luz, calor, cores e, acima de tudo, de amor. 

Iracema Arditi esta realizando seu antigo sonho. Reuniu mais de 100 telas de primitivos e ingênuos de sua coleção particular, no Museu do Sol, alugado para tal, e reformando, uma velha fábrica de bonecas junto à sua casa, na Vila Clementino. A coleção, inclusive as telas de primitivos estrangeiros, não tem preço. As obras furam custeadas pela arte da própria Iracema, “naif” brasileira com alta cotação na Europa, principalmente na França. Ela esta agradecendo a ajuda que teve, destacando – como colocou no catálogo colorido – os nomes de Michel Weber, Pedro Luiz Toledo Piza, Centro de Artes Novo Mundo e Zilda Vergueiro Empreiteira de Obras.

obra de Iracema Arditi

– O nome Museu do Sol já diz tudo – sol, terra, luz, calor, primavera, cor, mas tem também um sentido simbólico: o de tirar os artistas primitivos da penumbra em que se encontram, quase desconhecidos do grande público... A arte primitiva é pouco conhecida e divulgada na Brasil, são raras as galerias que fazem exposições desses artistas populares... A própria Bienal cancelou há algum tempo a sala dos primitivos, enquanto os salões oficiais poucas vezes convidam os primitivos para mostrar suas obras... Aqui os primitivos que não fazem arte “decoração”, os que não imitam, os que não são meros borradores de tintas, terão a sua vez, sempre... E os novos também, vamos abrir uma Sala das Descobertas, para incentivar e ajudar os novos valores. 

Vai informando que em maio o Museu do Sol apresentará sua primeira exposição individual, do artista pernambucano radicado em São Paulo, Ivonaldo. O museu pode-se transformar em instituto oficial se o governo estadual decidir encampá-lo. Iracema acha mesmo que o acervo ali colocado, o segundo do mundo, o primeiro da América Latina, pertence à arte e à cultura brasileira.


 “Nosso Museu do Sol só perde em número de obras, para o Museu de Laval, na França, terra de Henri Rousseau, criador e mestre da arte primitivista”. Nesse Museu estão cerca de 30 telas de primitivos brasileiros, doadas por ela, numa “sala especial que se equipara à dos próprios primitivos franceses e europeus”. 

 – A idéia do museu não é nova. Surgiu quando vi que não podia pintar mais, tantas pessoas me procuravam em casa, para ver a coleção de primitivos, iniciada há16 anos... Senti também que deveria reunir os bons primitivos, para evitar sua migração para o exterior... O gênero primitivo, repito, vem sendo pouco compreendido em nosso país, até campanhas contrárias aparecem, de pessoas que dizem que o primitivo é um exótico, um marginal, um louco... A vida particular doa artista, pouco importa, o que vale é o seu trabalho... Igualmente a sua condição financeira, o seu “status” cultural, a sua posição na sociedade... A arte primitiva, quando boa, séria, autêntica, bem executada, é reconhecida em todo o mundo... Por que não haveria ela de ser também apreciada no Brasil, terra tão rica de bons valores primitivos?


 Ela está ao lado do representante do governador Natel, autoridades e artistas, críticos, jornalistas, seu marido Gui Arditi, diretor da “France Press” e da filha Marina, de 13 anos. Chega Jean Pierre Bouvet, conservador do Museu de Arte Primitiva de Laval, é o convidado da noite, para ele se voltam as atenções. O jovem crítico está há alguns dias em São Paulo, esteve no Embu (não gostou) e na Praça da República (viu bons primitivos, mas o comércio alucinado está prejudicando o movimento dos pintores). Gosta dos primitivos brasileiros e acha que o Brasil tem todas as condições – terra tropical, diversidades regionais, características típicas, folclore, etc., para abrigar uma leva maior de grandes primitivos. Elogia Iracema Arditi por criar o Museu do Sol e destaca a alta qualidade de alguns pintores expostos.

– A arte ingênua (“naif”) encontra agora o seu lugar entre as várias tendências reconhecidas, mas isso não é o mais importante; o que conta é o seu reconhecimento e as possibilidades que lhe estão sendo oferecidas nos últimos tempos de se expressar plenamente, isto é, viver. Deve-se felicitar e agradecer a Iracema pela sua dedicação a essa causa e a uma arte que ela conhece tão bem. Nesse Museu do Sol, os pintores e os criadores descobrirão a riqueza do encontroe a expressão do que procuram ou oferecem de mais verdadeiro... “Pintura naive, pintura popular”, a arte naive não é a arte popular; suas motivações e sua função são bem diversas e outra a utilização. Mas é gerada v desse tronco, utiliza frequentemente suas técnicas, seus temas e às vezes explora inconscientemente as suas nostalgias. É assim especialmente interessante que a arte popular esteja representada neste Museu, tanto no seu passado próximo ou remoto como nas suas manifestações presentes. Ela é o suporte humano da arte naive; sua ruptura, até é um exemplo dos contatos entre as civilizações e dos atritos entre os mundos históricos.

Bouvet está cercado de primitivos por todos os lados. Isabel de Jesus, mineira, trabalhou na casa de Iracema, agora é enfermeira prática, acaba de chegar de Paris, onde expôs, com total sucesso, na Galerie Séraphine. Waldomiro de Deus, baiano de barbicha e chistoso, regressou da França, Itália e Israel, onde expôs em Tel-Aviv e Jerusalém. Seu sucesso foi tão notável que Moshe Dayan pediu-lhe um retrato, eu Waldomiro fez – e faturou bem. Ivonaldo, de longa barba, está aprendendo inglês, vai expor nos Estados Unidos e Europa. Crisaldo Moraes, também pernambucano, nora em São Paulo, trabalha na VARIG, parte hoje para a Alemanha, Itália e França, expondo em vários lugares seus anjos esvoaçantes. E Paulo Wladimir, potiguar, também formando entre nossos melhores primitivos, também se prepara para o roteiro europeu. Iracema e Bouvet estimulam a todos. Alguém fala que Waltraud já está na Europa, com mostras bem sucedidas e a Profª. Sofia Tassinari, da Azulão, também levou primitivos ao exterior, tudo foi bem, diz. Carlos von Schimdt fala do sucesso que alcançou sua galeria, “A primitiva”, quando exportou pioneiramente primitivos para a Salford University, da Inglaterra, e a New York University, dos Estados Unidos. Chega-se à roda Henrique Araújo, da Câmara Americana de Comércio, enfatizando a boa acolhida da coleção de primitivos brasileiros (29 ao todo, com Newton de Andrade á frente) que a Pocket Gallery, da Câmara, enviou Universidade da Flórida e Califórnia.E Tito Silveira, jornalista e empresário, tocando agora a Galeria da KLM, está eufórico com a mostra que promove das telas alucinantes e fantásticas do índio acreano-cearense Chico da Silva. Elas alcançam nos Estados Unidos a Europa, diz, um bom preço. Bouvet volta a falar:

– No Brasil, como, aliás, em outros países, a arte naive é bem menos cotada do que na França, por exemplo. Nisso reside a sua riqueza e o interesse de uma concentração dessa espécie: as várias a possibilidades de que ela oferece à pesquisa do homem e ao sonho da vida. O pintor é mais propenso do que qualquer um a entender a necessidade de um tal encontro e de intenções e formas e mesmo a provoca-la. Ele vive esses problemas de um outro modo do que com palavras. O trabalho pictórico de Iracema, como também seu sentido de amizade, só podia encaminhá-la a abrir as portas desta casa aos pintores... O Museu do Sol não é apenas a casa dos pintores. Ele é também o museu de todos aqueles que sonham e entalham a madeira com um canivete ou tecem e fazem do objeto um suporte de beleza a serviço da vida... Por vários aspectos a nossa época parece sombria, a arte lhe traz por demais vezes a evidência de fracassos, pesquisa desesperada, ícones de derrotas. Precisa-se mais do que nunca de um Museu do Sol e sua criação evoca um gesto de fraternidade que o seu irmão primogênito, o Museu Henri Rousseau, de Laval, saúda com alegria.

O Museu do Sol está feericamente iluminado, suas salas, a brasileira e a estrangeira, apinhadas de gente. O calor é grande – o Museu do Sol ocupado, Europa ganha – os primitivos tomam uísque, o blábláblá prossegue madrugada adentro. Iracema está também feérica, alucinada, feliz. O Museu do Sol está, afinal, inaugurado, com suas telas de primitivos daqui e de fora, esculturas populares, tapeçarias, as portas entalhadas de Juçara, telhas de madeira e peças de cerâmica. Abre ao público todos os dias, das 15 às 19 horas, menos às segundas. Como todo bom museu que se preze e louve.

WLADIMIR e MOURA, a pintura ingênua e primitiva do Nordeste

Paulo Wladimir, rio-grandense do norte de Currais Novos, da região de Seridó, radicado desde 1968 em S. Paulo, e Bal Moura, baiano de Feira de Santana, que vive na Capital há um ano, são os artistas nordestinos que expõe com sucesso nas galerias “Astréia’ e “Encontro”, nestes dias em que o centro artístico paulista está agitado, com duas mostras de grande porte, o Panorama da Arte Brasileira, e a XII Bienal, promovida pela Fundação Bienal, sob o comando, sempre, de Francisco Matarazzo Sobrinho. Paulo Wladimir, realista-mágico e ingênuo, já expôs em inúmeras individuais e coletivas, aqui e no exterior, onde goza de grande conceito da crítica especializada e colecionadores. Bal Moura, mais novo, firma-se agora, após andanças por Paraty, Florianópolis e Belo Horizonte. Wladimir vai logo respondendo sobre a faixa de pintura em que se situa. 
Adão e Eva - Paulo Wladimir

- Pinto sem me preocupar em me defender ou me situar em gênero algum, embora muito me comunique e tenha ligações com a escola ingênua. Alguns críticos e colecionadores já situaram meu trabalho dentro de um realismo mágico. O melhor é impor o trabalho por si, sem comprometê-lo com rótulos, pois, se depois sentir uma necessidade de guinada, pode-se ir ou voltar sem maiores explicações. 

- Julga-se um pintor de inspiração popular? E a antiga fase primitiva? 

- Na verdade, meu trabalho tem fundamento maior dentro da cultura popular, porém, também provém de outras fontes de inspiração. E a antiga fase dita primitiva, a própria pergunta já responde. Por enquanto, trata-se de uma antiga fase, apenas. 

- Como vê a arte brasileira atual? 

- Atualmente, a arte brasileira se encontra num momento muito agradável, tanto para o artista quanto para o consumidor. Trata-se do momento de auto-afirmação. É agradável para o artista porque está agora se tornando mais adulto. Desligando-se de uma influência direta vinda do exterior e descobrindo valores nossos, fazendo um outro tipo de ligação entre as duas correntes (a influência de fora com a elevação maior de elementos da nossa cultura), dando maior personalidade à apresentação e criando um trabalho mais brasileiro. E é agradável para o consumidor, porque ainda é tempo de acompanhar o surgimento de um novo mercado, com chance de descobrir valores novos empenhados em um sério trabalho. 

- Projetos atuais e futuros? 

- Projetos existem muitos. A realização mais próxima e importante é a participação na mostra em Bruxelas: Brasil Expo’73, onde fui incluído ao lado de grandes nomes da arte brasileira, que estarão representando nossos valores naquele evento. Imagens do Brasil que será a parte ligada à arte nesta grande feira, está sendo organizada brilhantemente pelo professor Pietro Maria Bardi, diretor do Museu Assis Chateaubriant, de São Paulo (MASP). Nesta mostra estará, também, parte da coleção particular minha e do pintor Crisaldo Morais, que foi solicitada pelo prof. Bardi. 

- Tem viajado ao Norte, pesquisou? 

- Antes desta minha exposição viajei durante 60 dias, de São Paulo até São Luiz do Maranhão, vendo e revendo elementos da cultura geral, o que em seguida desenvolvi para a mostra atual. O vernissage desta exposição foi para mim até surpreendente. Contei com a visita de inúmeras pessoas e uma venda de 60% da exposição naquela noite. 

- São Paulo comportaria um museu, ou centro de arte ingênua, ou popular, ou primitiva? Em que termos? 

- São Paulo comportaria, sem dúvida. Precisaria, porém, um trabalho muito sério, muito bem estruturado, sem sombra de improvisação, para que as pessoas levassem também a sério. Principalmente tendo o nome de museu. Teria também que ser um museu vivo, com elementos capazes de informar e provocar interesse, principalmente nas pessoas de sensibilidade e menos familiarizadas com a arte. Teria que ser um museu sem critério de seriedade, sem exagerar em preconceitos infundados. Palestras, filmes, exposições, intercâmbios, enfim uma abertura correspondente às expectativas do século XX. O ideal seria um museu sem conotações de moderno, folclórico, antigo, contemporâneo, primitivo, etc., e sem medo de concorrências na área. 

- Como se sente após tantos anos de luta, ao ver-se bem sucedido, com uma posição já firmada? Conselhos aos que se iniciam? 

Sinto-me cada vez mais empenhado num trabalho sério, correspondendo às expectativa daqueles que já confiaram em mim e principalmente naqueles que ainda não confiaram. Não teria conselho para ninguém, pois provavelmente minhas experiências de vida não funcionariam em outros indivíduos, pois cada pessoa é um mundo diferente e é nessa diferença que se pode criar um trabalho com personalidade própria, já que os elementos estão igualmente no ar. Nossa percepção e sensibilidade é que podem dar uma propriedade diferente. 

Bal Moura é também autodidata, conheceu Raimundo de Oliveira, seu conterrâneo, com a pintura do qual, a sua tem certa parecença. Fala duma enfiada só. 

- O meu trabalho é bastante minucioso e elaborado. Desde que comecei a pintar, há oito anos, sempre usei como tema a Bíblia e suas histórias fantásticas, transportando tudo isso para uma paisagem e clima bem brasileiro, tropical, usando elementos típicos do Nordeste como frutas, gentes, situações, etc. Morei em vários lugares - como Paraty, Florianópolis, Belo Horizonte, mas resolvi fixar-me agora em S. Paulo e estou aqui desde janeiro. Esta parada foi obrigatória por causa do nascimento de minha filhinha. Estou muito incentivado entre os paulistas e por colegas de primeira linha como Paulo Wladimir, por exemplo. 

 TRIBUNA DE SANTOS 7 de outubro de 1973.

José Antonio da Silva

Maior gênio de nossa arte
José Antonio da Silva
Fez bem a Prefeitura Municipal e a Câmara de Vereadores de São José do Rio Preto, em homenagear o artista José Antonio da Silva, agora completando 43 anos de arte, toda ela dedicada superiormente às belezas e aos cantares de nossa terra e da nossa gente. A prefeitura, editando detalhado folheto biográfico do mestre primitivista, e a digna edilidade conferindo-lhe título honorífico, que iguala Jose Antonio da Silva aos maiores rio-pretenses de todos os tempos. 

Circo cacareco - óleo sobre tela

Não canso de repetir, bem antes do prof. P. M. Bardi, que o Silva é glória nacional e tudo que se fizer em sua homenagem agora, repercutirá na posteridade e na memória artística deste País, com a espontaneidade dos atos dignos. Nada há a temer, pois José Antonio da Silva é hoje reconhecidamente um dos grandes artistas do Brasil neste século. 

Se não, vejamos. Silva começou há 4 décadas, descoberto por João da Cruz Costa, Paulo Mendes de Almeida e Lourival Gomes Machado. Logo se impôs, com sua arte ingênua, roceira e pura. Incentivado por “Ciccillo” Matarazzo, Teon Spanudis e Carlos Pinto Alves, ganhou hora e vez em S. Paulo, destacando-se em Bienais e individuais de grande porte. Foi quando o conheci, por volta de 1951, e nunca mais o deixei de vista, seja como crítico e reportes de Artes, seja como amigo sincero e desinteressado. Ele muito lutou, brava e corajosamente, até ganhar lugar certo na constelação maior da arte verde-amarela. 

Paisagem rural

Cresceu autodidatamente, sozinho, auxiliado unicamente pelo seu talento incomum e sua genialidade. Não foi bafejado pela crítica ou pelas rodinhas, governos de quaisquer espécies e/ou instituições culturais. E seu nome ganhou respeito e as manchetes, face à sua vida atribulada, de absoluta autenticidade, fato que o torna ainda mais admirado pelos seus conterrâneos. Silva é um caso único em nossa arte, e sua própria vida é uma estória fascinante,a merecer estudo de um analista maior, como um Nivaldo Carrazoni, ou de um cineasta, da marca de uma Ruy Guerra ou um Hector Babenco. 

Casa no campo

Vejam, todos, bem. Da semana de 1922, marco da arte moderna no Brasil, qual o artista que tem maior volume de obra nos vários campos que se divide a inteligência humana? Tarsila ficou na pintura e no desenho ingênuos, em que foi artista de primeira plana. Volpi chegou às maiores altitudes, com uma arte cerebral, de maravilhosa intuição e inspiração popular. Di Cavalcanti retratou o carnaval, as mulatas e o cotidiano do rio de Janeiro. E Portinari, talvez considerado o mais famoso de todos, pintou o drama social do nordestino e as cenas interioranas de que foi um mestre. 

Nosso Silva, nesses 40 anos incansáveis, não fez só pintura – onde, na cena/visão rural, não tem paralelo com nenhum outro artista contemporâneo. Fez, além da pintura, Literatura (5 livros), Cinema (1 filme), Música (2 discos), Folclore e Teatro (1 peça). Em conjunto de obra, marcadame

TOMIE, DAMA CÓSMICA


Tomie Nakakubo nasceu no Japão em 1913, era pequena japonesinha quando disse ao pai que gostaria de ser artista. Recebeu como resposta um sonoro “não”! Era educada para casar e ter filhos. Não era ainda a Tomie Ohtake. 

Veio para nosso país em 1936 para visitar um irmão, residente em São Paulo. Ficaria aqui um ano ou dois e regressaria ao Japão, onde pretenderia viver toda a vida. Seu irmão impediu o retorno de Tomie à sua terra natal. Especialmente pelo furor da 2ª Grande Guerra, o Japão fez pacto com a Itália e a Alemanha, as notícias eram de um mundo conturbado. A graciosa Tomie foi ficando, ficando e acabou casando com o engenheiro agrônomo Ushio Ohtake, teve dois filhos, Ruy e Ricardo. 

Ciccillo e Tomie em 1960

Conta o jornalista Henrique Fabre Rolim que logo a veia artística voltou a arder dentro de Tomie, já então Tomie Ohtake. O nome que consagrou. Em 1952 foi visitar a exposição do artista japonês Keisuke Suganbo e se encantou pelas suas obras. Sugano a incentivou e Tomie transformou a pequena casa do bairro da Mooca num ateliê, fazia desenhos e pinturas figurativas. Três anos depois, trocou a pintura figurativa pela abstrata. 


“Queria pintar o que vinha decoração e não apenas o que via”, explicou ao repórter. Além da pintura abstrata e escultura, Tomie começou a ganhar nome como gravadora. Participa das primeiras Bienais, nos anos 50, ganha elogios e Mário Pedrosa. Em 1957 expõe no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1968 naPan American Union, em Washington, e em 1969 na Petit Galerie do Rio de Janeiro. Sua arte começou a ganhar adeptos entre nós, faz gravuras em metal, privilegia a cor, faz obras públicas e esculturas que brindam o público, espécie de “desenhos no ar”. Os filhos crescem, estudam, atuam na produção cultural e na arquitetura, vão idealizando o Instituto Tomie Ohtake. A japonesinha Tomie Ohtake está ganhando o Brasil e o mundo com sua arte cósmica.

CONCESSA COLAÇO, MESTRA TAPECEIRA

“Concessa, você é o cão em figura de gente, falando bem seria a coa. Meus devotos parabéns. CARYBÉ. Fã número 1”.


O obá, cigano e baiano Carybé passa por São Paulo, vindo das gaúchas terras. Passa pela “A Galeria”, vê a mostra de tapeçaria de Concessa Colaço, grava seu registro de entusiasmo no livro de entrada. Simpática, agitada, espirituosa, elegante num legítimo cafetã, Concessa ri. Logo fica séria e se recorda de outro baiano, agora moro, e de que de certa forma - embora as diferenças de estilo e execução - substitui na primeira linha da tapeçaria brasileira: Genaro de Carvalho. 

Esta minha exposição em S. Paulo é minha gratidão emocionada a Genaro, nosso mestre tapeceiro que está cada vez mais vivo, nas formas e nas cores que o seu talento espalhou pelo Brasil. 

Concessa é portuguesa, mora no Rio, naturaliza-se brasileira, tem o sangue azul da tapeçaria. Sua mãe, Madeleine Colaço, nascida no Marrocos, era tapeceira e veio para o Brasil em 1940. Criou uma aldeia artesanal no Estado do Rio, junto a Cabo Frio, dirigindo a execução de seus afamados tapetes, nos quais aplicou um ponto de sua invenção, hoje conhecido como “ponto brasileiro”. 


Concessa faz tapeçaria há uns três anos, ampliou a oficina, criou um novo ponto, o “corrido”, inspirado nas tapeçarias do século XI, da Rainha Matilde da França. Só usa lãs e sedas naturais em seus tapetes. Nada sintético. 150 a 180 mil pontos em cada metro quadrado. Antes de se decidir pela tapeçaria, Concessa tentava o piano. 


Deixei de ser pianista e quero ver se não desafino na tapeçaria... Prefiro dar concertos em lã... A emoção de cada tapete terminado... É como avançar cada vez mais uma nova vitória. 

Tapeçaria premiada internacionalmente
Confessa que não tem um estilo próprio, nem sofre influências. Prefere criar uma marca - na linha que herdou da tapeçaria Colaço - a fazer uma arte fácil. Cada tapeçaria que executa, com suas artesãs auxiliares, é discutida, planejada, pesquisada, atentos aos requisitos de estilo de vida do comprador, ambiente onde será cocada a peça, temática, etc. Concessa acha que “interpreta” cada tapeçaria, usando para tal seus reconhecidos lirismo e sensibilidade. Considera-se, sempre, “uma criadora espontânea”. 

Amo as coisas que crio... Mas não peçam muitas coisas de mim. Ninguém tem muito para dar... Nem eu.

Diz que, quando está em seu sítio, o “Espraiado de Maricá”, acorda pelas seis e meia, toma café e banho - confessa-se complexada por banhos, com essências, sais e perfumes - põe um “vestido horrível, mas confortável, cheirando a sol”, e vai desenhar no ateliê. Passa amanhã assim, almoça entre uma e dez e uma e vinte. Às 13,25 exatamente está no ateliê de novo, não espera “pela hora da moleza”. Desenha em preto e branco - flores, galos da serra, santos, temas sacros, desenhos que nunca expôs, mas que inspiram suas tapeçarias. Gosta do sítio, de seu ar bucólico, da Guararema imensa que tombou e renasceu de seus galhos, troncos e parasitas, do rio Espraiado, do papagaio “Molocotá” que trouxe de Ouro Preto e que, nas tardes inspiradas, canta, dança, faz versos... 

Num lugar tão lindo, com o gosto dos perfumes e das coisas belas da vida, sou uma sentimental, sim... E romântica também - confessa Concessa, olhando firme através de seus óculos claros. 


Mas, no Rio, os filhos Thomaz Raul (16) e Luiz Edmundo (19), estudantes secundários, a esperam, “é a hora em que viro mãe, objeto obsoleto e incômodo hoje em dia...” Também aguaram Concessa sua assistente Beatriz Cordeiro e a colaboradora Maria Carp, pintora e escultora marroquina, fiel amiga. E mais, umas 10 moças - “os meus pincéis” - que ajudam Concessa nos remates e bordados, depois dela riscar a mão a talagarça e dar início aos primeiros pontos em cada tapete. Ela não admite o “cartão” em tapeçaria, cria diretamente na tela. Até hoje já fez umas 200 tapeçarias, nunca levando menos de seis meses na confecção de cada uma. Cada peça é vendida em média de 5 a 27 mil cruzeiros, conforme o trabalho que dê. Nos nomes das tapeçarias expostas agora, Concessa dá vazão ao seu espírito: “Euforia de Ouros”, “Sonho Azul”, “Conversa de Azuis”, “Vendaval Rubro”, “Anjo da Esperança”, “Luz do Meu Caminho”, “Do Coração à Flor”, “Dança das Cores em Tempo de Verde”

Salão de Jantar - Palácio do Planalto - Tapeçarias "Saudades do Meu Jardim I e II"

A tapeçaria tem e ter relevo, vida... Não acredito em arte asfaltada... A tapeçaria é uma arte sofisticada, só pode ser feita por gente pura, sem sofisticação... O ponto brasileiro que uso é um samba bordado... em matéria de arte, o Brasil está dando um “show”. Veja-se a monumental exposição do genial Di Cavalcanti, que os paulistas organizaram no Museu de Arte Moderna. 

Voo de encontro ao infinito (tapeçaria)

Concessa fala,conta que já vendeu tapeçarias para A Rainha Fabiola, Sra. Charles Schneider, Jean Ricomar, Lurdes Catão, Glorinha Sued, Olivia Leal, João Soares do Amaral Neto, Mercedes Miranda, Santusa Barcelos, Ilde Maksoud, Ivan Segurado Pisto. Destaca Genaro, sempre, Nicola Douchez e Rubem Dario como mestres tapeceiros brasileiros. Waldemar Szanieck provoca e a elogia, mas Concessa adverte que ainda não se acha segura nem perfeita, apenas usa sua sensibilidade criadora, que a leva a bordar, tocar piano, fazer desenhos e poesias, compor músicas. Seu último samba “A Verdade da Vida”, foi gravado por Elizete Cardoso, Helen de Lima, Agnaldo Rayol, Miltinho e, com grande sucesso na Argentina, por Altemar Dutra. Nesse ponto, Concessa fala de seus ascendentes ilustres, se sangue azul, onde entram diplomatas como Thomaz Colaço, seu pai; ceramistas, como Jorge Colaço, seu avô; poetisas, como Branca de Gonta, sua avó; e poetas, como o príncipe dos poetas portugueses, Thomaz Ribeiro, seu avô materno.

Quadro de Tapeçaria


E Concessa deixa a galeria da Rua Bela Cintra. Vai atrás de Grace & Zilda, jovens artesãs, pintam tecidos a mão com uma técnica especial bem apurada. Concessa quer comprar cafetãs ou saris de seda, pintados a mão. Tem vistosa e espetacular coleção deles. Confessa ser, esse, seu único hobby. “Afora os chocolates”, diz a fiel Marie Carp, piscando um olho para Hector Júlio Paribe Barnabó, o Carybé. 

 TRIBUNA DE SANTOS 14 de novembro de 1971.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Décio Pignatari - um memorial da cultura


O Centro de Pesquisas de Arte Brasileira se insere no campo pioneiro da preservação e análise da memória cultural - diz-nos Décio Pignatari, poeta, escritor, professor de Literatura, diretor do Centro de Pesquisas do IDART, da Prefeitura da Capital - que atua, diz, em nível mais modesto, ao lado de organismos congêneres, tais como o Centro Georges Pompidou, de Paris e o Centro Nacional de Referência Cultural, de Brasília. Contudo, enquanto entidade municipal, voltado principalmente para a realidade cultural do município de São Paulo e da Grande São Paulo, podemos dizer que não tem similar ou, pelo menos, não se tem conhecimento de Centros de Pesquisas semelhantes em outros países. 

“A pesquisa científica do objeto artístico e cultural ainda não possui parâmetros estratificados. Aqui, impõe-se a experimentação de métodos, o que confere ao Centro também características de núcleo modelar e formação e aperfeiçoamento de pesquisadores do objeto e do fato culturais. É por essa razão, antes de mais nada, que, embora em fase de implantação,, optou-se pela deflagração do processo de pesquisa, juntamente com a realização das tarefas de planejamento, seja das operações de pesquisa, seja do preparo do material resultante destinado à catalogação e à consulta pública, um módulo em fase de elaboração, e que nas condições presentes, deve ser estruturado de forma a permitir a ulterior implantação de um Banco de Dados Culturais, ou seja, um processo de informação.” 

“As pesquisas dirigidas e a cobertura de eventos culturais são processados segundo dois cortes: um sincrônico e outro diacrônico. Em corte sincrônico, pesquisam-se e registram-se dados atuais, de forma a facilitar o exame futuro das camadas cronológicas da cultura da cidade de São Paulo. Em corte diacrônico, pesquisam-se e registram-se manifestações e documentos das camadas culturais do passado”. 

“A Pesquisa Zero ou Pesquisa Piloto, estendeu-se por cerca de sete meses, de janeiro a julho de 1976, e se configurou, para todas as áreas, no âmbito de uma temática geral, eu foi a de “São Paulo Dentro e Fora do Sistema” ou “São Paulo Direito e Avesso” - ou seja, as pesquisas foram endereçadas no sentido de registro e análise não só de manifestações culturais marginalizadas,ou por serem nascentes ou por estarem afetadas por algum processo de extinção. As áreas não são estanques: buscam-se nelas aquelas interfaces que propiciam trabalhos de natureza interdisciplinar. 

“A massa de material coletado - chamado “pacote bruto” - passa por um processo de triagem e beneficiamento, do qual resulta o “pacote líquido”, um output final, que constitui a pesquisa propriamente dita. “No momento atual, outubro de 1976, procede-se à apresentação da pesquisa de cada área pra todas as demais áreas e setores, num trabalho de avaliação propriamente dita, e de classificação e ordenação do material do Arquivo Documental. Ao mesmo tempo, nevas pesquisas estão sendo realizadas em todas as áreas, segundo critérios de importância tempo e custo. 

“Em todas as áreas de pesquisas foram realizadas entrevistas gravadas, slides, fotos, filmes super 8, compra de cópias de filmes 16 e 36 mm e coleta de documentos inéditos. Recolheu-se, também, documentação relativa a atividades diversas de outros eventos artísticos. Editaremos vários tipos de publicações: “multimídias”, livros, boletins, áudios-visuais. 

“Nesses primeiros sete meses de funcionamento, em caráter ainda experimental, sem laboratórios próprios e em instalações precárias, os trabalhos de áudio recolhidos foram de 241 peças; visual, 12.860 peças; em objetos - matrizes e modelos - 54 peças; em pesquisas e reproduções - Xerox, ampliação, cópias heliográficas, etc. - 6.663 peças; papéis datilografados - memórias, correspondência e relatórios - 870 conjuntos; em papéis-desenho - plantas, mapas, “croquis” etc. - 155 unidades; e em papéis impressos - livros, programas, catálogos, cartazes - 840 peças.” 

N. da R.: esta é a segunda reportagem sobre o trabalho do IDART, da Prefeitura de São Paulo; a primeira, sob o título “A preservação documentada da memória cultural, foi publicada dia 1º/11/1976. FOLHA DE SÃO PAULO ARTES VISUAIS - L.E.K. 14/11/1976.

João Sebastião Costa - ARTE MAIOR



ARTE MAIOR

Fértil   Colorista
Amazônico   Selvático
Telúrico   Espontâneo
Popular   Real
Cronista   Verdadeiro
Primitivista   Pantaneiro
Caboclo   Expressionista
Delirante    Imaginário
Lúdico     Sensitivo
Inusitado    Inventivo
Original   Ficcionista
Assimilador     Hagiográfico
Mágico    Difuso
Simbólico    Emblemático
Instigante     Sincrético
Fantástico    Anímico
Mitológico   Contemporâneo

Para as 30 e tantas telas de João Sebastião Costa, na Chroma, 30 e poucas avaliações críticas, a conferir pelos amigos e convidados da galeria da Rua Augusta. O certo é que uma arte bela e vigorosa desce, hoje, do Oeste brasileiro – Goiás, de Mato Grosso, Amazônia, Pará. João Sebastião faz parte, por méritos próprios, desse primeiro time de artistas de, entre outros, Dina Oliveira, Siron Franco, Humberto Espíndola. A. Poteiro, Rita Loureiro, Adir de Souza, Bené Fontelles. Arte nacional genuína e pura, capaz e assombrar as gentes e as bienais daqui e do mundo.


João Sebastião chega com a força de suas onças pintadas arrancadas das selvas mato-grossenses, e, cancerígeno e junguiano, com a fé positiva de sua mensagem tropicalista e verde-amarela, bem Brasil - hoje, neste portal neste limiar do século XXI.
Arte maior.
Luiz Ernesto Kawall
(UBE - APCA)

1.9.88

CHICO VOLTA EXPLORADO



Chico da Silva, o famoso primitivo, índio do Acre, morador em Fortaleza, está novamente entre nós - desta vez expondo na Art Nueva, de Mary de los Angeles Fernandez Diaz.
É o mesmo Chico de sempre, de tez morena e face larga, os dentes de ouro sobressaindo no sorriso fácil. Ali estão, na galeria de Mello Alves, 40 telas suas mostrando os monstros endemoniados e bichos ancestrais de sua fantasia arquetípicas. A técnica caiu, pois Chico, sofrendo de cirrose (e ainda bebendo), mistura momentos de lucidez com outros de tontura e dor. O Chico de Sempre, envolvido com Marchands que o exploram. Dezessete telas foram vendidas, aos prelos de Cr$ 5 a Cr$ 15 mil, e outras 23 ficaram apensas a um inquérito policial. Chico abre um sorriso largo, fala que atualmente só assina telas que realmente faz e que continua vítima de gente esperta e desalmada.


Ainda pinto muito, sim, vou casar e pretendo agora mostrar minha arte no Rio de Janeiro”, diz ele, antes do trago de guaraná com pinga. Assim, continua sua sina o velho Chico de sempre - um dos grandes nomes da arte primitiva brasileira em todos os tempos.
O crítico Jacob Kilntowitz é o novo membro do Conselho de Arte e Cultura da Fundação Bienal de São Paulo, ao lado de Alberto Beuttenmuller, Leopoldo Raimo, Marc Berkowitz, Maria Bonomi e Yolanda Mohaliy. A Bienal prepara a grande ostra latino-americana deste ano, e Jacob - que terá um livro de críticas editado pela Espade, neste ano - e seus companheiros estudam a participação brasileira no certame. Fala-se no convite a 60 artistas escolhidos pelo conselho, representativos da arte brasileira atual.


OS 14 DO VALE



Fez bem a Monsanto em editar um livro-album para registrar, neste ano de 1987, a melhor pintura primitivista que se faz atualmente no Vale do Paraíba, região que compreende tanto o rio lendário, ao norte, desde o sopé da Serra da Bocaina, até a planície do eixo Rio - São Paulo, beirando a Via Dutra, até a Serra da Mantiqueira, nos rumos de Minas Gerais. 

Eta mundão bom, no dizer dum cantador popular de São José dos Campos, cidade moderna e muito industrializada, já chamada a capital do Vale, por sua importância econômica gente às demais, com um surto de progresso que faz lembrar uma São Paulo um pouco menor. Um mundo que não esconde, ao contrário, expõe e exalta a cultura popular do Vale do |Paraíba, mostrando a profunda autenticidade de seus artistas ingênuos e espontâneos. 

Um trabalho, aliás, que já vimos há alguns anos exposto e cantado em prosa e verso no Museu de Antropológico de Jacareí, fundado por Osmar de Almeida em 1979, trabalho dignamente continuado e ampliado pelo psicólogo e museólogo Aldemir Morato de Lima, paraibano de boa cepa, cujo levantamento do folclore e das manifestações populares do Vale, em especial da pintura primitivista, propiciou exposição badalada e a colocação dos artistas vale- paraibano na constelação maior da arte do Estado. 

Morato de Lima, a quem se deve o trabalho de apresentação deste livro, já destacava na ocasião o papel centralizador da Via Dutra e do Rio Paraíba na vida da região, e toda a gama de identidades à sua volta, sociais, econômicas, culturais ou antropológicas. A esse quadro se soma a tradição do Vale na arte santeira, na arte figureira, na cerâmica figurativa, no artesanato, nas festas populares – uma realidade informada por seus artífices-artistas, que, com sua criatividade, tornaram toda a região uma comunidade produtora de bens culturais, chamando a atenção da museologia e dos colecionadores, da crítica e do público comum. 

A pintura primitivista do Vale do Paraíba segue, assim, uma trilha de raízes regionais que alcança o nacional, como queria Mário de Andrade, ao defender a cultura popular como base de uma vivencia sócio-cultural do artista, face à realidade brasileira contemporânea. Eles são, em seu todo, alegres retratadores do cotidiano em que vivem, das festas folclóricas às lides da roça, da urbanização crescente das cidades aos causos e lendas que a traição oral e escrita passa de pai para filho. Cada um em sua comuna vivem integrados e alguns já se sustentam de sua arte, com produção e venda certas, muitos deles até com freguesia anotada em centros maiores, como Rio de Janeiro e São Paulo. 

São bons artistas, os 14 selecionados para esta obra, e que procuramos em seus locais de trabalho, em seus ateliês, em suas casas, nas praças domingueiras, e até formando um clube, o GAVA – Grupo de Artista Vale - paraibanos, com sede em Taubaté, sob o comando de um mestre-escultor do porte de Demétrio. Daí porque a arte que produzem ora tende para o fato vivencial, ora para o folclórico, ora para o referencial de lendas ou para a pura introspecção, dando um colorido e movimentação temáticos facilmente provados nestas páginas. 

O mais importante, por fim, na obra destes primitivos, é que, além do retrato fiel que elaboram de seu viver citadino ou no campo, estabelecem sempre uma identidade com as festas do Vale, profanas ou religiosas, tradicionais ou popularescas. Pois parecem viver uma festa permanente, esses artistas autênticos, documentando com suas pinceladas a vida cotidiana, o rio lendário, a serra majestática, o céu límpido do Vale do Paraíba. E as festas, muitas festas, de Jacareí e São José, Taubaté e Guaratinguetá, Pindamonhangaba e Silveiras, São Jose do Barreiro e Santa Branca, Tremembé e São Luiz do Paraitinga. 

Aí estão esses verdadeiros mestres: Toninho Mendes (Antonio Mendes da Silva) e Adão Silvério, de Redenção da Serra; Carolina Migoto da Silva e Lea Rico, de Taubaté; Grácia B. Oliveira, de Tremembé; Herculano Cortez da Silva, de Silveiras; Ismênia C. Faro e Francisco de Assis Santos, de Guaratinguetá; Pedro Peloggia, Scila Peloggia e Alex Peloggia, de Jacareí; Geraldo Magela, de Santa Branca; Lenice Lopes da Silva, de Cunha; e José Carlos Monteiro, de São Luiz do Paraitinga. 

Os 14 do Vale representam outros mais, que, por uma questão de metodologia e espaço, não pudemos incluir aqui. Faríamos finalmente um referencia especial à Maria Santeira, primitivista mística dessa última cidade, falecia há três anos, mestra da arte incomum, hoje um dos pontos de apoio da arte contemporânea, como se viu recentemente em grandiosas mostras no Museu de Arte Contemporânea de Paris e na XVI Bienal de São Paulo.
Junho de 1987. Luiz Ernesto M. Kawall

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Walde Mar e Aloísio, dois bons primitivos

Na abertura da mostra de Walde Mar, a Mini-Galeria do USIS regurgita de gente. O grisalho Alan Fisher, o jovial Tomas Scott e o sempre apressado Tito Silveira recebem os convidados. Mais adiante, miúdo, moreno e elétrico, o industriário e primitivo de 32 anos faz um sucessão. Henrique Araújo, protetor de primitivos, também está ali. O telefone toca, Aldemir Martins do outro lado:

- Walde Mar, me reserve um quadro seu, não pude ir até aí. 

- Já vendi todos os quadros, meu velho. 

- Pelo meu São Francisco do Ceará, então você faz outro pra mim! 

É Aldemir. É São Paulo de “A” a “Z”, como diria Tavares de Miranda, que não fica de jeito nenhum sem uma tela colorida de Walde Mar. Ele exulta, junto ao velho pai escultor - baiano curtido - e do irmão Neuton, do grupo de pintores primitivos de Osasco, que o lançou na arte dos ingênuos e dos folclóricos. 

Vinte horas. Walde Mar se despede de seus amigos primitivos, do grupo da Praça da República. Ali estão Joel Câmara, um dos grandes desenhistas do Brasil; retintas e alegres, Isabel Santos e Waldeci, esta irmã do pintor-“hippie” Waldomiro de Deus, agora em giro vitorioso pela Europa; Márcia, Peri e os filhos, “a família pintora” do Taboão; a sutil Lis, a inteligente Pulu e a bela Elaine; Ugarte, como sempre, fazendo muito barulho; e os amigos de todas as horas, Ivair, Abdias, Aloísio, Dirceu, Elias e Pedro Fogaça. 

As lendas dos Villas-Boas 

Walde Mar de Andrade e Silva nasceu em Timburi, SP, a 6 de novembro de 1933 e começou a pintar em 1969. Casado com Maria José Zanforlin, 2 filhas, Maria e Wanda. Trabalha nos escritórios da Bordon, na Lapa. 

Seus motivos são exclusivamente os temas indígenas. Sua primeira individual é realizada agora, na Mini-Galeria, onde estão as telas coloridas, espontâneas, todas inspiras em lendas narradas por Cláudio e Orlando Villas-Boas em “Xingu, Seus Índios e Seus Mitos”. Já participou de 19 mostras coletivas e em dois salões oficiais, ganhando menção honrosa em ambos. Tem telas vendidas a colecionadores de vários países. 

 - ... Minha maior preocupação é com a comunicação com o mundo indígena do nosso país... Só pinto, quando tenho vontade, quando vem a inspiração... Acho que sou um pintor espontâneo e livre... Gosto de vender na praça, aos meus clientes habituais e aos turistas estrangeiros... Não imito ninguém, já me disseram que há alguma coisa de Rousseau nas minhas telas, mas confesso que nunca vi nada desse Rousseau... Gostei da apresentação do professor Egon Schaden, na verdade nada tenho de sofisticado e de escolas... Quero ser autêntico sempre. 

Quanto às cores, se encaixam 

Aloísio Lucas de Siqueira, 32 anos, Serra Talhada - Pernambuco. Veio a S. Paulo em 1958, foi barbeiro durante 6 anos. Iniciou-se acidentalmente na pintura primitiva e está mergulhado na arte ingênua e bruta até hoje. Nem tanto bruta... Aloísio é um colorista sensível e geométrico. 

- Você imita Volpi? 
- Não, admiro grandemente Volpi, como Djanira, Di Cavalcanti, Tarsila, José Antonio da Silva, Cássio M’Boy, Walde Mar, Neuton e tantos outros... Volpi tem 50 anos de arte, eu tenho 6, não tento imitá-lo, mas espero chegar à altura que ele chegou. 

Aloísio é casado com a cearense Maria Nilsa de Souza Siqueira e tem 3 filhos, Maria Aparecida, José Renato e Maria da Glória. Pinta na sua casinha de dois cômodos em Socorro, Santo Amaro, e vende sua produção esparsa aos amigos importantes, a turistas estrangeiros, ao protetor Mário Schemberg. Gosta dos motivos do Norte, “mas não pinto a miséria e a forme nordestinas, que são muito dolorosas”. 

- Vim tentar a vida em S. Paulo e acho que venci, e estou satisfeito, pois não faço pintura influenciada de espécie algum e sou autêntico... E vou ser franco dizendo que acho mais fácil fazer um quadro que cortar um cabelo duro e rebelde... Quando a inspiração vem, é claro. 

A agitação na Mini-Galeria está terminando. O consumo do uísque nacional e mandioca assada foi grande. O consulado norte-americano volta ao seu movimento normal, no coração da Avenida Paulista, burocrático. O senhor cônsul-geral despacha uma papelada. 

A Crítica 

Aloísio possui um domínio notável da cor. Começou a pintar em São Paulo, quando era bombeiro em Osasco. A sua expressão cromática, eminentemente atual, foi sem dúvida influenciada pelos cartazes publicitários. Por outro lado conserva a pureza do sentimento sertanejo nordestino e a sua religiosidade quase romântica, que dão uma qualidade excepcional à sua pintura religiosa. Aloísio revela um senso sobremodo interessante do demoníaco em alguns de seus palhaços. Ele pintou admiráveis quadros em flores, utilizando efeitos óticos com muita propriedade. É um primitivista OP... Está em evolução. Pode tornar-se um construtivista cromático, como Volpi (Mário Schemberg ao repórter, no saguão do Museu de Arte, após o espetáculo “Cordel”).
 A TRIBUNA 20 DE JUNHO DE 1.971.