sábado, 6 de junho de 2015

PORTINARI, CERVANTES & DRUMMOND


– Pela quarta vez em 25 anos, o Museu de Arte de São Paulo faz uma exposição de trabalhos de Cândido Portinari. São 21 desenhos inéditos em São Paulo da série “D. Quixote”, feitos a lápis-cera de cor, nos anos de 1956-57, época em que o pintor foi proibido pelos médicos de trabalhar com óleo... Pertencentes ao acervo da Fundação Raymundo de Castro Maya, os desenhos da série “D. Quixote” nunca deixaram as salas do Museu da Chácara do Céu, do Rio de Janeiro. Esta é a primeira vez que são mostrados fora, cedidos ao MASP a pedido especial do Banco Itaú, que promove a exposição. Juntamente com os desenhos, são expostos 21 poemas de Carlos Drummond de Andrade, inspirados nessa série de Portinari e mais 10 quadros das séries “Bíblica” e “Retirantes” do pintor, pertencentes ao acervo do MASP. 

O professor Pietro Maria Bardi, setentão sólido, está agitado, defronte da sua pequena escrivaninha superdesarrumada de diretor do Museu de Arte de S. Paulo. Ele expõe Portinari – de quem foi amigo – pela quarta vez no MASP, o Museu de Arte criado por Assis Chateaubriand, que também gostava muito do artista. Mas não é só Portinari que preocupa as atenções de Bardi – são as mil outras atividades do Museu, nos vários setores de cinema, teatro, música, edições, conferências, etc. O Museu de Arte de São Paulo está agora encarregado de realizar uma mostra de arte brasileira na Bélgica, este ano, abrangendo desde a História do Brasil até aspectos iconográficos, sociais, humanos, culturais do nosso povo. E Bardi se agita, dá ordens, telefona, atende, parecendo um polvo barrigudo de muitos braços. Tem uma folga, volta a Portinari. 

 Os poemas integram o livro “D. Quixote – Cervantes – Portinari – Drummond”, lançado durante a exposição com edição limitada de 1.200 exemplares, sendo 200 autografados pelo autor. Além dos poemas, contém reprodução em tamanho natural dos 21 desenhos de Portinari. Segundo o prof. Bardi, diretor do MASP, desde a primeira exposição de quadros do pintor, feita em 1948, esta é uma das mais importantes, não só por se tratar de trabalhos inéditos em São Paulo, como também porque, neles, Portinari reúne suas qualidades de pintor e poeta, interpretando com magnífica sensibilidade os personagens de Cervantes... Embora sejam de valor incalculável, os desenhos da série “D. Quixote” vêm a São Paulo devidamente segurados. 

Pietro Maria Bardi remexe papéis e catálogos. Quer provar que a luto do Museu de Arte em favor de Portinari, pela revalorização de sua obra, é antiga. Atualiza uma apresentação da exposição de telas de Portinari, feita em 1971, acha válidos os conceitos que emitiu na ocasião. O professor tem a voz rouquenha e grave, o sotaque denunciando a origem peninsular. 

– Portinari é o mais representativo artista plástico brasileiro. A Portinari só se poderia dedicar algo de excepcional, especialmente imaginado e certo de que, se estivesse pressente, teria apreciado e esboçado aquele seu sorriso sempre franco e cordial... Neste século os pintores passaram e passam ainda, agora com muito mais frequência, pelo labirinto das fases, o que não acontecia nos tempos antigos. A multiplicidade da vida contemporânea oferece a cada dia, perplexidades, oportunidades e tentações desse rumar para caminhos diversos e se aventurar em empresas por vezes desconcertantes e imprevistas, algumas até incongruentes. Poucos são os artistas que permanecem numa mesma linha de evolução, que não permitam notar as mudanças, a continuidade do primeiro instinto e vocação, as propostas das novidades. Exemplo típico é Picasso, no arco fulgurante das várias e contraditórias maneiras de sua poética articulada de negociações e retornos às coisas negadas, misto de ironia e sublimação... 

– Portinari não conseguiu abster-se desse processo de intermitência de expressão. Transitando por vários estágios, combinou pensamentos e repensamentos adequados ao desenvolvimento da sua existência de homem moral, pontilhada de crise de todas as severas gradações, própria de quem procura na luminosidade de um ideal. O visitante poderá, entretanto notar um constante em sua trajetória, que lhe impede de se perder nas vagas experiências do diletantismo espraiado nos círculos pseudoculturais... Assim, uma fase nitidamente acadêmica se dissipa e quase substitui as primeiras ingênuas, mas saborosas expressões da juventude, oriunda do campo. Depois consegue apagar as lembranças do ensino que recebeu numa Escola ainda apalermada nos absurdos do profissionalismo, herdeira daquela calamidade que foi, para nós, a Missão Francesa de 1816. 

 – Para sacudir a poeira desse manto passado e sombrio, Portinari empreende um esforço inusitado, resolvendo intrincados problemas no colóquio consigo mesmo e, mais acentuadamente, discutindo como meio no qual vive, permitindo-se conservar, em pleno alento, os imperativos dos seus ideais que palpitavam em seu coração revolucionário. 

– Eventos determinantes do desenvolvimento nacional, influência de presunçosos grupos alheios ou intrometidos no campo das artes, insistências e pressões do ambiente, e uma doença que lentamente o consumava, ás vezes o cansaram e o mudaram. Nunca, porém, perturbaram seu instinto de poeta, destinado a cumprir, até o fim de sua vida, o objetivo de afirmar as esperanças do mundo popular que lhe tocava profundamente. Não resignado, chega mesmo a pintar às escondidas, quando os médicos lhe impõe renunciar à paleta, aos pincéis e às cores, pois essas o envenenavam. Simples como um camponês de Vêneto. Inteligência cintilante e arguta, bonachão no trato, severo na disciplina de pintor humilde, mas cônscio de seu valor, sem exageros, perfeitamente mensurável, oferecia aos outros confiança e generosidade. Era a alma de um menino que imaginava a reforma da vida numa prática social onde todos os seres se confraternizariam, sem barreiras de castras e com idéias comparáveis aos de São Francisco, a quem dedicou patéticas telas de imenso valor místico. 

– Misturava nas cores e nas formas as sensações de um espírito devotado à catequese, perseguindo as quimeras de seu realismo transparente de alma religiosa. Por isso que, algumas vezes, muda o seu ímpeto de se manifestar. Na Série Bíblica é veemente, furioso, terrível: um expressionismo de rebelde e de contas a acertar com a humanidade. Nos Retirantes, é incisivo, lamuriante. Na História, é patético relator dos fatos. Nas ruas e nos campos é festivo, lírico, romântico... Na exposição de 1948, com o Museu recém-inaugurado, destacou-se a série dos Retirantes, evocativa da heroica sobrevivência e tenacidade da gente que vaga nas terras da seca para a miragem das cidades que, muitas vezes, a devolve às origens. Eram três telas-denúncia. Poucos se interessaram. Decoradores já enfeitavam paredes com paisagens, flores, figurinhas sorridentes e repetiam as mesmas palavras de Luiz XIV ao ver os painéis holandeses dedicados à vida burguesa do seu tempo: “Longe de mim essas coisas grotescas”. Insucesso total entre a gente-bem. Afluência formigante do povo miúdo, numa comovente peregrinação procedente dos bairros da periferia, que estavam votando em Cândido, naqueles dias, para uma cadeira na Câmara. 

– Quando disse a Portinari que aquelas três telas deveriam pertencer ao Museu, este prontamente acolheu a sugestão e se dispôs a doá-las. Recusei. Então Portinari pediu vinte contos cada uma. Pagamento: cinco contos por mês. Foi assim que começamos o acervo de Portinari, ao qual se juntou, logo depois, a Série Bíblica, doada pelo Assis Chateaubriand, que agora é apresentada na Pinacoteca. Era o homem dos gestos corteses, da amizade sem reservas, da honestidade ingênua, das gentilezas e do desprendimento. Depois das advertências por causa do ciclo social, nos anos cinquenta foi levado a focalizar as aventuras que se passaram na rua, encantado pela efervescência dos moleques brincando, dos entregadores de lavanderia, dos tocadores de guitarra, clarineta, trombone e flauta. Um novo Debret. Porém íntimo dos personagens, a par dos seus problemas, solidário nas dores e alegrias. Sua paleta de cores severas e rudes, próprias à severa e rude gente, à fala ardente dos pobres, se tinge agora de clareza primaveril: verdinhos, amarelos, brancos, azuis suaves, economia de ocres, nem sobra de pretos, vermelhos saborosos ou azuis carregados de profundidade. Portinari se prende à lembrança dos anos de Brodósqui, deixando à margem o conseguido com os afrescos em bancos, escolas, Biblioteca do Congresso em Washington, Ministério da Educação, Pampulha, Organização das Nações Unidas. 

– Como um mestre da Renascença era diligente e meticuloso conhecedor do ofício. Preparava minuciosamente os “spolveri”, detendo-se longas horas nos andaimes, para fixar as figuras que haveriam de compor suas interpretações da história brasileira e dos eventos que atormentam a humanidade... A América Latina revalorizou o meio da comunicação pelos afrescos. De Diego Rivera a Cândido Portinari lendas, acontecimentos, esperanças pintadas nos muros falam à multidão. Portinari se universaliza quando, comentando os problemas do Terceiro Mundo, na verdade, atinge a humanidade inteira... A mensagem de Portinari, que se revela em suas exposições, e especialmente neste da série “O Quixote”, exposição, foi e continua sendo esta: nos caminhos por onde se trilha, em busca do aprimoramento do homem, não se pode deixar de largo as coisas simples, inspiradas no cotidiano, sejam elas coloridas de alegria, ou sombreadas de duro realismo, violento, clamante. 

Retrato do poeta Carlos Drummond de Andrade
Óleo de Portinari

Seguem abaixo alguns dos poemas de Drummond especialmente elaborados para o trabalho de Portinari em homenagem ao D. Quixote, de Cervantes: 

NA ESTRADA DE SARAGOÇA 

Eram pastoras de sol 
ninfas douradas brotando da casca das árvores 
a me cercarem 
entre murmúrios de prata líquida
e borboletas lampejantes. 
Agora, touros 
furiobufantes 
e que me envolvem, 
derrubam, pisam 
entre lanças e aboios inimigos 
no tropel de combate 
que não me faz calar: 
Proclamo nestes bosques a beleza
de pastoras e ninfas
e a beleza maior que o eco prolonga 
de Dulcinéiaéiaéiaéiaéia. 

O ESGUIO PROPÓSITO

Caniço de pesca 
fisgado no mar, 
gafanhoto montado 
em corcel magriz, 
espectro de grilo 
cingindo loriga 
fio de linha 
à brisa torcido,
relâmpago 
ingênuo 
furos de solitárias horas indormídas 
quando o projeto invade a noite obscura.
Esporeia 
o cavalo 
esporeia 
o sem fim. 

NO VERDE PRADO 

– Gentil caçadora
que a nós nos caçastes,
 esse é cavaleiro
dos Leões chamado;
eu, seu escudeiro
ante vós prostrado
Formosa Duquesa
qual prêmio e consolo
de nossas andanças
malaventuradas 
dai-vos vosso riso 
Dama resplendente, 
Duque excelentíssimo, 
que vosso castelo
seja paraíso 
de grades franqueadas 
a dois vagamundos. 
A troco de cama, 
candeia e pernil, 
juramos prestar-nos
a vossos debiques
de gaios fidalgos
a falcoar a vida
qual jogo inocente
de ferir e rir. Seremos jograis
e bobos da corte
mantendo aparência
de heróis romanescos,
e ao vos divertir 
a poder de estórias
passadas na mente
de meu amo gira,
nós nos divertimos
com vossa malícia
rimos de vos rirdes,
ou eu pelo menos 
que por ser sabido 
– sábio de ignorar 
O fumo dos sonhos –
rio pelos dois 
(Nada disso eu digo 
mas no fundo eu penso.) 

Nota: Esses três poemas de Drummond, extraídos da série originalmente escrita para compor a Série D. Quixote, de Portinari foram posteriormente publicados, a série completa, no livro “As impurezas do branco”, Ed. José Olímpio, 1973.

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