Fez bem a Monsanto em editar um livro-album para registrar, neste ano de 1987, a melhor pintura primitivista que se faz atualmente no Vale do Paraíba, região que compreende tanto o rio lendário, ao norte, desde o sopé da Serra da Bocaina, até a planície do eixo Rio - São Paulo, beirando a Via Dutra, até a Serra da Mantiqueira, nos rumos de Minas Gerais.
Eta mundão bom, no dizer dum cantador popular de São José dos Campos, cidade moderna e muito industrializada, já chamada a capital do Vale, por sua importância econômica gente às demais, com um surto de progresso que faz lembrar uma São Paulo um pouco menor. Um mundo que não esconde, ao contrário, expõe e exalta a cultura popular do Vale do |Paraíba, mostrando a profunda autenticidade de seus artistas ingênuos e espontâneos.
Um trabalho, aliás, que já vimos há alguns anos exposto e cantado em prosa e verso no Museu de Antropológico de Jacareí, fundado por Osmar de Almeida em 1979, trabalho dignamente continuado e ampliado pelo psicólogo e museólogo Aldemir Morato de Lima, paraibano de boa cepa, cujo levantamento do folclore e das manifestações populares do Vale, em especial da pintura primitivista, propiciou exposição badalada e a colocação dos artistas vale- paraibano na constelação maior da arte do Estado.
Morato de Lima, a quem se deve o trabalho de apresentação deste livro, já destacava na ocasião o papel centralizador da Via Dutra e do Rio Paraíba na vida da região, e toda a gama de identidades à sua volta, sociais, econômicas, culturais ou antropológicas. A esse quadro se soma a tradição do Vale na arte santeira, na arte figureira, na cerâmica figurativa, no artesanato, nas festas populares – uma realidade informada por seus artífices-artistas, que, com sua criatividade, tornaram toda a região uma comunidade produtora de bens culturais, chamando a atenção da museologia e dos colecionadores, da crítica e do público comum.
A pintura primitivista do Vale do Paraíba segue, assim, uma trilha de raízes regionais que alcança o nacional, como queria Mário de Andrade, ao defender a cultura popular como base de uma vivencia sócio-cultural do artista, face à realidade brasileira contemporânea. Eles são, em seu todo, alegres retratadores do cotidiano em que vivem, das festas folclóricas às lides da roça, da urbanização crescente das cidades aos causos e lendas que a traição oral e escrita passa de pai para filho. Cada um em sua comuna vivem integrados e alguns já se sustentam de sua arte, com produção e venda certas, muitos deles até com freguesia anotada em centros maiores, como Rio de Janeiro e São Paulo.
São bons artistas, os 14 selecionados para esta obra, e que procuramos em seus locais de trabalho, em seus ateliês, em suas casas, nas praças domingueiras, e até formando um clube, o GAVA – Grupo de Artista Vale - paraibanos, com sede em Taubaté, sob o comando de um mestre-escultor do porte de Demétrio. Daí porque a arte que produzem ora tende para o fato vivencial, ora para o folclórico, ora para o referencial de lendas ou para a pura introspecção, dando um colorido e movimentação temáticos facilmente provados nestas páginas.
O mais importante, por fim, na obra destes primitivos, é que, além do retrato fiel que elaboram de seu viver citadino ou no campo, estabelecem sempre uma identidade com as festas do Vale, profanas ou religiosas, tradicionais ou popularescas. Pois parecem viver uma festa permanente, esses artistas autênticos, documentando com suas pinceladas a vida cotidiana, o rio lendário, a serra majestática, o céu límpido do Vale do Paraíba. E as festas, muitas festas, de Jacareí e São José, Taubaté e Guaratinguetá, Pindamonhangaba e Silveiras, São Jose do Barreiro e Santa Branca, Tremembé e São Luiz do Paraitinga.
Aí estão esses verdadeiros mestres: Toninho Mendes (Antonio Mendes da Silva) e Adão Silvério, de Redenção da Serra; Carolina Migoto da Silva e Lea Rico, de Taubaté; Grácia B. Oliveira, de Tremembé; Herculano Cortez da Silva, de Silveiras; Ismênia C. Faro e Francisco de Assis Santos, de Guaratinguetá; Pedro Peloggia, Scila Peloggia e Alex Peloggia, de Jacareí; Geraldo Magela, de Santa Branca; Lenice Lopes da Silva, de Cunha; e José Carlos Monteiro, de São Luiz do Paraitinga.
Os 14 do Vale representam outros mais, que, por uma questão de metodologia e espaço, não pudemos incluir aqui. Faríamos finalmente um referencia especial à Maria Santeira, primitivista mística dessa última cidade, falecia há três anos, mestra da arte incomum, hoje um dos pontos de apoio da arte contemporânea, como se viu recentemente em grandiosas mostras no Museu de Arte Contemporânea de Paris e na XVI Bienal de São Paulo.
Junho de 1987.
Luiz Ernesto M. Kawall
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