Paraense, 43 anos, arquiteto, poeta e plástico neoconcreto, Osmar Dillon é um dos grandes valores da arte conceitual da atualidade. É incisivo, perspicaz no responder, inteligente e sério. Magro, veste-se com roupas esportivas e tem incrível disposição para o trabalho. E um argumentador nato.
– O concretismo, anto nas artes visuais como na poesia foi um movimento de suprema importância, há quase duas décadas, aqui no Brasil: foi como que um serviço de limpeza e dedetização nos nossos meios artísticos. Na poesia podou os mil galhos simbolistas, os adjetivos parasitas, as folhas debilitadas pelo lugar comum deixando quase só o tronco (muitas vezes até este foi cortado). Nas artes plásticas, disciplinou muita coisa também: obrigou a um sentido maior de organização dos espaços, a uma necessidade de sintetismo, a uma busca de novas técnicas e novos meios de expressão. Procurando quebrar o caráter ortodoxo do concretismo, surgiu aqui no Rio de Janeiro o “neoconcretismo”, cujo teórico principal foi Ferreira Gullar. A denominação de neoconcretismo foi infeliz, mas o movimento foi marcante. Engajei-me nele em 1955 tendo exposto juntamente com Lygia Clark, Hélio Oiticica, Amílcar de Castro, Aloísio Carvão, Roberto Pontual e alguns outros. Partindo de uma idéia comum, cada um desses artistas seguiu depois seu caminho, desenvolvendo as pesquisas iniciadas na época. O que, então, era alvo de chacota por grande parte do público e da crítica, veio desabrochar no que muitos anos depois passou a se chamar arte-conceitual, arte-ambiental, arte-povera, body-art, etc. No campo do design, da publicidade, também a influencia do concretismo foi enorme. Para mim, depois da Semana de 22, o movimento mais importante nas nossas artes plásticas foi o neoconcretismo, com seu caldeirão de idéias novas, que lançou seguidores pelo mundo afora, adiantando-se, às vezes, às tendências mais importantes da arte atual.
– O fato de lidar com palavras faz de você um artista conceitual?
– Como já disse, no neoconcretismo havia a corrente da arte conceitual. Eu fui neoconcreto: fazia em 1960 objetos poéticos utilizando palavras, objetos que criavam “vida”, se transformavam através da forma plástica, do sentido semântico, do “conceito” lançado por essas palavras. Conceituais eram os “não objetos” de Ferreira Gullar, um dos maiores inventores de idéias daquela época, e de quem, por admiração, sofri tremenda influência... Em 60, ainda neoconcreto, eu já havia escrito e projetado o que chamei de “movimentos vivenciais”, que em resumo eram grandes construções que através de labirintos, sons. Silêncios, escuridão e luzes ofuscantes e palavras carregadas de determinados conceitos, obrigavam o espectador, segundo definiu o crítico Roberto Pontual, a “... ativar e atingir o inconsciente pela envolvência dos choques de visualidade amalgamada a sons, palavras, materiais e tempo – a vida totalizada. Mergulhado e envolvido, o homem se conheceria, alfa ômega, retornando. Teria passado pelo frio e fogo de sua própria matéria”.
– Descreva um de seus projetos de arquitetura vivencia.
– Vou descrever oque chamo de SÓ, que foi recentemente selecionado como um dos semifinalistas internacionais do Sysposion Urbanum de Nurnberg (1971), e já apesentado ao público carioca, sob o nome de Monumento Vivencial II. É assim:
Externamente o monumento tem a forma de um grande cone com 10 metros de diâmetro de base e 10 metros de altura. É de concreto, tido fechado, sendo visível apenas uma porta de entrada ao nível do solo. Ao entrar por essa porta a pessoa vai descendo para o subsolo pois o piso é todo uma rampa. Tem que seguir por um corredor estreito (70 cm de largura), em forma de caracol, que se enrosca na direção do centro do monumento. Esse corredor é todo branco: paredes, chão e teto. Iluminação fortíssima e silêncio total (revestimento acústico em todas as superfícies). À medida que a pessoa caminha, o pé direito (distância do chão ao teto) vai-se tornando maior, pois o piso em rampa se entranha cada vez mais no subsolo, e o teto, formado pela parede do grande cone, vai subindo até atingir o vértice. Seguindo sempre por esse corredor de forma espiralada, de raio cada vez menor, chega-se ao centro depois de percorrer um longo caminho de branco, luz e silencio. Ao atingir esse centro, que é um círculo de um metro de diâmetro, o chão onde a pessoa está pisando começa a afundar. Para não cair, ela se agarra a um eixo que sai do círculo. As luzes se apagam. Agora a escuridão é absoluta, contrastando com o branco de intensa iluminação que ficou gravado na retina do espectador. O disco começa a descer lentamente, através de uma passagem estreita, para um subterrâneo mais profundo. Então, pára e começa a inclinar-se, obrigando a pessoa a descer. Ainda no escuro. O círculo, preso ao eixo, sobe automaticamente, deixando-a só. Luzes fortes acendem-se e ela se encontra, então, dentro de uma grande esfera (diâmetro aproximado de 4 metros) de plástico vermelho e transparente. A passagem por onde o disco subiu fechou-se. O isolamento torna-se completo. Dentro da esfera, o espectador olha para fora através do plástico vermelho e vê, apenas, acesa, uma imensa letra S da mesma escala (altura de 4 metros) e do mesmo material vermelho e transparente da esfera. O resto do ambiente, fora da grande bola e da letra S, está imerso em escuridão. No silêncio do subterrâneo, abandonada e incomunicável, a pessoa percebe, nesse momento, que foi deixada dentro da palavra SÓ, pois a bola onde se encontra, ao lado do gigantesco S, forma visualmente a letra O dessa palavra. Depois de algum tempo as luzes das letras começam a se extinguir, lentamente. No escuro, o disco, cujo fundo é verde fluorescente. O retorno ao mundo exterior é feito repetindo-se toda a experiência em sentido inverso.
– Fala-se pejorativamente de uma estética acrílica, o que acha disso?
– O que acontece é que há muita gente trabalhando (mal) com o acrílico, encantada com o brilho e as cores, sem saber realmente o que quer dizer, o que transmitir; usam o material pelo material, sem nenhum sentido mais profundo. Os escultores devem sentir arrepios quando veem os objetos de acrílico. Mas a verdade é que essa “estética acrílica” veio substituir a estética do bronze e do mármore, que não em quase nada, aqui. Depois do Aleijadinho, quantas coisas boas aparecem em escultura no Brasil? Realmente, parece estar nascendo uma floresta de acrílico no país. Mas já houve uma floresta de abstracionistas informais, de “pops”, de surrealistas eróticos, etc. Muita gente não cria: simplesmente copia e adapta objetos reproduzidos nas revistas italianas. Por isso, a floresta está crescendo tanto.
– Qual a sua posição diante do múltiplo?
– O múltiplo é como a gravura. Se esta pode ser reproduzida em número “X” de vezes sem que perca o valor, porque não um objeto? Para que e por que apenas uma pessoa privilegiada possa ter essa peça única, peça que poderia ser reproduzida, exatamente igual, dez mil vezes, permitindo a um número muito maior de pessoas a possibilidade de possuí-lo, também? Infelizmente os múltiplos, aqui no Brasil, ainda estão sendo feitos em caráter artesanal – não há ainda condições para industrializá-los, o que os tornaria, consequentemente, muito mais baratos. A democratização da obra de arte é, na verdade, uma utopia, por aqui. Uma gravura ou um múltiplo serão adquiridos por pessoas de algum poder aquisitivo. A grande massa, a imensa maioria, está preocupada com a próxima refeição, com as necessidades básicas da vida. Como pode se interessar em comprar arte?
– Situe francamente o papel do mercado de arte no contexto atual da arte brasileira.
– Como já disse, é óbvio, o pobre não compra arte. A classe média, pouquíssimo. Os de poder aquisitivo alto estão comprando cada vez mais, pois além de ser uma aplicação de capital (já que a Bolsa parece ter buraco no fundo), lhes confere uma aura de requinte, cultura, enfeitando (ou enfeiando) suas paredes. Evidentemente no meio disso tudo há uma minoria que realmente apurou o gosto estético, entende e gosta do que está comprando. O mercado de arte surgiu, então, como surgiu o mercado de automóveis ou de bananas. O mercado de arte despertou uma atenção de toda uma classe para esse setor, permitindo a muitos artistas viverem do próprio trabalho, coisa que não acontecia há alguns anos atrás. Evidentemente os “marchands” é que ficaram milionários da noite para o dia graças ao nosso trabalho, às vezes honestamente, seriamente, e muitas vezes graças à falta de informação, cultura artística e esnobismo dos compradores. O que se vende mais caro quase sempre nunca é o melhor.
Osmar Dillon parece disposto para prosseguir, noite à dentro. Sobre a existência de uma vanguarda na arte brasileira, é taxativo e conclusivo:
– Vanguarda, literalmente, não. Os movimentos de vanguarda têm surgido nos Estados Unidos e Europa e depois são seguidos por alguns artistas brasileiros, às vezes com anos de atraso. Já não são, portanto, vanguarda. Há grupos fechados que se reúnem e lançam manifestos cabalísticos, com termos transcendentais, que espremidos não deixam sair uma só gota de conteúdo. Há uma grande falta de intelectuais teóricos, que se interessem com profundidade no assunto. O artista jovem brasileiro assimila coisas pela superfície, não vai até a essência. Tudo passa muito rápido, não há tempo nem condições para grandes estudos. O jeito é curtir. E nessa curtição os anos passam sem que nada de sério surja na nova geração. No Salão de Verão este ano, organizado pelo “Jornal do Brasil”, para artistas jovens ainda não premiados, o número de obras com alguma proposta nova foi irrisório, quase nulo. Havia muito desenho surrealista-erótico, muitas montagens convencionais e pinturas quase abstratas. Muita curtição e nenhuma vanguarda. Os “Domingos da Criação”, organizado por Frederico Moraes foram as últimas manifestações a propor alguma coisa nova, alguma atitude nova perante as arte.
A TRIBUNA – Santos, 29 de julho de 1973.
Nenhum comentário:
Postar um comentário