APÓS TANTAS AVENTURAS, TERMINOU CAINDO NO “CONTO DO PACO”, EM SÃO PAULO
- Não vendi ninguém!
Assim categórico, à nossa frente, o cearense Francisco Pires Praciano, 31 anos, casado (4 filhos), com sitiozinho em Itapipoca, no norte do Ceará, contesta e desfia sua história.
- Não negociei meus irmãos. Trouxe-os por caridade. Estavam todos morrendo de fome lá nos sertões da santa terra.
Praciano é decidido, com uns ares de caboclo ingênuo. Está detido na polícia paulista. Motivo: averiguação (roubo de rádio, com o irmão). Mas nos interessa por isto: trouxe do Norte e vendeu aqui no Sul, 180 retirantes nordestinos.
E disso nem a polícia de S. Paulo, nem a de Kubitschek, cuida.
Água não pingou, descida para o sul.
Praciano é pequeno lavrador em Itapipoca. Cultiva arroz, milho, algodão, feijão e “alguma mandioca”.
De quebrado, cuida de gado: tem 30 cabeças- das 100 e poucas, “o solão danado matou”.
Nos seus alqueires trabalham 90 pessoas. Mas este ano, houve seca.
- Dezoito meses não pingou. As culturas morreram todas. O gado virou esqueleto - e se foi também.
Foi então que Praciano, com sua gente, decidiu descer para o Sul. “Tentar melhor sorte de Deus”.
180 cabeças no grande alfa
- Juntei minhas economias, aluguei um caminhão “Alfa” (Romeu), dos grandes e chamei o povo.
Conta que queria trazer “100 cabeças”. Na hora do embarque subiram 180 pessoas, sendo 100 adultas e 80 crianças.
- Contratei o caminhão por 200 contos. Na hora da partida, tinha gente sobrando: dava para dois caminhões.
A condição, para viajar: cada um se comprometia a dar a Praciano Cr$ 3.000,00, ficando a comida durante a viagem “por sua garantia”.
VENDA (1ª) DO GADO HUMANO
O “Alfa” afinal veio descendo pelo Ceará, Bahia, Minas Gerais.
- A essa altura, meu dinheiro (70 mil cruzeiros) acabou. Já viu miserável sem comida? É de matar.
Aí estavam em Montes Claros. O fazendeiro do lugar, Antonio Versiani Ataíde, conta, veio ao encontro do bando:
- Vamos dividir esse pessoal. Quem for do braço, vem para o meu trabalho!
Foi então que o Praciano fez o primeiro negócio: vendei 61 “cabeças” por Cr$ 100 mil.
O fazendeiro pagou Cr$ 86.600,00. O povo do lugar, condoído, deu mais Cr$ 13.400,00.
O total foi Cr$ 100 mil - com recibo e tudo.
MAIS GADO (HUMANO) MAIS DINHEIRO
E a viagem continuou. Rumo: centro de Goiás.
Em Rio Verde, nova parada e negociações com o fazendeiro João Macedo Garcia. Este, por Cr$ 35 mil - mais a promessa de dar uma fazenda a Praciano - ficou com os restantes nordestinos, em número de 119.
Foi passado recibo também, “na legalidade de Deus”.
E Praciano ficou de descer até S. Paulo, visitar um seu irmão aqui, retornar a Itapipoca, buscar a família e os “trens” - e juntar-se ao “seu povo” em Rio Verde, e ali, outra vez, começar a criação na fazendinha.
AZAR BATE EM S. PAULO - DENÚNCIA
Em S. Paulo, contudo, o azar bateu no cearense decidido. Tinha sobrado - pago o chofer do caminhão: R$ 135 mil - para suas despesas de volta, com visita de permeio ao irmão, Dr$ 6 mil. Praciano não conhecia a capital, nem sua malandragem. Foi no conto do “paco”. Perdeu os Cr$ 6 mil - e deu queixa à Polícia. Na Polícia, inventou: tinha sido roubado em Cr$ 100 mil (“dinheiro grande, a Policia vai procurar”). A mentira o engalhou. Aparece o seu irmão, aqui radicado. Este é reconhecido por um investigador e acusado de roubo (antigo) dum rádio.
Os dois irmãos vão parar no xadrez. Pior: Praciano, pressionado, conta a história verdadeira. Acusado agora de traficar brasileiros, sente vergonha e contesta - e continua preso. Num de seus bolsos, um documento impressionante: o fazendeiro do Rio Verde deseja comprar mais “50 trabalhadores do Norte”. Mas não quer “peso-moto”. (Praciano explica: “peso-morto” é a criançada doente...).
Enfim, num canto de Delegacia, junto ao repórter, o cearense Francisco Pires Praciano confessa:
- “Sou brasileiro e quis ajudar meus irmãos brasileiros. Ninguém nunca viu a miséria que vai no Norte. Governo por lá não aparece. Perdi agora meu dinheiro, estou agredido e preso em S. Paulo - e meu povo morrendo de fome em Itapipoca.
E lamenta:
- No Brasil, só não conhece a fome quem faz gosto dela!
A CARTA
É esta a carta de Tércio Campos Leão, fazendeiro em Rio Verde, encontrada nos bolsos de Praciano:
“Rio Verde, 16 de fevereiro de 1959.
Sr. Francisco Pires Praciano
Nesta.
Tomei conhecimento de sua estada aqui e como o sr. reside no Ceará, onde tem inúmeros trabalhadores que querem vir para este município, quero fazer-lhe uma proposta para a vinda de 50 trabalhadores para a minha fazenda, nas condições:
1.ª - As famílias ficarão residindo na fazenda com todos os seus membros e só poderão trabalhar noutro local, em outra propriedade, com o meu consentimento;
2.ª - Darei lavoura para todos, sendo no primeiro ano, 1959, pequenas, visto ter interessados na minha fazenda;
3.ª - Não admito uso de bebidas alcoólicas, imoderadamente, na fazenda, assim como armas e festas;
4.ª - Pagarei a diária de Cr$ 60,00 (sessenta cruzeiros) livres de outras despesas necessárias;
5.ª - O pessoal peso-morto deverá ser o menor possível;
6.ª - Na chegada do pessoal em minha fazenda comprometo pagar até a quantia de Cr$ 100.000,00 (cem mil cruzeiros) a você, ficando o restante das despesas para a combinação na ocasião.
Estas são as condições que exijo para que você traga os 50 trabalhadores, isto é, 50 braços úteis, entre mulheres e homens. Caso o senhor interesse, pode trazer o pessoal. Correndo por minha conta a responsabilidade do não cumprimento da obrigação ora feita, até o dia, digo, até os fins de abril próximo.
Com os meus respeitos e consideração, cordialmente, Tércio Campos Leão.
TRIBUNA DA IMPRENSA
3 de abril de 1959.
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