sábado, 29 de julho de 2017

“A CASA DE MEU AVÔ”


Entre as obras literárias de Carlos Lacerda, escritor, destaco o livro “A Casa do Meu Avô”, biográfico, em que o jornalistas e político retrata sua infância, em Vassouras (RJ), ao lado de seu avô Sebastião Lacerda. É considerada a obra prima literária de Carlos Lacerda. O trecho que abaixo reproduzo, extraído das páginas 124/125, é simpático e primoroso. L.E.K.

 “[...] Entro no quarto, que não era só meu. Era também da Babá. Não me lembro dos meus sonhos propriamente ditos e sim dos que não levavam esse nome, e independiam da cama e do sono. Esses eram recorrentes e monótonos, havia sempre uma perseguição, uma tentativa de me livrar sem conseguir, uma voz que não saía, uma voz que não se consumava, uma espécie de prisão sem grades – e uns imensos espaços vazios, que eu percorri em velocidades vertiginosas, ou ao contrário, passo a passo, macio e demoroso. Creio que havia uma componente narcísica, como diria hoje, nos meus sonhos. Mas recentemente um entendido, duplamente, porque além de psicólogo de nascença é um narciso ele próprio, disse-me que o mito tem sido muito mal interpretado. Ao contrário do que se pensa, Narciso não morreu por se apaixonar por sua própria imagem. Apaixonou-se por uma ima imagem que ele julgou não ser a sua. Morreu de tristeza por não ter a imagem que viu e pretendia ter por sua. Desgostoso consigo mesmo, cobiçando imagem alheia que era a sua sem que ele soubesse, eis a interpretação correta do meu amigo psicólogo a quem não falta fantasia. Recolho nesse pequeno quarto de tábuas apodrecidas os escombros dos meus sonhos na casa do meu Avô. Esparsas lembranças, imagens repetidas, símbolos reiteradamente afirmados, o pequeno vulto perdido num desperdício de espaços pequenos, a percorrer o mundo descalvado – essa tristeza que cobria tudo, que só se desfazia quando chegavam os guerreiros e bandidos, então era preciso libertar a princesa aprisionada no galho maior da mais alta mangueira, e surtos de fogo jorravam da terra, entre eles se esgueirava ao vulto flexível do moço que corria a redimi-la, que era eu transportando-a no alazão que eu, o meu outro eu alado e volátil, carregava num tropel sobre folhas e nuvens, rompia a noite e caminhava na alvorada, suave palor nascente na mata, ainda hoje sinto o cheiro de ervas pisadas, folhas mastigadas pelo caminho, tenho numa orelha a cicatriz do espinheiro que a marcou para sempre numa disparada do cavalo, esta sim, verdadeira, quando, mais tarde, depois duma cachaçada num armazém remoto, do lugar chamado Massambará, montei bêbado para voltar sem saber o que fazia nem para onde ia. Neste casto quarto de menino que apenas adivinhava os arrepios da carne e o que ela lhe reservava, meus sonhos eram precedidos do lento caminhar de uma aranha na cal da parede, da lâmpada solta que pendia apenas amparada por um protetor de louça todo em bicos, debaixo do qual a lâmpada luzia com seus filamentos em riste, formando um desenho que a custo fitava, antes de adormecer.

trecho extraído do livro "A Casa do meu avô" - Pensamentos, Palavras e Obras. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1977.

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