Quando de sua última estada entre nós – antes de morrer em Paris, a 11 de abril (1974) – o sociólogo francês Roger Bastide falou sobre o Brasil, seus livros, sua obra na Universidade de São Paulo e outros temas, à socióloga Lisbeth Rebolo Gonçalves, que se interessou também em saber de Bastide sobre suas relações com os artistas de nosso país, ao tempo em que trabalhou em São Paulo. A entrevista assistida por este repórter foi publicada no jornal “Presença do Livro”, dirigida por Antônio Fernandes neto, que encomendou expressamente o trabalho à jovem pesquisadora. Profundo conhecedor dos problemas brasileiros – aqui vivei 17 anos –, a entrevista de Bastide à Lisbeth Gonçalves é talvez o último pronunciamento entre nós, o que dá ao texto – e aos trabalhos que Lisbeth Gonçalves elabora sobre a importância artística e histórica do Grupo Santa Helena – uma dimensão maior. Daí a razão de sua transcrição aqui. Diz Bastide inicialmente:
“Pertenci à segunda turma de professores que vieram lecionar na Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras da USP, juntamente com Fromont, Bonzon, Jean Gagé, Pierre Momberg, com contrato de 10 anos, mas acabei ficando 17 anos no Brasil. E, como professor, minha preocupação não era apenas a de ensinar, mas de desenvolver um sentido crítico, o humanismo, a sensibilidade, em relação a uma profissão que se estava formando aqui. Minha função, bem como a de meus colegas, era também, a de formar bons professores que nos substituíssem, quando fossemos deixar o Brasil. Na minha área, a Sociologia, foram meus alunos e estavam preparados para lecionar, Costa Vilela, Mario Wagner Vieira da Cunha e Florestan Fernandes que, ao se doutorar, assumiu a cátedra de Sociologia.
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Perguntado se a Sociologia ensinada naquela ocasião prendia-se a tradições francesas, Bastide explica que sua preocupação, com professor a serviço no Brasil, não podia ser a de se desenvolver aqui uma cultura francesa.
– Em sociologia, eu abordava tanto a corrente norte-americana como a alemã e a francesa, na medida em que tinham conceitos válidos e minha preocupação era, antes de tudo, que se criasse uma teoria aplicável à realidade do Brasil. E, agora, minha satisfação é ver que, tantos nos Estados Unidos coimo na Europa, se fala dos sociólogos brasileiros como se fala dos americanos e dos franceses.
E sobre as pesquisas que desenvolveu, paralelamente à sua atividade de professor, Bastide diz:
– Desde que cheguei ao Brasil – quando desembarquei no Rio de Janeiro, era dia de carnaval – desejei conhecer a sua realidade a fundo. Estava, então, para desenvolver minha tese de doutoramento e resolvi estudar as religiões africanas no Brasil. Mas outros aspectos também me interessaram. Sempre aproveitei as férias para viajar e pesquisar. Convivi, também, com literatos e pintores da época.
Roger Bastide fala de Osvald e Mário de Andrade, de Tarsila, de Flávio de Carvalho e lembra que a seu convite fez no segundo Salão de Maio, uma conferência sobre Pintura e Misticismo, criando-se, a partir daí, um elo de aproximação com os pintores brasileiros. Recorda-se, com carinho, de Sergio Milliet que era, então, diretor da Biblioteca Municipal de São Paulo.
– Foi lá, através do Sérgio, que travei contato com Rebolo, Graciano, Quirino da Silva e tantos outros.
Respondendo a uma pergunta sobre contribuições que prestou à imprensa naquela época, diz que revistas e vários jornais lhe pediam artigos – O Estado, a Folha, os Diários Associados – e que fazia questão de dar predominância e abordagens em torno de temas brasileiros, quer sociológicos, quer artísticos.
Uma coisa Bastide faz questão de ressaltar:
– Encontrei nos artistas brasileiros a vontade de criar uma pintura que não fosse imitação da americana ou europeia e, embora se utilizassem de técnicas de fora, realmente os pintores conseguiam fazer uma arte brasileira. Tarsila, por exemplo, procurava a expressão simbólica da cultura brasileira. Rebolo, no seu lirismo pictórico, captava a poesia da paisagem brasileira. Entre os ”naifs”, como Heitor dos Prazeres, tudo era bem brasileiro.
Das contribuições de Roger Bastide à cultura brasileira, na literatura científica, destacam-se Imagens do Nordeste Místico; Sociologia e Psicanálise; Arte e Sociedade; Introdução à Psiquiatria Social; Estudos Afro-Brasileiros; Poetas do Brasil; A Poesia Afro-Brasileira; Relações Raciais entre Negros e Brancos em S. Paulo (realizado em cooperação com Florestan Fernandes). E outros tantos avulsos, como O Islã Negro no Brasil; A Monografia Familiar no Brasil; Nas Américas Negras; África ou Europa; Estudos de Literatura Brasileira; Sociologia na América Latina; Os Equilíbrios Sociais-religiosos e Brasil Terra de Contrastes, que, no presente momento, está preparando para a reedição em francês.
Este último livro, segundo Paulo Duarte, seu prefaciador na edição portuguesa, mas que uma análise propriamente sociológica, é uma divulgação do Brasil feita por um sociólogo altamente especializado nas coisas do Brasil. Disseca a sua realidade em 12 capítulos, onde transparece o afeto indisfarçável do autor pelo personagem, o que não impede que o veja através da serenidade do sociólogo. É um livro que se destina a fazer com que melhor se conheça e se goste do Brasil.
A TRIBUNA
SANTOS, 5 de maio de 1974.
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