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sexta-feira, 4 de agosto de 2023

QUEM SE LEMBRA DO CICCILLO?

 Famosos Que Partiram: Yolanda Penteado

D.O Leitura – Ano II – Número l8 – São Paulo, novembro de 1983 1963.  

Ciccillo está desencantado das Bienais e da vida agitada de São Paulo. Procura seu amigo Wladimir de Toledo Piza, na Sociedade São Vicente de Paula. Diz de sua intenção de ir morar em Ubatuba, onde comprara, do próprio Piza, por 4 mil contos, a Prainha, à entrada da cidade, que mandou reformar segundo um projeto do arquiteto Bratke.

- Ciccillo, você é muito grã-fino, não conhece o povo... Assim você não entra no céu... Vá para Ubatuba que a vida no meio dos caiçaras lhe fará bem. 

Ciccillo foi, acabou candidato a prefeito com o apoio de Ademar de Barros. Eleito, fez uma gestão revolucionária, com ajuda maior do governador Abreu Sodré (1967-197l). Mas, durante a campanha eleitoral, ante a razia que Ciccillo fazia na cidade e nos sertões de Ubatuba, o outro candidato a prefeito, Coutinho, funcionário da CTI Industrial e ligado aos pescadores, procurou-o. 

- Seu Ciccillo, vou retirar minha candidatura... 

- Que aconteceu? 

- Não tenho mais dinheiro, minha campanha acabou... 

Ciccillo chama o fiel secretário Neco (Manoel Esteves da Cunha Júnior) e segreda alguma coisa. Neco vai lá dentro e volta com um cheque que Ciccillo assina com generosa displicência e cumplicidade. O Coutinho vai embora. No dia seguinte, os muros de Ubatuba estavam pichados. - “Fora o italiano! Fora Matarazzo!” Mas Ciccillo ganhou fácil.

O MAM 

Em 1948, Ciccillo pegou um início de tuberculose. Foi para a Europa tentar a cura na célebre clínica de Davos, na Suíça. Aqui, já conversava com Francisco Luís de Almeida Salles, Quirino da Silva, Carlos Pinto Alves e outros amigos, sobre a abertura, em São Paulo, de uma galeria de arte moderna, um grande centro cultural à altura da megalópole. Na clínica, na Suíça, Ciccillo se encontra com o museólogo Nierendorf, diretor do Museu Guggenhein. A 4 de setembro, Matarazzo escrevia a Carlos Pinto Alves uma carta entusiasmada, já considerada a certidão de nascimento do Museu de Arte Moderna de São Paulo: ... “Com o Sr Nierendorf, estamos organizando, em nome do futuro Museu de Arte Moderna de São Paulo, uma exposição colosso de arte abstrata de textos de todos os países, de suas origens até nossos dias. Vai ser uma réplica da exposição realizada em Paris, porém mais conhecida. Non è chi io sono abstrattista... mas eu penso que um movimento tão importante de arte moderna é completamente ignorado no Brasil. Também penso que o Museu de Arte Moderna ficará conhecido patrocinando uma exposição assim... (que vai levantar o diabo nell’acqua morta)”. Almeida Salles acha que o MAM começou em meados de 47, quando Ciccillo foi com a mulher, Yolanda Penteado, para a Europa, em lua-de-mel. O casal se desenrolava em contatos com o grand-monde de arte européia. Aqui, chegava Nelson Rockfeller, que se reúne na Biblioteca Municipal com os interessados na fundação de um Museu de Arte Moderna, à semelhança do MAM de Nova York. Traz quadros de grandes artistas, que doa à novel entidade: um Picasso, um Chagall, um Braque, um Leger, entre outros. A comissão organizadora do MAM fica constituída: Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade Filho (Nonê), Paulo Mendes de Almeida, Sergio Milliet e Francisco Luís de Almeida Salles. Sede provisória: Rua Sete de Abril, 230, 3º andar, Edifício Diários Associados., E presidente da primeira diretoria, por escolha unânime, o Ciccillo, filho de Virgínia e do Senador Andréa Matarazzo, nascido em São Paulo, a 20 de fevereiro de 1898, o Mecenas das Artes. “Um servidor da cultura, apenas”, como me disse no barzinho do MAM, anos depois. 

A BIENAL 

A idéia da Bienal foi de Di Prete, artistas, cartazista e decorador-projetista, italiano de Pisa, que veio para o Brasil em 1946. Aqui, publicitário e pintor, fez uma frustrada exposição de 30 óleos na Galeria Domus, de Pascoale Fioca, a primeira galeria de arte da capital paulista. Di Prete tencionava criar uma “brasiliana nacional de arte”, expondo a idéia de Paulo Rossi Ozir, companheiro de aperitivos do barzinho do MAM, e que o levou a Ciccillo numa recepção festiva. Matarazzo ouviu atentamente o plano e pediu a Di Prete que fosse à Metalúrgica Matarazzo expor melhor a idéia. Di Prete lá foi, dia seguinte, conversou de novo com Ciccillo, desta vez acompanhado por Carlos Pinto Alves e Lourival Gomes Machado, este diretor do MAM, que disse: -Sou contra a realização dessa mostra internacional de arte em São Paulo. A mentalidade brasileira não é a mentalidade da Europa. A idéia de Di Prete – embrião da Bienal – morria ali. Mas Ciccillo, sensível, espírito instigante e irrequieto, pede secretamente a Di Prete que exponha seu plano por escrito. Di Prete escreve um texto em cinco laudas em italiano, apoiando-se nos regulamentos da Bienal de Veneza e da Quadrienal de Roma, e o entrega a Ciccillo. Pinto Alves traduz o texto. Ciccillo apóia, mas há demora... Di Prete faz por encomenda do Prof. P.M.Bardi, um cartaz abstrato (primeiro que se faz no Brasil) para mostra internacional de propaganda, que o Museu de Arte de São Paulo (MASP) promovia. A exposição repercute e durante uma conversa com Biaggio Motta, Arturo Profili, Ciccillo e Lourival Gomes Machado, Di Prete defende-se, pois fora tachado de “inimigo” por este último, por haver colaborado com o MASP. E, irritado e malicioso, cutuca Ciccillo: - Seu Matarazzo, me disseram que o Bardi vai fazer uma bienal de artes internacionais... Não sei, não. Ciccillo fica quieto. Sai. Vai tomar o carro, na Sete de Abril. Demora-se um pouco, a porta está aberta, Matarazzo encara Di Prete, Biaggio e Profili e fala duro: - Motta, quero ver em todos os jornais, amanhã, que o Museu de Arte Moderna lança a Bienal de São Paulo.

FRANCISCANO

Ciccillo dava condições de escrever e hospedagem, em Ubatuba, para um intelectual seu amigo. Pagava hospital para doentes. Ajudava um bolsista em seus estudos na Europa. Colaborava com mesadas gordas para jovens estudantes. Em Ubatuba, quando assumiu, a Prefeitura não tinha dinheiro. Ciccillo comprou caro, caminhão e mesa para trabalhar. Dava e doava, de bom gosto, sem desejar retorno e sempre anonimamente, São centenas e centenas de pessoas beneficiadas, aqui e ali, nos mais diversos meios – e que, felizmente, se conservam discretas até hoje. Paz à Ciccillo, hoje em sua capela do Senador, no Cemitério da Consolação, onde está enterrado desde 16 de abril de 1977 – e onde, Na maioria das vezes sozinho, com sua bengala, assistia à missa das onze, aos domingos. Ciccillo, escreve o jornalista Fernando Azevedo de Almeida, era um franciscano por ação e doação. Ciccillo teve certa vez uma experiência amarga. Um dia, em suas costumeiras andanças pela fábrica (a Metalúrgica Matarazzo), encontrou um operário dormindo junto a uma máquina. Ficou furioso. Acordou-o, sem lhe dar tempo a qualquer justificativa, mandou-o passar na caixa, e despediu-o ali mesmo. O coitado abriu dois olhos grandes assustados e Ciccillo ficou impressionado. Confessou, anos mais tarde: - Depois... como me arrependi! Dias mais tarde, tentei consertar as coisas. Mandei procura-lo, mas não o acharam. Soube que tinha filhos e vários anos de firma. Até hoje deploro esse meu gesto infantil de autoridade. Aqueles olhos espantados me parecem fitar. Nunca mais despedi ninguém... Guiomar Morello, montador de 17 bienais, confessa que nunca teve outro chefe na vida, tão exigente, capaz e humano. Luíza Gollas, a camareira-governanta, tratou de Ciccillo durante duas décadas (à base de muitos chás e maçãs). Ciccillo mandou-a três vezes à Europa, como prêmio e homenagem. E ajudaria muita gente, até hoje, se vivo fosse. E, para encerrar o capítulo, quantas Bienais saíram de seu bolso... 

FRASES 

 - A Bienal é uma idéia de alta cordialidade humana. - Eu ganho um cruzeiro simbólico na presidência da Comissão do IV Centenário de São Paulo (a Carlos Lacerda) 

- Tem algum filme de mocinho para ver hoje? (a Wanda Svevo). - Faço as Bienais para os jovens. - A Bienal é um marco de paz e confraternização entre os povos. - Quem sou eu, para julgar outros? - Acho que quem vai me substituir na Bienal é aquele de barbicha. Como é o nome dele. Acho que é o Vilares. - Uma vez pediu reunião do Conselho da Bienal, que se demorava para aprovar o regulamento. Disse logo, em frase célebre: - Faço um regulamento com a minha bengala! (chamou o Mário Wilches e fez o regulamento, em duas horas). - Artista é para fazer obra, não administração. - Quando Neco começava a remexer sua pasta: - Já sei, está preparando o meu discurso a São Pedro.

Em Ubatuba, no ano em que morreu, na casa da Prainha, depois da recepção em que convidara toda a cidade, vereadores, gente do povo, Silvano e Pierella Dalle Molle, Maria e Luís Lopes Coelho, Felix J. Francisco, Washington de Oliveira, Dr. De Lucca, Coronel Hélio de Oliveira, e ainda adversários políticos, me disse: - Quando morrer, depois de um ano, ninguém falará mais do Ciccillo. Nos dicionários, terei umas três linhas... Só, no máximo. Ele não se sentava à mesa, quando havia 13 pessoas. Era devoto incondicional de São Francisco de Assis. Tinha mais de 200 livros em línguas diferentes, sobre o Poverello de Assis. A MORTE Ciccillo foi morrendo aos poucos, diabetes, insuficiência pulmonar, ao lado de Balbina Martinez de Zayas Matarazzo – fiel companheira de tantos anos; começou o namoro nos anos 20, espanhola de cabelos ruivos, linda mulher, com quem se casou num cartório da cidade em 1974; Giannandrea Matarazzo (um dos sobrinhos queridos), Dr. João Valente, médico que o assistia, Wladimir Toledo Pizza, os irmãos Paulo Gianicola e Costabile; Virgínia, Mário Papone, Pati, Oscar Landmann, Oswaldo Silva e outros, sobrinhos e sobrinhas, além do Neco. Era um sábado, Desde as sete da manhã, não falou mais. Já apenas sussurrava. Quis olhar pela janela, no amplo apartamento do Conjunto Nacional. Puseram a poltrona ante a vidraça grande. Tinha falta de ar. A cabeça pendeu. Morreu como viveu, sem contestar, sem gemer, aceitando a sorte da vida. Foi feita a sua vontade. - Quero ver São Paulo. Sou, primeiro paulista... Depois, brasileiro. O monumento a Ciccillo, idéia de amigos, incentivada pelo Centro Cultural Ciccillo Matarazzo, projeto de Bruno Giorgi – uma espiral, semelhante ao emblema comemorativo do IV Centenário de São Paulo – não vingou até hoje. O franciscano Ciccillo tinha razão. Está sendo esquecido rapidamente. O mal de Ciccillo foi construir muito, ajudar, incentivar, promover a cultura brasileira, com alma de lutador e humanismo. Ciccillo Matarazzo, quem se lembra dele hoje? Não tem uma referência, uma foto publicada, uma rua, uma avenida – à exceção de Ubatuba – uma estátua, um monumento. Ciccillo tinha razão, quando se referia à memória (curta) nacional. Até nisso não foi o visionário que tantos julgavam, mas o realista vivo, ágil, inteligente construtor sem igual, em seu campo, na história brasileira. Que sirva essa reportagem, aqui no D.O. Leitura, para reavivar um pouco a sua lembrança amena e sua dimensão incomensurável.

AS BIENAIS SEGUNDO SEU CRIADOR 

Fundando o Museu de Arte Moderna de São Paulo, tornava-se imperativo um encontro internacional periódico de Artes Plásticas em nossa Capital. A I Bienal é a concretização desse objetivo e evidencia que São Paulo e o Brasil estão à altura de promover com êxito, de dois em dois anos, este Festival Internacional de Arte. É feliz coincidência o fato de a I Bienal inaugurada neste ano permitir que a segunda se realizasse por ocasião do IV Centenário da fundação da cidade. Desde o primeiro instante foi pressentida a ousadia do empreendimento, a necessidade de uma vasta colaboração, as dificuldades que teriam que ser vencidas e os erros inevitáveis de uma primeira experiência. Mas, na verdade, dada a compreensão dos Poderes Públicos e Privados, por uma grande conjunção de esforços por parte de todos que organizaram a exposição, por uma entusiasta colaboração dos artistas, intelectuais e jornalistas brasileiros e dos governos das nações amigas que se fizeram representar, a efetivação da I Bienal foi além de qualquer expectativa. Devemos, pois, em primeiro lugar, agradecer muito sinceramente o trabalho e a dedicada colaboração de todos aqueles que, desde o início, deram a I Bienal o melhor de seus esforços e de sua boa vontade. Do trabalho comum todos poderão verificar o resultado. Assim, tudo contribuiu para que, nesta primeira grande manifestação artística do Brasil, pudéssemos ter uma consciência maior e mais explicativa dos valores artísticos nacionais em confronto com as grandes realizações artísticas de outros países. Uma expressão do espírito humano só atinge seu ponto de plenitude – e para a arte isto é de máxima importância – quando encontra projeção e eco, correspondência e compreensão em outros homens, povos. A ideia inspiradora e animadora de todo o esforço do Museu de Arte Moderna de São Paulo consistiu em concorrer para que se realizasse em nosso meio essa expressiva manifestação de alta cordialidade humana.

segunda-feira, 5 de junho de 2023

GERALDO DE BARROS

GERALDO DE BARROS: a imagem consumível dos “out-doors” 

Meu trabalho é baseado nos pôster como elemento de comunicação de massa. 

Eis como define sua atual exposição – 12 anos de pintura, 1964/1976 – no Museu de Arte Moderna de S. Paulo, o artista Geraldo de Barros, pioneiro do movimento concretista, que agora volta à ribalta do público, mostrando 35 trabalhos em que utiliza outdoors (posters) como elementos básicos de cada obra através de colagens ou pinturas. 

Geraldo de Barros (Xavantes, 1923) iniciou-se nas artes em 1945, tendo estudado com Clóvis Graciano, Colete Pujol e Takaoka. E, Paris, em 1951, estudou litografia e gravura. Premiado em 3 bienais, Geraldo de Barros, com Wesley Duke Lee e Nélson Leirner, formou o conhecido Grupo Rex – exposições de rua, heppenings, introdução a pop arte no Brasil – hoje dissolvido. Sempre participou de movimentos de vanguarda, em fotografias, cartazes, artes plásticas e “desing”. Nos idos de 50, com Frei João Batista, dominicano, fundou a Unilabor, cooperativa de trabalho, hoje convertida na conhecida “Hobjeto”. 

A atual mostra de Geraldo do Barros no MAM, com inauguração dia 19 último, em obtido sucesso de público. Radhá Abramo, que apresente Geraldo no bem elaborado catálogo, diz do artista: 

– “Um dia, há uns oito meses, Geraldo de Barros leva-me para seu sítio em São Roque. O verde do percurso desfaz as imagens gastas da cidade e à noite as conversas despertam lembranças. Quando sol, no dia seguinte, se planta no pico do céu, Geraldo de Barros arrasta grandes aglomerados coloridos de madeira do ateliê para o jardim e encosta-os às paredes externas da casa. A pintura dos quadros enormes completa a paisagem. São out-doors que deixaram de sê-lo. Lembram aquelas imagens gastas das cidades mas são vivas, parecem respirar e prontas a saltar do espaço que as retém. As gigantescas pinturas são ambíguas. O artista, complacente, pergunta: “o que é isso?” Livro-me de ser pega em flagrante crise de ignorância e ensaio a resposta: “Talvez seja a subversão da mensagem publicitária; penso, mas não falo, porque esta mensagem coloquial me obriga a tecer considerações amenas sobre o uso da foto e a eliminação da retícula impressa no out-door. Falar do que não se leu ou se ouviu de alguém reputado é ousadia; frequentemente falta-nos a coragem de errar em brasileiro. Sinto, porém que a pintura de Geraldo de Barros bole com a estrutura da linguagem, mas custa para que a palavra subversão – a palavra precisa – surja para designar o significado latente da expressão plástica do artista.”

 ***

 – “Passados alguns meses, Geraldo de Barros me solicita a apresentação de sua mostra no MAM. Uma frase de Proust, citada por Carlos Lacerda no seu livro “A Casa de Meu Avô” me assalta: “O bom escritor é aquele que escreve com os olhos enxutos”. 

– Se não me bastasse a advertência do autor da “Recherche” lembro-me de outro crivado da objetividade brechtiana e que me recomenda o consciente distanciamento para o registro dos fatos. Acredito e até mesmo postulo essa postura ante a ocorrência geral de todas as coisas do universo. Imagino também que a errata da história da humanidade, se um dia escrito dentro de um procedimento brechtiano, desnude não a sua face oculta mas a que temos “insistido” em ver. Acredito. Mas que adestramento metabólico infalível seria preciso manter para o equilíbrio de uma postura crítica e para conservar os olhos enxutos diante da obra de um artista?

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– “A empatia, os estímulos sensoriais, a referência cultural, a engrenagem do sistema e a definição ideológica configuram-se na visão e no gosto do homem porque fazem parte da Gestalt humana. Assim, por mais que nos esforcemos na análise científica do objeto de arte, o que se produz é a versão subjetiva, pessoal e parcial da aparência sensível de tudo aquilo que se convencionou designar como realidade. 

– “Pois que nossos olhos sejam úmidos e que o mergulho marcado por todas as vicissitudes existenciais me facilitem apresentar o artista e sua criação”.

*** 

– “O artista usa a imagem consumível dos out doors e acima de tudo extrapola o sentido da mensagem original. Recupera a imagem do homem exposta e proposta como objeto de consumo. Frustra a trucagem publicitária e extirpa o subtexto destinado a despertar um estímulo e uma resposta. Depois que Geraldo de Barros toca um fragmento de out-door, a moça da Trevira reaparece jovial, descontraída, mais linda e doce que nunca; a outra, do cigarro Minister sorri mais livre. 

– “Como o artista é um homem solitário, só sabe criar quando estabelece uma relação com as pessoas. Por essa razão – simples e profunda demais – é que ele vem modificando, nestes doze anos, a imagem dirigida gratuitamente à massa anônima”. 

– “Cria um naturalismo sadio, mostra as pessoas como são, sem truques, sem demagogia. Humaniza a figura, restaurando-lhe a dignidade e despojando-a do supérfluo. Para isso, recorre ao velho instrumento da pintura e prova que as tintas sobre uma superfície são ainda fonte inesgotável de criação”. – “Geraldo de Barros subverte enfim a estrutura da linguagem publicitária, com a arte – porque não teme e sim deseja uma relação com o mundo”.

A TRIBUNA, 1º de maio de 1977.

OSWALD DE ANDRADE FILHO

OSWALD DE ANDRADE FILHO

Oswald de Andrade Filho não usa apenas o nome famoso que herdou. Aos cinquenta e poucos anos carrega já uma vida de muitas lutas e algumas vitórias. Escritor, folclorista, artista plástico, seus escritos, seus estudos e suas obras são todos peças sérias do melhor quilate. Nonê, como o chama o velho e famoso pai Oswald, quer agora criar o Museu de Artes e Técnicas do Mar “Renato Almeida”. No Guarujá, cujo turismo de alto nível poderia sustentar o Museu, que se destina a abrigar exemplares da fauna marinha, peças e instrumentos do homem do mar, habitações de pescadores, biblioteca especializada em assuntos marinhos, filmoteca e discoteca, um amplo restaurante turístico (com especialidade em peixes, ostras, siris, caranguejos, tartarugas do mar, etc.).

A Prefeitura do Guarujá já doou o terreno para o museu. O Governo do Estado, através do Conselho Estadual de Cultura, estuda a proposta de Oswald de Andrade Filho. E é ele mesmo quem explica sobre seu museu:

Há um homem do mar digno de homenagem: o nosso.

A costa do Brasil é imensa, imensas são as nossas praias, é nesse cenário que o nosso pescador nasce, vive e morre.

Não são poucas nem pequenas as lutas travadas de nosso país em defesa do imenso patrimônio marítimo, uma de nossas maiores riquezas. As indústrias pesqueiras multiplicam-se, tornam-se cada vez mais atualizadas, fazendo, aos poucos, desaparecer o velho e querido pescador primitivo, aquele que, no dizer de Dorival Caymmi, “não precisa dormir para sonhar”, aquele que vê o sol despontar no horizonte saindo, seja com sua jangada, saveiro ou canoa, que volta para o racho com o coração cheio de canções e de estórias que conta nas noites estreladas ao seu filho ou à sua namorada – Iemanjá, Alamoa, os monstros das profundezas que povoam a vida desses homens.

Homenagem

É esse homem que queremos homenagear, criando o Museu das Artes e Técnicas do Mar. Inicialmente será o trabalhador do mar que festejaremos, construindo um lugar em que seus instrumentos de trabalho possam ser conservados, guardados, protegidos, estudados; em que suas lendas, canções possam ser recolhidas e conhecidas por todos aqueles que queiram contar sua beleza, sua dor, sua alegria; onde elas possam ser estudadas artística ou cientificamente, e se conservar, para as futuras gerações, a sua imagem viva e heroica. E o que há de melhor para prestar essa homenagem do que um museu, um museu no qual as futuras gerações possam conhecer e sentir toda a sua vida, suas estórias, suas canções de amor ou desespero, sua religião, suas preces tão belas quanto a figura de Maupassant que, quando sua angústia ia diretamente ao coração de Deus, sem passar pela boca.

Depois, uma vez iniciada a viagem, ampliá-la-emos, sempre em direção maior, ao mais completo. Assim trabalharemos até transformarmos o Museu das Artes e Técnicas do Mar no grande Museu do Mar.

Local

Escolhemos Guarujá para localizar o Museu devido ao fato de ter aquela estância condições de sustentar uma organização como essa. Não somente a população local, mas também e principalmente o turista em baixa ou alta temporada tem poder aquisitivo e curiosidade suficientes para tornar o museu um dos pontos altos do turismo paulista.

Considerando, não somente a parte curiosa, mas também a parte do restaurante que será construído no edifício em lugar apropriado, assim como bar e piscina, no terraço, cremos que o museu não poderá ter melhor local do que Guarujá.

Sabemos que os frequentadores daquela cidade são apreciadores da boa cozinha, o que, certamente encontrarão nessa organização, pois ela será especializada em pratos do mar tratados da maneira mais requintada possível, o que auxiliará a manutenção do museu.

Despesas

Não tendo sido feitos estudos para a construção do museu, não poderíamos avaliar exatamente o custo da edificação. Temos, entretanto, que esclarecer que será necessário realizar-se um concurso para o projeto. O concurso será fechado (cinco arquitetos convidados), que realizarão os projetos apresentados a seguir ao júri, este composto de cinco elementos de reconhecida competência.

Para tanto será necessária uma verba especial e reduzida que custearia as primeiras providências.

Terreno

Dando grande demonstração de espírito de colaboração o então prefeito de Guarujá, Jaime Daige, atendendo a uma solicitação do FUMEST e do Conselho do Patrimônio Histórico, Artístico e Arqueológico Estadual cedeu um terreno em local magnificamente situado, com frente para uma pequena praça de onde se avista parte magnífica da cidade e da praia. Esse terreno situa-se em praça que, ajardinada, tornar-se-á um dos belos recantos da cidade.

O Museu

O Museu de Artes e Técnicas do Mar deverá, não somente apresentar o seu acervo no interior do edifício. O caráter sessa instituição já obriga os seus organizadores a colocar algumas de suas peças na parte externa e até ocupando a praia que fica em frente ao terreno. Somente assim teremos a possibilidade de dar vida e autenticidade à iniciativa. Essa parte inclui o aspecto turístico da realização que é dos mais importantes no caso.

1.       Será necessário ajardinar toda a praça em frente à qual o terreno se encontra para que, desde aí, o visitante posa encontrar-se em ambiente que prepare seu espírito para a visita que irá fazer no interior do edifício. Esse trabalho ficará a cargo de paisagista.

2.       Na praça serão colocados os diversos tipos de barcos do litoral, desde o norte até ao sul. Essas embarcações deverão estar sempre em perfeito estado e sob o cuidado de gente especializada que possa acompanhar turistas em passeios pelo mar. Não devemos esquecer-nos de que os passeios serão pagos, razão pela qual deveremos pensar num tipo de maneira de controlar a cobrança que deverá ser efetuada no local.

Safaris

Além desses passeios serão organizados safaris marítimos para possibilitar ao turista a realização de uma pesca bem orientada acompanhada por pescadores capacitados. Essa atividade também constituirá uma fonte de renda que em muito auxiliará a manutenção desse museu.

– Na praça ajardinada e preparada para esse fim, serão colocadas as diversas habitações praianas que serão construídas sob a orientação de elementos especializados; e conhecedores do assunto. Para tanto solicitamos das comissões de Folclore dos outros Estados, plantas e orientação indispensáveis para o bom êxito da iniciativa. Há como sabemos, diversos tipos de habitações e a sua presença é de grande efeito decorativo. Em alguns casos o plano deverá ser ampliado, pois, ao lado do rancho, existe às vezes, pequena construção de sapé na qual se guardam os instrumentos necessários tais como: covos, redes, cordas, etc.

– O interior dessas habitações deverá apresentar toda a vida cotidiana do homem do mar. Desde o seu amanhecer, seus primeiros passos, seus primeiros movimentos com sua família deverá ser mostrado por peças colocadas no rancho como se fossem habitados, incluindo-se, quando for o caso, altares de Iemanjá, mobiliário, cerâmica, fogão, panelas, etc. no interior dos pequenos ranchos onde os barcos serão abrigados estarão todos os objetos necessários para o trabalho.

Objetos

Passada esta parte estaremos entrando no edifício que será construído a fim de abrigar outros objetos de uso do homem do mar. Esta parte será estudada por museólogos e folcloristas. Os primeiros para que possamos dar arquitetos orientações sobre a organização do espaço. Os segundos para ter a certeza de possuirmos uma coleção de peças autênticas. Esta parte será dividida em painéis móveis que serão colocados segundo a necessidade de exposições que terão para enriquecer os ambientes, fotografias ampliadas ou outro qualquer elemento que auxilie a enriquecer o aspecto geral. Nesse local haverá um setor dedicado à realização onde ex-votos serão exibidos e apresentados conforme as necessidades.

Em ponto previamente estudado estará localizada a administração que funcionará independentemente do resto da exposição. Nesta parte haverá o gabinete do diretor geral, sala de espera, sala para o diretor museólogo.

O setor técnico dividir-se-á como segue: sala de pesquisa e oficina para reparos.

A biblioteca iria sendo formada conforme as possibilidades.

Assim também a discoteca que se comporia de coleções de fitas (pesquisas, levantamentos, conferências, etc.) e discos de músicas populares e eruditas inspiradas no homem do mar.

A filmoteca é outra divisão essencial para o bom funcionamento do museu. Nela estarão filmes sobre qualquer assunto do mar, assim como “slides” ou fotografias.

Para que tudo seja bem aproveitado, haverá um auditório aparelhado para a projeção de filmes e “slides”. Ali serão feitos simpósios, conferências e outras reuniões culturais.

Um dos elementos essenciais para que se possa efetuar um intercâmbio entre outras entidades, é um apartamento completo que possa hospedar cientistas que necessitam passar tempos estudando o homem do mar ou realizando algum trabalho sobre o assunto.

Restaurante

Em lugar apropriado será colocado um restaurante do qual duas paredes serão aquário que dará à sala grande beleza. Acima do restaurante haverá um grande terraço no qual poderá ser colocado um à beira de uma piscina que dará ao turista a possibilidade de descortinar o panorama que é dos mais lindos.

Coleta

Este é apenas um projeto, digo, anteprojeto. Temos a consciência das dificuldades que teremos que enfrentar por isso, poderemos realizar um trabalho por etapas iniciando-se modestamente na coleta de material até que se tenha atingido uma segurança econômica que nos permita desenvolver a ideia geral – concluiu Oswald de Andrade Filho.

A TRIBUNA, 11 de abril de 1971.

PERFIL

Alto, esguio, amorenado claro, cabelo esbranquiçando nas cãs, extremamente maneiroso e simples, educado e duma lhaneza que já não existe mais, Washington de Oliveira – “seu” Filhinho – é uma figura popular e importante de Ubatuba. Não há quem não o conheça, ou necessitou dele, nos últimos cinqüenta anos, seja turista ou ubatubense. 

Farmacêutico dedicado e humano, dirigiu por mais de cinqüenta anos a Farmácia do Filhinho, no Largo da Matriz, atendendo a uns e outros, indistintamente, de 12 a 16 horas por dia, sem descanso, sem férias, sem nunca negar ou falhar numa medicação. 

Durante cerca de duas décadas, quando Ubatuba não teve médico, oficial ou particular, Filhinho fez as vezes e de tudo no campo da medicina, que era sua vocação, mas que, por azares da vida, não pode estudar. 

Há dois anos o bravo combatente aposentou-se, e todos ficamos privados do “seu” Filhinho da Farmácia. A Câmara Municipal prestou-lhe então significativa homenagem, em nome da cidade reconhecida e de milhares – pode-se dizer, três gerações – de pessoas exemplarmente atendidas. Mas até hoje – pois o sangue do bem-servir ainda lhe corre nas veias – vemos “seu” Filhinho atender em sua casa, ao lado de D. Mocinha, casos urgentes e que aparentemente não têm solução: um espinho atravessado numa garganta, uma queimadura forte do sol, um anzol que entrou por inteiro na mão de um turista desavisado. Para tudo Filhinho tem remédio e alento, com sua sabedoria fora das bulas. 

Na política Washington de Oliveira também se destacou, como Prefeito Municipal em dois períodos, de 1936 e 1945. Basta que se diga que Filhinho foi Prefeito em épocas duras, quando Ubatuba estava quase abandonada,administrando com elevação e discernimento, saindo reconhecido e estimado pela população. Quando Francisco Matarazzo Sobrinho assumiu a Prefeitura, em 1965, foi com o apoio de Filhinho e de outros ubatubenses decepa que pode cumprir com visão histórica a sua gestão hoje por todos reconhecida. 

Homem associativo e afável deve-se a Filhinho, ainda, em Ubatuba, inúmeras iniciativas e apoio entusiasta a entidades cívicas e culturais: Câmara Municipal, Museu Hans Staden, Lions Clube e o novel Instituto Histórico e Geográfico são associações em que Filhinho pontifica e presta serviço, pois ele sempre soube dar e doar, dedicar e participar, servir sem servir-se. Filhinho é, antes de tudo, cidadão prestante, católico convicto, amigo dos amigos, chefe de numerosa e simpática família. 

Aos 71 anos, disposto como sempre, “seu” Filhinho não parou. Dedica-se mais à família, às viagens e às leituras. E não parou de escrever, fatos da vida antiga de Ubatuba, estórias da cidade, recordações e anotações, - não fora ele um observador atento, todos estes anos um partícepe destacado de muitos eventos. 

Assim, pouco escapou ao estudo e à perspicácia do jovem filho do Cel. Ernesto de Oliveira, que um dia subiu ao planalto para estudar na Escola de Farmácia de Pindamonhangaba; ao rapazinho que, voltando á sua terra, e antes de abrir a já agora célebre FARMÁCIA DO FILHINHO, foi Agente do Lloyd Brasileiro, escrivão de Polícia e professor de preparatórios. 

Filhinho aí está, felizmente, com seu livro de registro, lembrando coisas, colocando Ubatuba no devido lugar e respeito, recordando fatos, por exemplo, desde quando seu pai foi prefeito (primeiro prefeito da cidade) em 1908. Esse Filhinho, de avô francês, Jean Marie Giraud, que faz a gente pensar no fausto de Ubatuba, na época gorda do café, que do Vale do Paraíba aqui vinha para ser explorado, quando ninguém supunha tivesse a cidade o crescimento caótico e imprevisível de hoje. 

Filhinho não é um historiador, nem falso historiador. É tanto quanto isso, um contador autêntico, um registrador exato dos feitos de Ubatuba. Aí está, em seu livro, o acervo formidável de notícias da história ubatubense, de 1500 a 1937. Aguardemos agora o seu próximo trabalho, já em preparo, relatando episódios contemporâneos, que envolvem figuras maiores, como Felix Guizard Filho, Máximo de Moura Santos, Mariano Montessanti, Idalina Graça, Willy Aureli. Leão Machado, Ciccillo Matarazzo, Wladimir Piza, Gastão Madeira, Olindo Chiafarelli e tanto outros. 

Filhinho acha também que não é escritor. Não é, ou não seria, mas faz as vezes. Conta com graça e elegância a quem em moço lia os clássicos e falava francês. A este volume seguir-se-á “A FARMÁCIA DO FILHINHO”, e, façamos votos, mais alguns. 

Pudera cada cidade, como Ubatuba, ter um Washington de Oliveira, para que suas estórias, hoje dispersas, amanhã reunidas, se constituam na História que fica. 

Parabéns, e, em frente, “seu” Filhinho. 

Luiz Ernesto M. Kawall Sitio Sapé, Tenório – UBATUBA (Carnaval de 1977)
 
Este texto se encontra às fls. 9/11 do livro Ubatuba Documentário de Washington de Oliveira.

MADALENA, ALMA BOA DO SERTÃO

Desde que conheci Ubatuba, nos primeiros anos dos 50, descobri também que pessoas abnegadas cuidavam das gentes esquecidas e carentes da cidade e dos sertões inóspitos até Paraty. A cidade, na década de 50 ainda mantinha as características de uma pequena vila. O serviço de transportes era bastante incipiente, contando apenas com a velha estrada de rodagens até Taubaté, ainda com o mesmo traçado de mais de um século, a mesma que servia os tropeiros vindos do Vale do Paraíba. 

A principal via de transporte entre os caiçaras eram os caminhos do mar singrados por embarcações toscas, que num ir e vir atendia toda espécie de serviço, tanto os de cabotagem domiciliar quanto os do comércio do pescado. Eram traineiras, canoas de voga, impelidas por fortes pescador-remadores e uma grande quantidade de embarcações costeiras, transformando a foz do rio Grande de Ubatuba num constante ir e vir de pessoas e embarcações. 

Nesse aspecto merece destaque o trabalho realizado pelo padre João Bell, pároco de Ubatuba na década de 40, um alemão de aspecto forte, sangüíneo, muito saudável, que semanalmente saía no barco São Paulo, em serviço pastoral, partindo da Prainha, para chegar até a Almada, levando gêneros alimentícios e educação escolar com o transporte de professoras da rede municipal que serviam as comunidades caiçaras. Também socorria as famílias, levando assistência médica e social aos ermos dos sertões e praias distantes. Nessas visitas era recebido carinhosamente pelas populações esquecidas, praianos e sertanejos. 

Depois, conheci Virginia Lefevre, mulher admirável, que tinha casa de férias na praia do Itaguá. Radicando-se em Ubatuba desenvolveu logo, ao lado do seu ilustre marido, o engenheiro Waldemar Lefevre, trabalhos sociais ligados ao artesanato, higienização, educação e às ações de saneamento geral. As ações tiveram início no bairro do Itaguá. Em seguida, em toda a região a Ubatuba poderia se ver alguma intervenção de Virgínia Lefèvre. Em mais de 30 anos de atuação humanitária, Dª Virginia implantou as diretrizes de educação sanitária, tendo instalado até mais de mil fossas sanitárias no litoral norte, numa atuação exemplar que repercute até os dias atuais. Ao criar a SPES – Sociedade Pró-Educação e Saúde, deu um passo exemplar para que as questões ligadas à saúde, à educação escolar básica e ao sanitarismo das famílias caiçaras fossem encaradas em Ubatuba como ações de verdadeira responsabilidade social. 

Também na época que conheci Ubatuba, havia a ALA – Assistência ao Litoral de Anchieta – uma instituição católica comandada pelas Cônegas de Santo Agostinho, congregação de freiras fundada por madre Alix e com sede na Bélgica. Enquanto mantidas em Ubatuba, prestaram inestimáveis serviços na área da educação exclusivamente feminina, com regime de internato e externato bem como levavam assistência social a todos os pontos do município. Ali conheci, entre outras, a Irmã Inês, que posteriormente chegou a ser a superiora geral da congregação e a irmã Pedrina, superiora da congregação em Ubatuba. Entre outras freiras posso destacar a inesquecível irmã Maria da Glória, freira de notável cultura, que ministrava aulas de piano, canto orfeônico além de línguas estrangeiras, como o francês. Elas, as freiras, estavam em todos os lugares, vendo, assistindo, dando remédios e conforto aos carentes e às comunidades abandonadas. À época do prefeito Ciccillo Matarazzo as equipes da ALA se uniram às ações municipais para difundir e propagar a saúde em todo o município.

 Posteriormente, fruto dessa geração dos anos 40 e 50, surgiu no sertão do Ubatumirim a figura quase esquálida de Madalena dos Santos, filha de um pescador aposentado do Itaguá, Praxedes Mario de Oliveira e de Dª Ritinha, sua mulher. A jovem, de fala baixa e jeito simples de caiçara, foi trabalhar no posto médico do Ubatumirim, ao lado de Jorge, seu marido, marinheiro e plantador de bananas daquele sertão. 

Ali Madalena, a par de outros cursos que fez em São Paulo, Taubaté e outras cidades, num total de 30 (!), desenvolveu um tipo de trabalho pessoal, a começar em sua casa mesmo. Quantas vezes a vi na pequena saleta da casinha onde morava, atender moradores doentes, gente acidentada, mães grávidas, lavradores picados por cobras venenosas, “afogados” no rio Itamambuca,... etc, etc, a todos atendendo com carinho, e fazendo uso de sua imaginação de caiçara valente. Muitas vezes Madalena levava o pessoal, em casos mais graves, até Ubatuba, a 30 quilômetros do sertão, para uma consulta urgente com o dr. Juscelino, na cidade, ou com o dr. Chiaffarelli. O velho Chiaffa, como era tratado pelos amigos, antigo pediatra de São Paulo e fundador da moderna pediatria do Brasil., foi viver seus últimos anos em sua casa de praia nas Toninhas, ali atendendo aos mais necessitados, pobres e crianças, sempre de graça, até morrer, no início dos anos 80. Por proposta nossa seu nome foi dado ao Posto Médico do Ubatumirim, com o assente de Madalena – mas, depois de alguns anos, modificado por um prefeito eleiçoeiro qualquer. Coisas inexplicáveis que só explicam o que não carece explicação. 

Além do trabalho voltado para as lides da saúde, Madalena, como líder comunitária, desenvolveu também campanhas de alfabetização e incentivou o plantio de bananas, em especial com os bananicultores do sertão da região norte, de cuja associação foi defensora e presidente. 

 E seu trabalho continua na senda diária, ininterruptamente. Como mulher caiçara, esposa e mãe; como líder comunitária, orientando os caiçaras dos sertões e das praias, suas famílias, seus jovens, suas crianças. Pode até parecer trivialidade inventariar as inúmeras necessidades que ainda nos dias de hoje são vivenciadas pelos habitantes dos sertões e das praias distantes da região norte de Ubatuba. Mas não há como vencer esse estágio de carências múltiplas das populações distantes sem a atuação contínua e presencial de agentes verdadeiramente empenhados neste propósito como é o caso de Madalena de Oliveira. 

Luiz Ernesto Machado Kawall

24 horas no universo feérico de CARMEN PRUDENTE

- Senhor, ajudai-me a viver o dia de hoje. 

Carmen Prudente acordou às 7:15, fez a reza diária que um velho padre do sul lhe ensinou. Não dormiu muito bem, anda meio fatigada e preocupada, desde que Médici foi ao Hospital do Câncer. O presidente disse que dará um milhão inicial para a construção do Pavilhão nº 2. Mas, e os outros dezessete milhões necessários à obra? A Rede Feminina instalada em 183 municípios, as 174 voluntárias da Capital, a “Quitandinha” do próprio Hospital - que só no ano passado arrecadou uns 300 mil cruzeiros - não poderão arcar com tanta responsabilidade. Ademais, Carmen anda cansada e rouca, as aulas, palestras e telefonemas se sucedem, o médico quer que ela pare um pouco, pode ter um esgotamento como o do meio do ano. Corre os olhos pelo “Estadão”, os acontecimentos do Chile e da Argentina a preocupam mais, a morte de Neruda e de Ana Magnanai - de câncer. Já toma o primeiro café com leite do dia, pão e manteiga, geléia, ela mesma preparou tudo, vive sozinha, não tem nem empregada (só uma arrumadeira). 

O telefone está cocando no apartamento onde mora, cheio de lembranças de viagens e do Prudente, o marido que se foi há 8 anos, - um casamento felicíssimo, segundo as amigas, e o que se completava. 

- Alô, é você Majô... Passei mais ou menos... Sonhei com o Prudente, veja você, uma coisa maravilhosa, estava tudo escuro, de repente ele saiu de dentro e ficou tudo colorido, ele ria e veio até mim de braços abertos me buscar... Como eu não gosto de não sonhar... Gosto, sim, dos fenômenos espirituais, até de parapsicologia, converso sempre com um professor, você sabe... Não, não, não, reencarnação não acredito, depois, já basta agüentar esta vida, não acha?... Sou muito religiosa, sim... Com firmeza de caráter, fé sincera e bom humor pra agüentar as coisas ruins, a gente suporta qualquer tranco... Eu tenho uma fé profunda, sei peneirar o bom do mau, comigo, os sepulcros caiados não pegam... Veja a Igreja, como resiste a intrigas e pressões... As baixezas aparecem num país, estouram em todos, há uma força organizada, mas Deus com sua providência divina a todos socorre na hora certa... Se eu sonhar outra vez com o Prudente e acordar, fecho os olhos e s aperto, êta sonho bom, Majô. 

Majô é a Maria José da Cunha Carneiro, uma das amigas íntimas de Carmen Prudente. Ela conhece os dois desde pequena, amizade de família. Carmen conheceu Antonio em 1938, num congresso médico na Alemanha, ele chefiava a delegação brasileira. Paulista, de descendência ilustre, seu avô, Prudente de Moraes, chegara à presidência. Ela, jornalista gaúcha, era também nascida em berço ilustre - o pai, Heitor Annes Dias, médico conceituado, o avô materno, Julio de Castilhos, condutor de revoluções no Sul. A mãe, uma grande dama, culta, fina e bela, cantada até hoje em prosa e verso nos pampas, Carolina de Revoredo. Majô vai passar no Hospital mais tarde, é voluntária, combinam e se despedem afetuosamente, o tratamento é de “tu” e “ti”, que Carmen usa às pessoas de sua maior afeição. 

Jurandir já está com o carro lá em baixo, ela gosta e brinca com o motorista do Hospital. Ele vai levá-la agora ao dentista; Carmen cumpre pacientemente o ritual, as três injeções não doem, mas dão aquela sensação de dormência boba na boca, uma azar, logo hoje que tem reuniões e palestras pela frente. Às 10 horas está na Swissair, fala em Frances com o gerente, está agradecendo a passagem que a empresa suíça deu à Rede, para uma noite em Catanduva em benefício do Hospital. |Passagem até a Europa, ida e volta, num DC-10. 

- Ah, meu filho, estou louca pra andar num avião desses... Vamos ver se dou sorte, este ano vou à Europa, a convite, com tudo pago, senão não aceitava... Nunca viajei com dinheiro da Rede Feminina... Vou falar num congresso em Lion, sobre a luta contra o câncer no Brasil, a convite da Organização das Voluntárias da Europa, sou a única representante da América do Sul... Depois, sigo para Mônaco, há lá uma reunião internacional para se discutir sobre a educação popular em assuntos de câncer, tema de minha especialidade, isso é quase que minha vida... E finalmente Portugal, no Porto, a convite da União Internacional contra o Câncer, inauguro o Instituto de Câncer local... Sou uma viajante emérita, conheço os cinco continentes, escrevi uns dez livros de viagens reunindo minhas reportagens da “A Gazeta”... Pena que o grande incentivador delas não possa amais lê-las, o Prudente lia e ria... Tantas confusões armava mundo afora... Aqui no Brasil, nos últimos dois anos e cinco meses, viajei 35.518 quilômetros, para debater, falar, tratar de assuntos do Hospital e da Rede Feminina de Combate ao Câncer... Leio e recorto tudo sobre todos os países, principalmente os que não conheço - um dia chego até eles. 

Já está na hora de rumar para o Hospital, cujo Instituto Central foi inaugurado em 1953, com 300 leitos, e onde funcionam a Associação Paulista de Combate ao Câncer (fundada por Prudente em 1934), a Rede Feminina que se estende a 183 municípios, a Triagem de Espera com 50 leitos, tudo funcionando a tempo e hora, nos prédios cinzentos e bem ajardinados, ali na Liberdade, os prédios incrustados na rua revolta pelas obras do Metrô e onde desfilam as boates e bistrôs da colônia japonesa que ali reside. 

Carmen entra como passo leve e rápido, cumprimenta porteiro e atendentes, sobe ao andar onde estão reunidos engenheiros e arquitetos - faz oito anos, faleceu Rino Levi, que projetou o Instituto, uma placa em sua homenagem é descerrara. Todos se reúnem em seguida para traçar diretivas quanto á construção do segundo pavilhão do Hospital, a capacidade será dobrada, se a obra chegar ao fim - com o dinheiro que Carmen Prudente se encarregará de arranjar. Agora ela passa pelo Pavilhão Infantil, todo decorado com desenhos originais de Walt Disney, afaga crianças com extremo afeto. É quase uma da tarde, é hora de chegar ao seu escritório, iniciar o atendimento vespertino, resolver mil casos, ver e prover, ouvir e resolver, dar e decidir, transmitir alegria e paz. Aurora, a secretária, senhora disposta e voluntária também, dá à Carmen Prudente o abrigo rosa, que ela coloca sobre o tailleur das andanças matutinas. No braço, as insígnias da Rede, as cinco cruzetas e os dois botões - vinte e sete anos de lutas à frente da assistência do combate ao câncer. Os telefones são três, um do PBX, dois outros diretos. Um deles já toca, manda vir o almoço, simples frugal, come ali mesmo, a bandeja sobre a mesa apinhada de papéis, lembretes, recordações de viagens, notas, fotos, cartas, caixinhas, o móbile alemão, anjos de Natal, o escritório é ao mesmo tempo sala de atendimento, biblioteca (vasta e variada) e - Carmen não gosta do termo - um museu bem organizado com mil condecorações e diplomas dela e de Antonio Prudente. Judith Celestino fala de problemas do Clube do Siri, com 20 mil crianças, “a coisa mais linda que temos aqui”, diz Carmen, que já atende o outro aparelho. É Iolanda Cerello. Estás organizando uma festa, cuida da recreação dos doentes. A Hebe vem? Ótimo... Veja se o Consulado Americano empresta uns filmes coloridos, melhores, cinemascope, coisa assim... Em meio à mesa revolta, desenhos de crianças, a frase anotada de Santo Agostinho; “Ele está presente, quando a solidão nos pesa, nos ouve, quando só o silencio nos responde, nos ama, quando todos nos abandonam”. 

Maria Tereza Esteves, presidente da Rede em Itu, entra com duas companheiras voluntárias. Trouxe um cheque de Cr$ 14 mil, contribuição da Prefeitura e de firmas locais para a campanha. Carmen sorri - o sorriso que derruba barreiras, conhecido de norte a sul do país - fala, agradece. 
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- Outro dia, uma Prefeitura enviou 20 mil cruzeiros... Também recebemos contas de luz de toda parte... Brinquedos, móveis, utensílios, roupas, aceitamos tudo, cada gesto dos que dão são prova de amor e de solidariedades humanas... Estamos aqui para trabalhar e servir, não vemos barreiras pela frente, estamos hoje em dia espalhados por 17 Estados... O mundo de Deus é bem feito, mas tem suas misérias e provações, e nós temos uma missão a cumprir, a de minorar o sofrimento dos doentes e infelizes... O ideal é suportar a vida com firmeza, muita fé e bom humor... Tenho minha particular própria, meus problemas íntimos e cotidianos, mas, aqui, sou a mulher jovial de Jung e outros estudiosos... Sou obrigada a ser alegre, a fazer do sofrimento que vejo à volta, a minha felicidade, senão a de muitos... Prudente era assim também, tinha uma fé profunda e cristã... Ele era, sobretudo, um homem bom. À noite, em casa, pensando em seus doentes, sentava-se ao piano, compunha lindas canções... Até hoje, só escrevo ou traduzo, ouvindo música... Rosita, como foi o movimento da Quitandinha, hoje? 

Carmen atende mais telefonemas e muitas pessoas ainda. José Maria Homem de Montes, atual presidente da APCA, dá noticias, cobra outras. Avisa que José Ermírio de Moraes está entrando de rijo na luta contra o câncer e atual entidade pode virar Fundação. U’a mulher humilde traz presentes para as crianças cancerosas internas. Outra veio de Londrina, quer visitar um doente, o dia não é de visita, Carmen tem de encontrar a fórmula certa para contentar a todos. Lelé, um servente que está com os Pudente há 20 anos, entre, vem buscar a foro do Presidente abraçando Carmen, no dia da visita recente. “Ainda não fui a um lugar duas vezes em meu governo, só aqui”, disse Médici à presidente da Rede. Ela se emociona, conta detalhes da visita presidencial. Majô chega, avisa que o carro já as espera, são cindo horas. É hora de irem a Santos, onde Carmen vai falar à noite, a convite do Rotary: suas viagens, idas e vindas por esse mundo afora, ocupando o tempo, sendo útil, sempre positiva, franca, leal, culta, inteligente, afetuosa, depreendida, com a coragem que Deus lhe deu, no pequeno corpo de gaucha miúda e morena, firme e decidida, jovem e disposta para sempre a grisalha de amada cabeça que mil gentes procuram ali na José Getúlio. 

A Carmen que chega a Santos faz uma conferência com muita graça - as peripécias no Japão são realmente pitorescas e divertidas - e que logo após diz à repórter, grave e bela, abrindo muito os olhos cor de jabuticaba, que a luta continua, continuará a viver como até hoje, sente-se feliz trabalhando em benefício do próximo, nós todos. Já são quase onze da noite, o rosto de Carmen se ilumina. 

- O câncer não é uma, mas muitas doenças... Também dá em criança e não pega por contágio... Tratado desde o início tem cura, sim... As pesquisas, em todo o mundo, vão adiantadas... Um dia, ele será curável... O Prudente acreditava que será ainda neste decênio... Eu tenho fé em Deus que sim. 

Ela volta agora ao apartamento da Cincinato Braga, o dorme-não-dorme até as sete da manhã, na pequena cama em que dorme agora, sob aquele mesmo crucifixo que o Prudente gostava, o marido companheiro, alma nobre, com quem tenta sonhar agora, um sonho colorido e feliz. 

LUIZ ERNESTO Especial para CLÁUDIA
27 de setembro de 1973.

“CICCILLO”

Francisco Matarazzo Sobrinho, o “Ciccillo”, foi prefeito de Ubatuba, de 1965 – ganhou a prefeitura em eleição direta – a 1968, se não nos falha a memória. A princípio combatido, aos poucos se firmou e saiu consagrado, cantado em prosa e verso. 

Naquele tempo, a Prefeitura não tinha recursos em Ubatuba era uma cidade agradável, mas sem infra-estrutura. “Ciccillo” soube agir, com equipe de primeiríssimo nível - Wladimir Piza, Pascoal Fama, Morgado, Cunha Lima, Joaquim Barbosa, Claudionor dos Santos, Cunha Jr., Paulo Florençano, Da Motta, e outros, inovando a administração de maneira notável. Em São Paulo, em frequentes viagens, conseguiu nos governos estaduais – Ademar, Laudo, Abreu Sodré, especialmente este – os recursos necessários às obras públicas de Ubatuba. 

Deu água à cidade, escolas, asfalto, turismo planejado – e a chefe era a incrível e bela Lia de Barros – abriu estradas nos bairros distantes, e, sobretudo, preparou Ubatuba para ser a “Pérola do Litoral Norte”. Suas primeira providências, no dia em que assumiu, foi comprar, às expensas próprias, um caminhão de lixo, um trator, além de móveis condizentes para o gabinete do prefeito. Em sua gestão, construiu outra sede para a Prefeitura e fez aprovar, contando já com a Câmara de Vereadores, o Plano Diretor da cidade. Fez o estádio de futebol, incentivou o artesanato, criou o Museu Histórico “Hans Staden”, projetando nacionalmente esta cidade como nunca antes acontecido. Representou ainda Ubatuba em certames internacionais, ele que, criador da Bienais de Arte, tinha projeção mundial. 

Há todo um folclore, casos, incompreensões e situações criadas por “Ciccillo” em Ubatuba, levadas pelo seu temperamento lhano, sua doce figura, sua teimosia em construir. Era um idealista e, em sua casa, na Prainha, reuniam-se grã-finos e gente do povo, como Idalina Graça, fidelíssima amiga, vereadores e comerciantes, a todos atendendo com simplicidade franciscana. Fica, sem dúvida, ao lado de Jordão Homem da Costa, Salvador Correa de Sá, Gastão Madeira, Felix Guizard Filho, Licurgo Barbosa Querido, Washington de Oliveira e outros, como dos grandes construtores de Ubatuba, em todos os tempos. Um dia, esperamos escrever mais sobre esse brasileiro ilustre, homem bom, amigo e companheiro fidalgo. 

Por hora, fica aqui este registro, na hora em que a Prefeitura Municipal o homenageia, nos 10 anos de sua morte. Ele nos dizia que, depois que morresse, ninguém mais se lembraria dele... “apenas 3 linhas, se tanto, nos jornais...” 

Não, “Ciccillo”, você é lembrado hoje e terá, sempre, a gratidão dos ubatubenses, que cultuam sua lembrança e sua memória eterna. 

Nesta homenagem que lhe presta a Prefeitura Municipal, através da Seção de Cultura, com a exposição “O Homem e a Obra”, será outorgada a medalha “Ciccillo Matarazzo” àquele que foi seu “oficial” em Ubatuba quando prefeito, Wladimir de Toledo Piza. Graças a iniciativa de Manoel Esteves da Cunha Junior - o Neco – e Flávio Girão Carvalho, este evento é trazido para Ubatuba, no Sobradão do Porto. 

 Piza e “Ciccillo”, dois grandes administradores para nossa pequena Ubatuba!!! O ECO UBATUBA

BOM DIA, COLIBRI

1. Num dia distante, Ubatuba viu chegar aqui, vinda da Ilha Bela, a figurinha frágil de Idalina do Amaral Graça, que, logo, se integrou à vida da cidade, tornando-se ao fim de sua vida terrena, personalidade notável, fascinante e querida por todos. Idalina era pequena por fora, mas, forte por dentro. Foi seguidamente dona de casa, comerciante, hoteleira, radialista, defensora dos pobres e espiritualista iluminada, capaz de transmitir mensagens e dar bênçãos aos mais aflitos. De “Ciccillo” Matarazzo a Washington de Oliveira, de Flavio Girão Carvalho ao Da Motta e à Isabel, de Felix J. Francisco a Wladimir de Toledo Piza, de Paulo Florençano ao autor destas linhas, a tantos e tantas gentes, a Velha Sábia, de que falava Jung, iluminou com a sua graça e a sua sabedoria. 

 2. E fez bem, com o exemplo de sua vida simples – a dar tudo, mas tudo mesmo, do que tinha ou ganhava – ela só vivia com a roupa do corpo – aos mais necessitados, e com a iluminura radiosa de seu jeito de caiçara autêntica, com suas gargalhadas e contando estórias do mais humano sabor. 

3. Foi poetisa e escritora – seu excelente “Bom dia, Ubatuba”, já está em segunda edição, enquanto a Prefeitura Municipal, em justa homenagem do prefeito Pedro Paulo, prepara o livro sobre sua vida. O Governo do Estado, também a homenageou, dando o nome da nossa escritora caiçara – que foi amiga, de era admirada entre outros, por Monteiro Lobato – à escola do bairro do Ipiranguinha. E dentro de pouco tempo, no “Idalina Graça”, será inaugurada a Biblioteca “Monteiro Lobato”, que servirá aos escolares e adultos de todo o bairro. É a Idalina, velha-de-guerra, presente, uma vez mais, entre as crianças a gente simples de Ubatuba, que adotou e que tanto amava. 

4. Para os que ainda têm dúvida da presença espiritual de Idalina Graça entre nós, hoje, aqui vai, por lembrança de Felix J. Francisco, esta mensagem ditada pelo espírito de luz de Idalina, à sensitiva Valéria, em sessão realizada em sua chácara no Perequê-Açú. É uma mensagem de saudade e de paz, com todo o estilo e a vibração da grande amorosa, que nos olha e nos protege lá de cima – agora, sempre, como um “colibri de asas douradas”. 

Ei-la: “Quero mandar um recado para os filhos muito queridos, que Deus me deu numa manhã maravilhosa na praia. Eu encontrei uma família maravilhosa, e hoje eu, num mundo diferente, sinto muitas saudades, gostaria de estar junto de vocês e só posso mandar minhas vibrações, minha saudade, meu amor, meu amor e pedir apo Pai Nosso que nos abençoe e dê paz.

Bendita flor que perdeu o perfume, esse perfume se transformou em semente e vai se transformar em outra flor desabrochada, e um dia vira saudade. Eu virei um colibri de asas douradas, isso é para minha família. 

Meu filho Da Motta e Isabel. Eu também cumprimento meu aparelho. Meu recado para ela: muitas vezes num crepúsculo eu me encontro com José e Gerson e outros amigos.

Se possível levar meu abraço ao meu amigo Wladimir de Toledo Piza. Também ao Amauri, meu amigo. Felix você me tirou de tantas.

Vou deixar meu aparelho, vou bater minhas Asas Douradas.

sábado, 8 de abril de 2023

LACERDA, ÚLTIMO ENCONTRO


“Hoje tenho tanto que dizer. O que fiz foi parte infinitamente pequena do que nasci disposto e talvez capaz de fazer. Predestinado, não. Mas, pré-formado. Pude fazer pelo menos o suficiente para mostrar que podia fazer mais”. (Carlos Lacerda, 1976 – in “A Casa do meu Avô”). 

Dia 5 de maio de 1977 fui ao Rio, a serviço profissional, e procurei Carlos Lacerda na Nova Fronteira, sua editora, da qual assumira a direção geral e efetiva há pouco. Marcara encontro, pois levava comigo fotos de São Paulo antigo, para um álbum que Carlos pretendia editar no fim do ano. Colhera fotos, a seu pedido, no MIS, no Patrimônio Histórico da Prefeitura, e com d. Maria orais Barros, diligente colaboradora e filha do embaixador Moraes Barros. 

Em Botafogo, perdi-me nas obras do metrô carioca. A rua da Nova Fronteira, a Barão de Itambi, toda esburacada e revolta. Procuro a passagem, pelos fundos de um prédio próximo à editora. Ouço uma voz, à direita, apagada e hesitante. Era o Carlos: 
– Luiz Ernesto... Você, aqui... 
Um cumprimento frio e formal, diferente dos milhares que tivemos nos últimos 30 anos. Conheci-o na Faculdade de Direito de São Paulo, em 47. Era estudante de jornalismo, e Lacerda falava sobre “A Missão da Imprensa”. Quis levar o texto de sua admirável palestra para publicar na “Imprensa”, jornal da escola, chegando a puxá-lo de suas mãos. 

– Que é isso? Este, não. Vou publicá-lo nas “Vozes”.
Daí nasceu a longa convivência profissional, política, familiar, humana. Fizemos amizade desde logo e, de lá para cá, Lacerda foi para mim amigo e chefe, paraninfo e conselheiro, padrinho e quase pai. Trabalhei durante 15 anos na “Tribuna da Imprensa”. E em sua campanha ao governo da Guanabara e como candidato a presidente da República. Convivi com o homem público, conheci as manhas do político, o brilhantismo do escritor, a globalidade da figura, que, às vezes, beirava a genialidade delirante. Nenhum outro brasileiro maior, ou melhor dotado, em seu tempo. Opositor contumaz e obsessivo, construiu em todos os campo pelo talento e pela inteligência, pela sensibilidade e pela ardorosa vontade de criar. Devassou lembranças e arquétipos, tentou fazer da vida o equilibro do possível e do imaginável. Ali, agora, na Itambi, entrando na Nova Fronteira, sem pressa e sem o antigo “élan”, não era o mesmo Lacerda, buscava já o imponderável e o incompatível, o “Outro ser vago, sem voz e sem corpo, distante e etéreo”, como chamou a Morte, em seu último livro-testemunho, “A Casa do meu Avô”. 

Ali, na rua, encontro-o bravo, triste e desencantado com a crise nacional. Não é o mesmo de sempre, ousado e inspirado, fraterno e criativo, mágico e intrépido na palavra e na ação. Implodia por dentro – com os remédios em má hora prescritos em São Paulo. Via a face letal em seu rosto – dos olhos para baixo, o rosto se esverdeava, e lembro-me que, de volta ao hotel, falei disso à minha mulher: – “O Carlos está mal, muito mal” – disse. Há três anos, indicado pelo Mesquita para escrever a biografia de Francisco e Júlio de Mesquita Filho, que considerou a honra maior de sua vida, escolheu-me para as pesquisas em São Paulo. Falo do livro de Julinho e Chiquinho. Em que pé anda o texto, já que o espinhaço da obra estava pronto, segundo ouvia, em São Paulo, do próprio Carlos. “Não sei, não, como continuar o livro...” disse, desanimado. Empaquei na história da Bucha e da Revolução de 32. Não tenho ainda explicação que me convença para ambas. E, nelas, Julinho e Chiquinho tiveram participação fundamental’. 

Na feitura do livro, houve entre nós mais uma relação plena de confiança. Tempos trabalhosos, pois as pesquisas nas quais também colaboravam Armando Bordallo e Luiz Roberto Souza Queiroz – se intrincavam em mil referencias pessoais, políticas, econômicas, etc. A tal ponto que Lacerda, ao ver, em Petrópolis, as 40 grossas pastas que organizamos, divididas em mais de 100 capítulos – que abrangiam cronologicamente a vida dos dois Mesquitas – disse, realista, não poder escrever em três anos sobre quem atuara, decisiva e apaixonadamente, na vida brasileira, durante 60 anos, no mínimo. Lembrava Churchill, a quem recentemente se publicavam memórias, com historiadores e pesquisadores perquirindo a sua biográfica, em períodos e episódicos curtos e definidos. “Os testemunhos era, válidos, as pesquisas excelente” – dizia. Mas, Lacerda, adiava a redação final do livro, apesar de já ter ordenado a capitulagem da obra, que seria em dois volumes, e redigido o seu breve, incisivo e belo prefácio. Talvez, também, porque houvesse sido o partícipe e testemunha de tantos episódios vividos pelos Mesquitas, tivesse o ressaibo de, escrevendo de outrem, ter de se situar igualmente perante a história de seu País. 

Foi um encontro frio, o nosso, naquela ensolarada manhã no Rio. Lacerda andava com dificuldade, duro, mal ajeitado nas roupas largas, gordo: “Trouxe as fotos?” Trouxe. Ótimas, todas. “Ah! Bem.” 

Acompanhei-o, sem falarmos, até a Nova Fronteira. Cumprimentou, sério, compenetrado, à entrada, o porteiro e funcionários. Em seu gabinete, recebeu as notícias do dia: Luzardo o convidava para o lançamento de seu livro, na Assembléia de Porto Alegre. É o depoimento do centauro gaúcho a Glauco Carneiro, que pude recomendar a Lacerda, que resolveu editar o livro.

– O convite de Luzardo é altamente honroso, disse. Vou aceita-lo. Espero que minha presença possa exprimir, pelo silencio, o que já por palavras não se pode dizer neste país. Pediu as fotos, chamou o Forjaz Trigueiros e o Sena Madureira, principais colaboradores. Apresentou-nos, enquanto as três secretárias já completavam várias ligações com o Castelinho, em Brasília, Emil Farhat, em São Paulo e Yolanda Penteado, que estava no Rio. Pediu que eu próprio atendesse à autora de “A Vida Cor-de-rosa”, que a Nova Fronteira vai reeditar. 

– São Paulo é com você, Luiz Ernesto... E passou, muito zangado, enquanto me elogiava (o que me constrangia), a criticar pessoas e coisas. Criou-se um mal-estar, o seu rosto estava grave e pálido, acinzentado, fora do normal. 
Resolvi dar um expediente rápido: 
– Representei-o na morte de “Ciccillo”. 
– “Paz a ele, coitado”... 
– Encontrei o Jânio. Quer que o senhor, quando for a São Paulo, o procure. 
– “Errar, todos erram, Luiz Ernesto. Mas, para traição, não há perdão. E Jânio traiu. Nunca mais quero ouvir falar nele”. (PS).
– Faz 40 anos da morte do Paulo Setúbal...
– “Isso, sim. Procure o prefeito, em meu nome. Vamos editar a obra completa do pai dele. É fácil conseguir”.

Mostrei recortes do Jornal da Tarde (carta do Guazelli, da Câmara Brasileira do Livro, com quem vinha divergindo a respeito da edição de livros) e um bilhete de minha mãe Marieta, de 89 anos, cumprimentando-o pela A Casa de Meu Avô, que leu inteiro, desde o Natal. Fez algumas anotações no recorte, e pôs o bilhete de lado, escrevendo “arquivo pessoal”. Ficou pensativo e triste e, enquanto falava ao telefone com Letícia, combinando a ida a Petrópolis e jantar que desejava oferecer, naquela noite ao jornalista Carlos Castelo Brando, pegou um cartão pessoal e escreveu um afetuoso bilhete á minha mãe. Que destino! Não o achei nunca mais. Ainda dedicou um livro seu a Leontina e Bruno Giorgi – com quem eu iria almoçar – e reclamou, “até a última entranha de meu ser”, não poder comparecer a esse almoço, e enviou também à minha mulher Zilda, “Psiquiatria ao alcance de todos”, para ela aprender um pouco, como dedicou entre irônico e solene. 

– Bem, as fotos, onde estão? 
Abri o volumoso pacote. Lacerda espalhou-as sobre a mesa, comentou, criticou, elogiou. Deu instruções a Trigueiros sobre o álbum. 
– “Vai ser melhor do que o fizemos do “Rio Antigo 1900”, no ano passado. O texto de apresentação será do Alfredo Mesquita”. 

Sentia-o, contudo, desalentado e desintegrado. Lacerda não tinha aquela vida, aquele idealismo, como tantas vezes o vi, no jornal, nas campanhas, no governo, nas tribunas, nas aulas, nas conversas. Ali, ele se acabava na editora, desfalecido e desesperançado, já antevendo a morte, tantas vezes citadas no “A Casa de Meu Avô”. Saio e ainda pego trechos de seu depoimento gravado, que concede a Leo Gilson Ribeiro, do Status, talvez o último que deu em vida: a crise do livro, a crise da educação, a crise institucional, a burrice nacional.

Em São Paulo, toco pra frente. Aviso alguns amigos da depressão de Carlos Lacerda, da obsessão outonal e triste que tomava seus últimos dias. Sodré e Segall estão em Paris, aviso Hélio Motta, e o Padre Godinho diz que vai procurá-lo. 

Já nada se pode fazer, senão esperar. Dias depois, como de hábito, chegaram dois bilhetes, dele, os últimos: os assuntos vão de Grassman a Freud, dos Mesquita ao “seu” Xanam. É o fim próximo, é a morte que Lacerda antevia: “Eu sei o que vão dizer, mas que importa! Não será pior nem melhor do que disseram antes que me olha agora, sem olhos, me fala sem voz, me escuta sem ouvidos; em vão procuro atribuir-lhe um rosto, um corpo, uma presença compatível com a descrição que se pudesse fazer de sua impalpável presença... não é um ser propriamente, será um estado de ser... pois nunca é tarde... embora nem sempre me disponha a aceitá-lo. Creio que combina com o que haja de mais real na minha natureza”. 

E assim foi para o mistério da eternidade o chefe e o amigo, o padrinho e o quase par de tantas lutas duras e alegres tertúlias. Que me ensinou a crasear e a combater o bom combate. O brasileiro acima de sua época, que voou tão alto quanto Ruy na literatura, Kubistcheck na política, Vargas no gosto popular, que fez do jornalismo lição, profissão e exemplo, e da sua ação a busca do bem comum, da justiça e da liberdade. Um homem que, como queria para seu próprio irmão Mauricio, empurrou pelas próprias mãos o destino do tempo e fez da sua vida, entre a loucura e o gênio, o permanente desafio de ousar definir e ver, como queria Camões. Lacerda ocupou um espaço muito grande, na alma do povo e na vida nacional. A obra que fez, embora a considerasse infinitamente pequena, é obra de um predestinado, de um idealista e de um amoroso. P S. Por causa deste diálogo, que uma folha publicou avulsamente, tive um curioso e inusitado diálogo com o ex-presidente, numa galeria de arte, no ano passado. Por pouco, não fui agredido.

LUIZ ERNESTO KAWALL (Especial para “O ESTADO DE S. PAULO” 21.8.78).

HOMENAGEM À LIA DE BARROS


por Luiz Ernesto Kawall



Como velho frequentador de Ubatuba, desde a década de 50 em diante, (e veja, estamos falando do século passado, já se vão portanto algo mais que 50 anos), tive a oportunidade de sentir o crescimento da cidade, de um tempo em que lembrava em sua arquitetura de construções coloniais,que eram poucas mas bastante significativas. Os tempos eram outros, pois quando conheci Ubatuba, no início de 1952, era apenas uma vila de cerca de 3 mil habitantes, cuja única ligação com o Vale do Paraíba era a antiga estrada imperial, até São Luiz do Paraitinga, além dos caminhos de Caraguatatuba e Paraty, feitos a pé. 

A melhor recordação que trago daquela época é a do tempo das casinhas alinhadas dos caiçaras, geralmente de pau-a-pique e sapé e da pequena cidade litorânea, com sua majestosa Igreja Matriz e seus muitos casarões já em ruínas circundando a praça central, tudo com muita graça. E o que mais me impressionou foi sua culinária simples, extremamente saborosa, com muita tainha, sol e folclore. Muito embora essas recordações pareçam idílicas, creio que para mim como para todos aqueles que tiveram a mesma sorte de oportunidade de vivenciar aquele momento, ela funciona como uma espécie de corolário rico de todos os possíveis significados daquele tempo mágico da doce humanidade verdadeiramente caiçara. 

Das muitas figuras que avultavam esse pequeno universo distante e único, conheci aquele que foi o amigo de toda uma existência, o Filhinho, que foi farmacêutico e único “médico” da modesta urbe, durante anos e que mais tarde, no alvorecer de sua humilde sabedoria escreveu três livros eternizando assim parte de suas memórias. É claro que não posso me esquecer do velho Guizard – proprietário do Sobradão do Porto, chefe do clã que leva o seu nome, e, no Itaguá, onde me instalei posteriormente, as humanas figuras como Godofredo dos Santos, Antonio Francisco Barroso e os irmãos João e Joaquim Quirino dos Santos, caiçaras autênticos, mestres da construção rural e da lavoura roceira. 

Posteriormente, ainda frequentando Ubatuba continuamente mas já na qualidade de assessor de imprensa do então governador do Estado, Dr. Roberto de Abreu Sodré, minha relação com Ubatuba foi mais intensa na gestão revolucionária do prefeito Ciccillo Matarazzo. Nessa época estava em voga a criação dos museus históricos e pedagógicos, ocasião em que foi criado em Ubatuba, pela intervenção direta e Ciccillo, sob a supervisão do artista plástico Da Motta, que confeccionou todos os amplos painéis didáticos retratando as etapas da evolução histórica de Ubutuba. 

Foi nessa ocasião que tive a oportunidade de conhecer a figura de Lia de Barros, que exercia então a função de Secretária de Turismo. Dona de uma vivacidade cativante, Lia, que viera para Ubatuba no início dos anos 60 para cuidar do tratamento de sua mãe, por aqui ficou e muito fez pela cidade que adotou, cooperando na obtenção de obras e serviços junto ao governo estadual, contribuindo exemplarmente para a edificação de uma imagem positiva e generosa de Ubatuba. 

Lembrar Lia de Barros é reportar-se ao tempo romântico da solidariedade e do calor humano que fazia o governador Sodré, ao sobrevoar Ubatuba, dirigindo-se ao Rio de Janeiro, pedir que o piloto pousasse em Ubatuba por algumas horas para desfrutar do convívio de sua humana e generosa figura. 

Essa foi Lia de Barros em algumas poucas, mas sinceras palavras. Ela, que nos deixou em março de 2005, merece não só este humilde tributo, mas, de fato, uma justa homenagem da cidade que abraçou e que lhe deu o título de cidadã ubatubense. Para tanto, em nome do Museu Caiçara, estamos solicitando ao prefeito Eduardo César, em ofício, seja dado o nome de “Lia de Barros” a um logradouro público, localizado na confluência das praias Grande e do Tenório, já objeto de urbanização, através do engenheiro Roberto de Carvalho Rezende, recém integrado na secretaria do atual prefeito. 

 Luiz Ernesto Kawall é jornalista, crítico de arte e assessor de imprensa da Academia Paulista de Letras