EM 1944 ele apareceu de grossos óculos no Congresso de Escritores na Biblioteca Municipal, que pedia democracia no Brasil da ditadura, e sentou-se à ponta de mesa onde estavam Torelly, os dois Andrade, Sérgio Milliet, Jorge Amado, tantos lotadores e democratas. Da torrinha, foi a primeira vez que vi entre nós. Morou nos anos 40 aqui, com seus amigos Aparecida e Paulo Mendes de Almeida, no Paraíso. Era glutão, trazia todas as noites – após o trabalho no Readers da Associação Comercial (com Gontijo de Carvalho) e na Rádio Gazeta, onde revelou... Cacilda Becker, teatralizando para o rádio peças famosas – queijos e pães italianos, que comia com Letícia, em longos serões pela noite. A essa época já agrupava amigos e empolgava nas conversas, gênio brasileiro.
Em 47, lá estava o Carlos falando na Faculdade de Direito, as Arcadas lotadas, sobre a missão da imprensa. Um amigo nos apresentou e eu quis apanhar a palestra escrita para o jornal da Casper Líbero. Não deixou, com brusco gesto, afirmando que a Vozes editaria o seu texto – o que logo aconteceu. Em 50, formei-me naquela escola católica, ele foi paraninfo da nossa turma, e, desde então, trabalhei com Carlos, profissionalmente, sob o seu comando na Tribuna da Imprensa, até 1964 e, em pesquisas e outras ajudas diversas, até praticamente ele morrer, em 77, implodido com a situação nacional e sua própria condição de exilado no País.
Nos longos exílios e dezenas e dezenas de viagens, nunca deixou de manter contato com a gente paulista, seus amigos, com a São Paulo que visitava frequentemente, que compreendia e conhecia como poucos, gostava e exaltava. Afirmou que a missão de São Paulo era liderar o progresso nacional – social, cultural, político, econômico, tecnológico. Assim achava, assim agia aqui.
Aqui em São Paulo encontrou sempre apoio a suas campanhas políticas e jornalísticas; em 65, sua candidatura à presidência foi lançada no saguão de A Gazeta, em plena Avenida Paulista. Do hotel, por fio direto, ouviu todos os discursos iniciais. Gostava como poucos de uma pizza no Brás, que uma vez freqüentou com Amoroso Lima, Gustavo Corção, Nascimento Brito, Queiroz Filho e Franco Montoro; depois passou a comer os churrascos na Zona Sul, os refinados jantares de seus amigos dos Jardins. Nunca vinha a São Paulo sem se hospedar, ou estar, ou saber deles, com Maria e Roberto Abreu Sodré – amigos que amou até a morte – fiéis amigos até hoje deserdados pela brutalidade de seu desaparecimento. Ia à Rua Augusta, descobria lojas, freqüentava nossos museus – e teve uma briga com o professor Bardi, por criticar o Museu de Arte –, livrarias, sebos, passarinheiros, floriculturas, literatos. Nos últimos anos, se entusiasmava com a pesquisa da “Bucha... E quando, no Itaim, descobriu o nome de seu pai num arquivo secreto dum bucheiro, deu três pulos, ficou pasmo e hirto: “Então era isso! Era por isso que quando prendiam meu pai ele telefonava para este almirante (cujo nome figurava ao lado do Maurício Lacerda, no documento) e meu pai era logo solto...!”.
Era assim, Carlos, entusiasmado e entusiasta, fez um admirável livro, com Germano Zimmber, chacareiro que descobriu na ladeira ao lado do cemitério da Consolação, sobre nossas quaresmeiras, ninguém escreveu melhor que ele sobre o artista Octávio Araújo, que visitamos uma tarde, com os Grassmann, em Santo Amaro, curtiu Ademir, mas não gostava de Volpi, nem do se considerar Volpi o maior artista vivo nacional. Lia religiosamente o Estadão e respeitava, embora tantas vezes discordasse, do Capitão Julinho e de seus filhos.
Freqüentou a Louveira, sim, pela mão de um querido amigo, Alfredo Mesquita, como foi amigo sempre, desde o Rio, de Luiz Martins, de “Ciccillo” Matarazzo, de Orcar Segall, Carlão Mesquita, do padre Godinho, Afrânio de Oliveira, José Scarano, Carlos Alberto Aulicino, André Faria Pereira Filho, Antonio Pereira Lima, tantos outros. Curtia, enfim, a “paulistaniedade” com constância e o ardor criativo que foi a marca de sua vida.
Cá estou, saudoso nestes 5 anos da morte do grande brasileiro, que ousou mais que seu amor por viver poderia suportar, para umas referências à sua ação de líder, de jornalista, de companheiro, de político, em São Paulo. São relatos simples, que talvez possam melhor fazer compreender o homem, a figura de Carlos, desassossegado, irreprimível e espirituoso, capaz de comunhão fraterna, levando sua brava palavra nas conferências e nos comícios, na televisão e nas pizzarias, nas alegres tertúlias literárias e noites de boemias circunstanciais, e onde mais se revelava com rara inteligência do que era dotado.
Era de ver Carlos – e quem não viu, não verá nunca mais, esse mestre de oratória, no Des Oiseaux ou nas Arcadas, defendendo o bom combate, ao lado de Mangabeira e Jânio (nos começos), ardendo de fé cívica nos sindicatos de Franca ou Santos, orador magnífico no Automóvel Club, na Sociedade Rural Brasileira, na Federação das Indústrias, na Tupi e na Excelsior, nas entrevistas no aeroporto ou no Hotel Jaraguá, nas históricas reuniões da UDN, nos comícios de rua e praças públicas, formidável, voz candente e sonora, arrebatado, o grande tribuno nacional deste século. Nas campanhas, era sempre o último e mais extenso orador, inflamando e denunciando, levando de roldão adversários, demolidor e irresistível, como Juarez, Juracy, Queiroz Filho, Paes de Barros, Herbert Levy, Almeida Jr., Tuma, Paulo de Tarso, Segall, Helio Mota, tantos outros, em gloriosas jornadas cívicas. Lacerda não dormia, não trazia paz, era a convulsão em marcha, arrebatador e criador, vida predestinada, a beleza da palavra na hora certa e exata, força da natureza, exemplo de vida. Jânio, Carvalho Pinto, Garcez, Ademar, meteu-se com todos e compôs-se com todos, conforme os azares da política paulista, que procurava converter ao tom nacional de seu discurso político.
Na intimidade, é que conseguiu ainda mais prosélitos, ora indo às exposições de arte, de pássaros e de flores, ora percorrendo por longas horas dos jardins e cercanias, descobrindo o que a gente nunca sabia e não via, terminando a noite em restaurantes de que também ouvira falar, em lugares difíceis de chegar, mas onde sempre havia o melhor prato, o vinho mais especial, o rega-bofe mais requintado. Era um especialista em obras raras, discutia com Olinto Moura cada livro, capaz de falar de livros que comprava em Londres, Nova York e Paris, comparando edições e traduções, chegando a detalhes sobre cada autor, seu pensamento filosófico e ideológico, etc. e tal. (...)
Para não cair no folclore, fiquemos por aqui. Tem o Carlos que se encantava com os desenhos de Grassmann, a doce presença de “Ciccillo”, a amizade de Bruno Giorgi, a confiança de Guilherme Kawall e Paulinho Carvalho, a confissão com o padre Calazans, as entrevistas ao Spera, Leporace e Maurício, Murilo Alves, a admiração que tinha pelo velho Julinho (respeito também, lia o Estadão com respeito e receio de discordar), o quibe com o David Maluf, com seus amigos de toda hora e os grã-finos também, colóquios com Cláudio Abramo, jornalistas, estudantes, jovens políticos, empresários e banqueiros, passarinheiros e floricultores, ia e vinha, vinha e ia o nosso Carlos, com seu sorriso e sua voz inconfundível, interrompendo a tudo e todos, porque sua presença transcendia, na rua ou no Museu de Arte, na tertúlia política e no bar, espírito de luz na terra.
Texto de LUIZ ERNESTO KAWALL, extraído do artigo “LACERDA A EMOÇÃO DA VIDA, 5 ANOS DEPOIS”, publicado na OESP, em 21.maio.1982)
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