sábado, 13 de agosto de 2016

TIPOS POPULARES


Poucos são os tipos populares de São Paulo. 

Ao contrário das cidades pacatas do interior, onde, no bucolismo provinciano. Logo se ressaltam as figuras esquisitas e exóticas, esta capital não apresenta sequer um número regular de pessoas excêntricas. 

A explicação para esse fato talvez tenha um caráter de “civilização”: tamanho é o espraiamento da cidade, tão grande é o seu bulício, tão absorvente é o seu ritmo de vida que, dentro dessa turbulência quase mecânica, os cidadãos são meros autômatos ambulantes, muito iguais, muito uniformes, muito semelhantes e, sobretudo, muito “cocacolizados”, nas próprias suas características de pessoas humanas. 

Mesmo assim se conhece, pelas adjacências do Triângulo, três ou quatro tipos bastante populares. Um deles, o mulato arrogante e hipernóstico, invariavelmente está na rua São Bento, onde faz propaganda de bugigangas várias: bonecos (“chumbeados) que “dansam”, fitas métricas de “cem centímetros”, o ”descascatório” para batatas, e mais umas bolas de ar “prô seu Joãozinho”... 

Não sei como vive esse homem. Louco, ou quase, quando algum freguês menos avisado se aproxima para comprar um dos produtos, ele esbraveja: “Vai’mbora, vai’mbora!”... Depois, espaventoso, continua sua diletante ocupação, sob os olhares de comiseração da turba açodada. (A fileira dois garotos engraxates “vai graxa, mestre?” é que se diverte com o cotruco, e, especialmente, com a verecundia rubra-escarlate do freguês agastadíssimo.)

Popularíssimo, também, é o “vovô” do Viaduto do Chá. Quem, nunca escutou o refrão monótono, candente e simpático “A nova Constituição”, “A lei do Inquilinato”...? Com sol ou chuva, eleição ou tempestade, lá está ele no Viaduto, apregoando sempre a nossa (quase velha) “Nova Constituição” e a sua (nem sempre respeitada) “Lei do Inquilinato”... 

Pobre e velho, absolutamente não aceita esmolas. Certa vez quebrou um braço. Mesmo assim compareceu ao “ponto” com sua pinha de porta-estandartizada de livros e folhetos. Só desta vez, quem assevera é o Chico Hellmeister, pediu ajuda. Então, num gesto amplo, suspendendo o braço incólume bem para o alto, e o apontando, depois, para o engessado, suplicava com sua voz entre “Largo” e “Disparato”: “Ajuda o vovô, ajuda o vovô”! 

Muito o tem por um coitado. Talvez lhes advenha essa opinião por causa da figura e indumentária grotescas do “vovô”: o chapéu sempre murchoso e desabado, os cabelos alvos em desalinho, emoldurando o pescoço, o terno (eterno) ridiculamente grande, presente, talvez, de gordo e demagógico candidato à deputado. Eu, porém, sou de outra opinião. Admiro-o muito. Sempre reparo na nobreza espontânea de seu orgulho, quando pronuncia estas palavras”A nova ortografia; quem não quer ler venha falar comigo”. E contou-me o agitadiço Edson Coelho, da revista “Carroussel”, já o ter visto, por várias vezes, esbravejar contra alguns moleques e brincalhões ostensivos, nos seguintes termos: “Vá trabalhar, vagabundo. Que está fazendo no Viaduto uma hora dessas?!” 

 O digno “vovô” do Viaduto é mesmo um monumento maior que trinta e três prédios Matarazzo juntos.

A IMPRENSA – Maio de 1950

CORREIOS E TELÉGRAFOS

Os Correios e Telégrafos de São Paulo são uma certidão exatíssima de como nossa terra é tratada por parte do Governo da União. Descaso deprimente afrontando todos os dias o brio do paulistano. Repartição burocrática dentro do dinamismo da cidade. Capítulo triste de uma história nefasta de ridicularizantes serviços. Oito letras do vergão de uma chibatada nas costas do paulista: Vergonha! Sim, é vergonhoso o Correio de São Paulo! Instalações acanhadas, cortiços em forma de salas, sujeira pelos corredores, mal distribuídas as secções...

Os avisos ao público são feitos á mão, ao correr da pena, no apanhar de um papel; meles, as caligrafias cansadas dos humildes funcionários rabiscam, em generalizada confusão, dizeres e indicações. “Cartas expressa” é o fel amargo que bebemos todos os dias. Na secção do “Registro” é preciso ter-se à mão o imenso fio de Teseu, para que não nos percamos pelas indicações de numerosas flexas, que indicam sempre seja aquele próximo guichê, o problemático e futuroso “Registro”... As cartas aéreas devem ser colocadas em caixão bárbaro de tão rude, rabiscado, pequeno, receioso no seu cantinho quase invisível. Luta-se na epopeia da conquista de meia grama de cola para o envelope; nervoso é o amontoado das pessoas, o pincel é demagogia, imundíssimo é o mármore e a cola... 

As cartas de porte simples o Correio, em legislação única no mundo, pode enviá-las ou não; quanto às expressas e registradas, essas o Monstro se compromete levá-las ao seu destinatário; mas se elas se extraviarem, queixe-se a quem? 

São freqüentes as discussões na secção dos telegramas: “Não há troco” – “Passei esse telegrama há dez dias...” – “Em Vila Carrão não entregamos” – “Só passamos em português” – “Além dos 2,50 são 4,80 a mais” – “Desculpe: o expediente já fechou...” Alias, o casarão não é notívago: já às dez horas da noite, em fato virgem nas grandes Capitais, Morfeu deita em berço esplêndido,para seu descansar burocrático, o conspícuo e solene Instituto... 

Certa vez, o fato é verídico, aconteceu a um cidadão aqui da Capital colocar carta no Correio endereçada a um morador À Rua Rio de Janeiro, poucas quadras adiante donde residia. Carta expressa e registrada. Demorando a resposta dirige-se o infeliz à Secção de Reclamações do Grande Polvo: fazem-no lá saber que sua carta fora, por engano,enviada ao Estado do Rio de Janeiro..“Mas é muito simples: o sr. enche este requerimento, paga os selos devidos, e manda-a buscar. Si ainda não vier? Ao, faz-se outro , amigo, dirigido então ao Delegado Regional...” Pobre terra! Que o menor dos males seja mesmo a morte, selada, registrada e expressa (apesar de tudo)! 

Os funcionários são poucos e estão ma alojados para tanto serviço: por isso as filas imensas e a má vontade de muitos. Às vezes as discussões ecoam pelas penumbras pelas penumbras (o termo é real), tornam-se ásperos os vocábulos. Entretanto, já no topo dos guichês, os cidadãos são prevenidos, pela maneira mais anti-psicológica possível, de que “Pelo artigo ... da Constituição Federal,será punido, com pena de ]reclusão ou multa , todo aquele que desrespeitar o funcionamento em serviço”... 

Para mim a culpa disso tudo é do Jeca Tatu. Sim, pobre casarão dos Correios, infelizes funcionários, sofredor povo paulista. Vós sois somente vítimas do apalermado Jeca Tatu, que se acocorou desde 1930, no Catete, embasbacado pela Guanabara belíssima, e que se chama Governo da União... 

A IMPRENSA – Outubro-Novembro de 1949

RUAS DE SÃO PAULO

As ruas de São Paulo são... as ruas de São Paulo.E com a licença do Acácio, os nomes de nossas ruas são... os nomes de nossas ruas... Rua da Taquara Branca, Francisca Biriba, em Santana; Amélia Perpétuo, num bairro, Rua Formosa, tão feia...; a Rua F... 

Tristezas na Rua Alegre, a Rua Direita, tão torta, o Triangulo de quatro lados, por que a Rua Biobedas? As trinta e duas ruas Francisco..., quarenta e sete Maria..., sessenta e seis Coronel..., Antonio... sessenta e um. Rua do Gado sem vacas, do Barulho muito quieta,falta o “h” na Baia, Palmeiras sem palestrinos... 

D.Pedro I – o traquinas – em praça grande é cultuado, num parque tem o seu nome, que bela é sua Avenida! D.Pedro II – tão digno – homem culto e de trabalho, monarca Mecenas do Império, ideais em seu governo, caráter reto e notável: humilde e estreita é sua rua, em São Caetano ela está, feia, tosca e mal traçada... 

São quatro as ruas dos vivos: Altino Arantes e Washington, a Presidente Carmona, e, no centro, a Wenceslau Braz. 

Os trocadilhos e Boso, sobre as ruas de São Paulo, são famosos e notórios: “Às vezes a Prefeitura, reforma tanto em Higienópolis, que o bairro fica Porcópolis... Mas, então, basta Ser... jipe, pra nunca mais se Pará, mesmo estando na A... lagoas...” Pediram-lhe um dia fizesse, um trocadilho bem rápido, sobre a Rua Avanhandava, m que estávamos passando: “Ah! vai andá vá!” 

Antonio de Alcântara Machado foi cronista realismo da Rua Caetano Pinto. Mas ainda estão lá as Carmelas, os Gaetaninho safados, os “carcamanos” robustos de seu “Braz, Bexiga e Barra Funda”. Dos sírios è a Vinte e Cinco de Março e os espanhóis “yo soy contra”, comerciam ferro velho ma Rua Piratininga... E os corretores de cambio, descascam seus “abacaxis” (e logo a gente os “divisa”) na velha Rua da Quitanda... Os tubarões têm a Florêncio, dos bancários é a Rua Quinze, e os “bonitos” e as “mepesca”, têm seus anzóis na Barão... 

A Rua Pequena? Tão grande... Das Violetas, sem violetas... Em seu calçamento mal posto, a Original é normal... Sossego e quietude se vê, perdoe o Parnaso a heresia, na Emílio de Menezes... 

Ruas, ruas de São Paulo! Incoerências sublimes... Mas me deixem em paz um dia, no cemitério tão calmo, na Rua da Consolação (agora sim).
 A IMPRENSA – Setembro de 1949

O DINAMISMO DA REGIÃO CENTRAL

Nenhum outro lugar de São Paulo espelha com maior exatidão e fidelidade o dinamismo de nossa Capital do que o trecho compreendido entre as Praças do Correio e Antonio Prado. Ali naquela ladeira – desembocadouro das ruas mais movimentadas da cidade – depreende-se pode-se dizer, toda essa inata quão admirável energia paulistana. 

Principalmente à tardinha, uma sôfrega multidão superlota as calçadas, com as pessoas comprimindo-se entre si num afã quase pânico de andar mais depressa, de passarem umas à frente das outras; a agitação nessa hora é um misto de observar (às vezes, evitar) os sinais de trânsito ou de apanhar logo os bondes para os bairros. Por isso, toda aquela sofreguidão de andar mais depressa, de correr, de voar até, se isso possível fosse. Cada um tem um inadiável destino a cumprir. Até os mais calmos, sentindo-se envolvidos naquele turbilhão de pressa, também, se agigantam nos seus passos e então, adquiridos já dessa estranha “neurose dinâmica”, são outros mais a empurrar e correr. 

Os vendedores de bilhetes de loteria postando-se nos lugares-chaves da ladeira somente azucrinam a paciência dos pedestres com os febris “Hoje dá o macaco!” – “É o macaco para hoje” – “Olha o 18” – “É o último, o último”. Os pregões dos jornaleiros, por sua vez, se cruzam com os silvos estridentes das buzinas de carros neurastênicos e com os intermináveis apitos dos guardas de trânsito. 

Nos letreiros, os anúncios e reclames os mais variados cintilam em verdadeiras apoteoses de luzes e cores, desde este do “Homem que está passando 12 dias e 12noites se comer nem beber”, até aqueles dos fotógrafos que se propõe tirar e revelar “Fotografias em 5 minutos”. E as salsicharias, os bares e os cafés? Neles se pode observar, num mourejar contínuo, toda uma laboriosa e solícita hierarquia de empregado, dos esquálidos servidores dos cafés aos rotundos gerentes dos estabelecimentos. Sobretudo, há um restaurante tão mecanizado e rápido no seu sistema de servir que, nele, ao simples colocar de seus correspondentes valores, os pratos mais variados aparecem como por encanto. Em tudo há movimento, há agitação.

Em meio a tudo isso, as pessoas fazem-se notar por sua diversidade de tipos: junto às assanhadas mas humildes caixeirinhas ou às pálidas servidoras dos balcões, vão, todos circunspectos das suas regalias os “tubarões”, ou os senhores das sinecuras mais rendosas.Junto de um preocupado operário está um advogado aristocrata, perto do “oficce-boy”, o corretor. Naquele pedacinho de avenida, no entanto, às 18 horas, todas as castas, tradições e riquezas se nivelam, perante aquele ciclone da pressa e da preocupação. 

A ladeira São João é a Capital erguendo-se em seu dinamismo espetacular e formidável; e hoje ela bem representa, sem dúvida, essa insuperável fibra dos impolutos bandeirante de ontem. 

 A IMPRENSA – AGOSTO DE 1949

OS DONOS DAS RUAS

Os caminhões são bem os donos das ruas de nossa Capital. Barulhentos, acordam a cidade com o ruído dos motores e os guinchos de suas engrenagens. Resolutos, suplantam os carros menores fechando-os nas curvas, cortando-os nas retas,soberbos, na fortaleza do chassis e com a intrepidez de seus choferes. Impávidos, andam calmamente pelas ruas estreitas ou estorvam o transito mais organizado.

E ai! si o descuidado sinesíforo daquele humilde “Fiat” parou seu carro na frente de um deles: pode estar certo que ouvirá uma interminável hierarquia de desaforos, atirados à sua descendência, em altos brados, pelo motorista esbravejante do caminhão... 

Contudo, os dísticos dos seus pára-choques (a Diretoria de Transito, em portaria inoportuna, acaba de proibi-los, como si pudessem ser freados os sentimentos dos cidadãos) nos oferece um aspecto psicológico, pois fala neles a alma dos choferes, que não nos furtamos de exaltar. Existem mesmo alguns bastante valiosos. Uns, por exemplo, são orgulhosos, objetivos, imponentes: “Sai da frente” – “Leão das estradas” –“Tigre das areias” – “Come rampas” – “Ou vai ou racha” – “Nem te ligo”, etc. Outros são mais lânguidos, dolentes ou feminis. Decerto foram feitos por sentimentais choferes, platonicamente saudosos de suas namoradas... São exemplos: “Eu e você...” –“Bom dia, morena” – “Adeus ingrata” – “Saudades da lourinha”- “Mostra as pernas, mulata”, etc. 

Sobretudo, há um dístico que bem pode ser considerado como encarnação dessas duas espécies – do orgulho e do feminil – e cuja feitura felicíssima por certo lhe dá o mérito de ser o “!primus inter pares” desses lemas de caminhões. É ele, esse notável “Cuidado com meu beijo...” 

Certos dísticos em sua rude simplicidade, clamam por um protetor: “Deus nos guie” – “Vou com Deus”, ou são esperançosos de outras graças: “Vou com minha boa estrela”. Á respeito, conta-se o fato de um desastre entre dois caminhões no qual o chofer de um deles, ficando estraçalhado, perdeu a vida. Curiosas, as testemunhas deste trágico choque cuidaram de saber quais os dísticos dos caminhões sinistrados. O estarrecimento que tiveram ao lerem no para choque do caminhão cujo motorista morreu, um crente “Vou com Deus”, segui-se ao horror de verem, no ileso, um mordacíssimo “Já vai tarde”... 

Certos dísticos refletem bem a chamada filosofia popular. São pequenos ditos chistosos, alegres frases ou simples epítetos, usados na sua maioria pela gente pacata dos bairros. Temos os exemplos: “É por que é” – “Não faz hora comigo” – “Já vou tarde” – “Vai por mim que vai bem” – “O Biriba esteve aqui”, etc... Existem mesmo alguns cheios de exaltação, prenhes de patriotismo: “Isto é São Paulo” – “Viva o Brasil”.

Ainda bem que não apareceram dísticos relacionados com política. Porque si os seus dizeres apresentassem as ironias, advertências ou reprovações que merecem os nossos governantes e políticos (“Demagogo dos pampas” – “Que dê as promessas” – “Marmita... de ouro”, etc.), sua crua realidade, no entanto, mais refletiria essa triste situação de nosso país que a todos nós é dolorosa. 

A IMPRENSA – Junho-julho de 1949

ALFAIATES

Alfaiates... 

Não é fácil falar de alfaiates. 
Paradoxalmente, nunca acreditei que esse assunto desse mesmo muito pano para mangas. 
Com riscos, principalmente, de perder-se o fio da meada. 
O que, em se tratando de costureiros, poria a perder, também, tudo o que Marta fiou. 
E o que cronista confiou. 
Alfaiates... 
Levei mesmo algum tempo costurando alguns alinhavos que me permitissem o remate final. 
É verdade que para abordar certos fatos, tive que tecer algumas considerações, em várias linhas. 
Mas, isto, segundo os fregueses mensalistas destas crônicas, é resultado do feitio do meu terno e arrevesado modo de escrever. 
Sobretudo do meu terno. _ .

 – Alfaiates...
Existem, em São Paulo, de todos os tipos, para todos os gostos; existem os das classes mais favorecidas: os ternos impecáveis, os coletes ajanotados, os vincos das calças caindo com perfeição. Existem exímios para os “dons-juans” glostorados da Barão de Itapetininga; o terno-saco beirando os joelhos, exagerados os enchimentos dos ombros, e italianamente estreitas as calças, com bainhas e barras que abotoam os calcanhares. Existem os especialistas em ternos para os “Tarzan, filho de alfaiate”... Neste grupo, o nome já indica, talvez se possa incluir a alfaiataria “Adonis” da Líbero Badaró e a “Perita”, da rua São Bento. 

Há alguns alfaiates de nomes intrincados, acusando sua descendência: Bagdonas Alexander, Arruda Olavinho, Sierra Capuccio, Swaletz Boieiras, Credidio Credidio, Mordea M Rochwerger, S.Schivartche,Yokata Motimasa, Sanshowsky, Berco Chaim Rollnich e outros. E algumas alfaiatarias de compridos nomes: Alfaiataria Irmão de Paulo, Alresa – Alfaiates Reunidos Sociedade Anônima, etc. Mas, todos decerto, trabalham mais depressa que o alfaiate Cilento, da rua José Bonifácio. 

Na Vila Mariana existe um Bueno, Alfaiate. Na Espanha, dizem, era um mau costureiro. No Brasil, especialmente naquele bairro, tornou-se Bueno Alfaiate, Questão de trocadilhogia... 

Por sua vez, o bairro de Perdizes apresenta uma das mais importantes costureiras da capital. Mora à rua Cardoso de Almeida e chama-se Sofia. Sua freguesia é enorme e selecionada. Não faz outra coisa senão costurar. Na verdade, só fia. Apesar disso, não acumulou ainda grandes ganhos: só fia... Imagina-se que tal costureira nunca conseguiria escrever novelas; no máximo, editaria novelos. 

Três vezes alta! Uma costureira do bairro da Aclimação, chama-se dona Auta, é alta, e em altas costuras é especialista. 

Mas é mesmo cheia de percalços a vida dos alfaiates. As cobranças em prestações são comuns. Mais comuns ainda, no entanto, são certos “esquecimentos” dos prestamistas. Talvez por isso, a esse conjunto de fregueses, o nome de uma alfaiataria da Praça da Sé, (Grassi, Deves) é bastante psicológico. 

Certos “magazines” têm também sua alfaiataria própria. É o caso, por exemplo, de A Exposição, da Praça do Patriarca. Aliás, essa casa, recentemente numa de suas liquidações, colocou à entrada de sua secção de roupas, uma faixa enorme, onde se liam os dizeres: “Liquidação de fato”. Esse “fato”, aliás, foi comentadíssimo. Dizem que o trocadilho daquela faixa foi feito sem querer, inconscientemente. Neste caso, penso, seria um trocadilho de direito, não de fato... 

Mas nome interessante mesmo, para a sua profissão, é o do Sr. Catapano, que tem alfaiataria à Rua Líbero Badaró, perto da Rua José Bonifácio. Esse, decerto, passará a vida toda trabalhando a todo pano... Em compensação, quando morrer, poderá merecer um epitáfio mais ou menos assim: 
“Este alfaiate morreu 
E já faz bem quase um ano; 
Morreu de tanta costura, 
E ainda assim, 
Cata pano!” 

Mas deixemos de tesourar os alfaiates.

BALBURDIA ORTOGRÁFICA

Não queremos apontara aqui as causas coniventes com essa balburdia ortográfica que vai pela nossa Capital. Por isso, deixemos de lado a inércia dos governantes quanto a essa questão, e as incessantes, mas inócuas, regras dos gramáticos. Aqui somos cronistas, de críticos não nos vestimos. 

A realidade é que esta pobre terra de Piratininga, tão vaidosa de suas tradições, de suas grandezas, de sua responsabilidade perante os outros Estados, apresenta, aos visitantes, um contraste chocante no que concerne aos seus letreiros, cartazes, rótulos, inscrições, taboletas e anúncios. Neles se vê coisas incríveis! 

Uma confeitaria na Avenida São João, por exemplo,vende, há mais de três anos, “Doçes” (sim, com cedilha)... Outra, por sua vez, anuncia “Sorvetes de côcô” ... 

Na Rua Barão de Itapetininga existia, até há pouco tempo, uma loja que apresentava ‘Meias para senhoras de seda”... E os tradicionais “Aqui vendem-se casas”, “Aqui vendem-se relógios”? 

Certo bairro tem um “Butikin”... Outro, um “Gymnasio”... Aqui é de prever-sr a instrução das aos alunos... E os que estão matriculados nas suas “Aulas de Dactylographya”? 

Sobretudo há uma padaria tão revolucionária, que não se peja de apresentar em seus dizeres um incrível “Pannnificadora”, com três nn! Talvez é por que vendam ali pão de três tipos: amanhecido, embolorado e pão que o diabo amassou... 

Lá está, no Cemitério do Araçá, um espalhafatoso Aqui Jazz. E o infeliz morto não era nenhum regente de orquestra... 

Numa casa da Rua XV de Novembro, lê-se no letreiro: “Ótica Dental”? Entretanto, desconhece-se um capítulo Dental, na Ótica Física. E também um ramo Ótica, em Odontologia. Por que, então, “Ótica Dental”? Mas, suprema confusão, os produtos que se vendem em tão misteriosa casa parecem não ser dentais, nem óticos: outro letreiro, estabelece, ali, uma “Perfumaria”... 

Um comerciante das cercanias da Estação da Luz parece ter descoberto o mistério da própria existência, pois fabrica uma coisa que, antes de ser, já era! Si não acreditam, vejam o que ele faz: tem uma “Fábrica de Móveis Usados”... 

Ah! Si os paulistas fossem aquele personagem de Monteiro Lobato, que morreu vítima de uma má colocação de pronome... Na verdade, que não seriamos nós, si fossemos outros Aldrovandos Cantagalos? 
A IMPRENSA – Maio de 1949

PSICOLOGIA DO BONDE

Uma lástima, é o termo que mais se coaduna com a análise do serviço de bondes em São Paulo. A carência de carros e a sua impontualidade. Primeiro, e a falta de conforto e os deseducados cobradores, depois, são para o paulistano um suplício, suplício este que se torna calvário de cada dia, pois sem tomar seu cafezinho e o seu bonde diário os habitantes desta terra de Piratininga não ficam... 

Isso, falando materialmente. Na parte espiritual, o bonde é, antes de tudo, um veículo... de psicologia. Nele, os estudantes dessa ciência de Freud encontrariam um farto material para suas observações. Porque em nenhum outro lugar a alma humana fica tão devassada como nos bondes. Por quê? Complexos, recalques? Talvez. Psicologia das multidões? Quem sabe. Mas, deixemos falar os fatos que, mais que as palavras, eles evidenciam por si sós. 

Vejamos primeiramente o sentimento de curiosidade. Já repararam na curiosidade dos vizinhos quando estamos lendo alguma coisa? Já notaram o esforço que despendem procurando ver o que estamos vendo, observar o que estamos observando? Incrível o não podermos tirar o mínimo objeto possível dos bolsos sem que a atenção não os penha de sobreaviso para saber o que seja! 

Notório também se mostra o escárnio para com o vexame dos outros passageiros. Como gostaríamos de ver o próximo em má situação, sofrendo os impropérios dos condutores, rendendo-se aos seus insultos... O cinismo não passa despercebido também. Que comoção, que pena, que sofrimento vai pelo bonde se atropela um pobre gato caolho! No entanto, por um passageiro mutilado ou defeituoso, ninguém se compadece. E quanto de cinismo há na atitude de certas pessoas que, para subirem num banco, mostram-se todas corteses e bem educadas, mas, à saída, nem soltam um simples “Com licença”. 

Mas, é sobretudo pela exibição de si mesmas, pelo luxo de serem notadas, é que algumas pessoas querem, nos bondes, evidenciar mais sua arrogância, sua pretensa superioridade. Então, os homens tidos como os mais corteses tornam-se os mais mandões, questionando alto pelo troco, blasfemando por alguma parada nalgum cruzamento, soltando grossas baforadas de mal cheirosos charutos, nos vizinhos. Outras mulheres, por sua vez, - fazendo do bonde o confessionário do mundo – comentam questões íntimas e escabrosas o mais alto possível; e demoram para tirar o correspondente às passagens dado à enormidade de bolsas e de bolsinhas, das quais fazem alarde, que se abrem e se fecham com grande bulha. 

Bem que essa psicologia dos bondes nos entretém e consola. E só por isso não os temos por abomináveis. 
A Imprensa – Abril de 1949)

O DÉCIMO SEGUNDO CONGRESSO NACIONAL DE ESTUDANTES

SESSÃO INAUGURAL – OS TRABALHOS – A ELEIÇÃO – NOTAS 

 O décimo segundo congresso da União Nacional dos Estudantes foi realizado este ano em Salvador, Bahia, homenagem que a entidade mater dos acadêmicos brasileiros quis prestar á velha e tradicional cidade fundada por D. João III, exatamente há quatro séculos. Recebeu, portanto, a antiga Capital do Brasil, mais de quatrocentos universitários de todo o país, tendo as diversas delegações se acomodado em vários logradouros da cidade, especialmente reservados para esse fim. Para a maneira cortes e dedicada como foram tratados indistintamente uns e outros, muito contribuiu, sem dúvida, a costumeira hospitalidade da gente bahiana e, em particular, o desvelo solícito e amável dos diretores da União de Estudantes da Bahia, comandados por esse admirável anfitrião seu presidente que é Ewaldo Solano Martins. Aliás, por parte do governo da Bahia também receberam os congressistas todas as atenções, tendo mesmo o Sr. Ivis de Oliveira, oficial de gabinete do governador Otávio Mangabeira, posto à disposição dos visitantes todos os elementos necessários para que a sua estadia fosse a mais agradável possível. 

SESSÃO INAUGURAL 
O congresso foi inaugurado no dia 17 de julho, às 20 horas, no salão nobre da Faculdade de Medicina, em sessão solene presidida pelo acadêmico Ubaldo de Maio, presidente da U.N.E., tendo comparecido, além de representantes oficiais, o secretário da Educação da Bahia, prof. Anísio Teixeira que, em magnífica oração, saudando os congressistas, analisou, com atilado espírito crítico e inegável conhecimento do assunto, a situação atual dos estudantes brasileiros. Discursaram também representantes de todas as bancadas, tendo sido unânimes as palavras dos líderes em reafirmar seus sentimentos em relação às finalidades do congresso que seriam, sem dúvida, debater e analisar, dentro dos princípios democráticos, os problemas de interesse geral dos estudantes brasileiros. Por último ocupou a tribuna Waldir de Freitas Oliveira,da União de Estudantes da Bahiana que, em poema de sua autoria, de sincero cunho patriótico, saudou, um por um, todos os Estados da Federação. 

HOMENAGEM A CASTRO ALVES 
Grandiosa foi a homenagem que os congressistas prestaram, no dia da instalação do congresso á memória do grande poeta da terra de Rui Barbosa, Antonio de Castro Alves. Às 18horas, perante assistência das maiores, junto de sua estátua na Praça Castro Alves, saudaram o autor de “Espumas Flutuantes”, representes do Ceará, Minas Gerais, Distrito Federal, Paraná, etc.. Distingui-se, contudo, a oração vibrante do acadêmico Hugo Biochi, da bancada paulista. 

OS TRABALHOS NO PLENÁRIO 

Todas as sessões plenárias foram realizadas no salão nobre da Faculdade de Medicina, tendo sempre presidido os trabalhos, com absoluta justiça, Ubaldo de Maio, na ausência deste, Celso Medeiros, vice-presidente. 

De importância maior revela destacar as discussões em torno do projeto feito pelo Ministério da Educação denominado “Bases e Diretrizes do Ensino no Brasil”, ora numa das Câmaras altas. Foi relator das teses apresentadas em relação a esse projeto o acadêmico Costa Neto, do Distrito Federal. De maneira geral foram retificadas pelo Plenário as seguintes modificações: 
a) Para todos os universitários do país, freqüência livre nas aulas teóricas; 
b) Em todas as Universidades nacionais, concurso obrigatório para preenchimento de cátedra; 
c) No magistério superior, obrigatoriedade de concursos periódicos de professores; 
d) Rejeição do artigo que estabelece penas disciplinares a estudantes superiores. 

Ocupou também especialmente a atenção dos congressistas a situação do restaurante da U.N.E. que se encontrava fechado. Ao fim de acalorados debates foi decidido, em tese aprovada, a sua reabertura em caráter definitivo, continuando, porém aberto aos estudantes também o restaurante do Ministério da Educação. Foram aprovadas teses defendendo a construção de Casas do Estudante em todos os Estados, bem como seus respectivos restaurantes universitários. Em relação ao ensino superior noturno nas Universidades, foi aprovado, pro grande maioria, que o mesmo deve ser logo feito e regulamentado. 

BANCADA DE ECONOMIA 

Reuniu-se sempre a bancada de economia compostas de estudantes das Faculdades de Ciências Econômicas de todo o Brasil. Foi resolvido, de início, concretizar, para setembro, em Recife, o Congresso Nacional de Economistas. Presidiu a maioria das sessões desta bancada o acadêmico Arnaldo Lucas Cruz, de S. Paulo. Foram discutidas inúmeras teses, todas propondo emendas ao projeto encaminhado pelo Governo Federal à Câmara dos Deputados e desta ao Senado, propondo a regulamentação da profissão de economista. A tese global final, cujo relator foi o acadêmico Abreu Sampaio e que foi defendida em plenário pelo acadêmico Carlos Alberto de Souza Barros, ambos de São Paulo, constava de 43 itens e sugeria, em sua conclusão, a imediata aprovação do projeto referido. Destacaram-se nas reuniões desta bancada os acadêmicos do Distrito Federal, José Cal Gonzáles e Carlos Rezende. 

BANCADA DE ARQUITETURA 

Durante o congresso mantiveram-se os estudantes de Arquitetura em reunião permanente coma finalidade de reestruturar o seu órgão nacional: o Bureau de Arquitetura da União Nacional de Estudantes.Foram elaborados novos estatutos e tratou-se também da organização do II Congresso nacional de Arquitetura de Estudantes a ser realizado na mesma cidade do Salvador de 1º a 8 de outubro próximo. Decidiram ainda os congressistas de tal bancada adiarem as eleições do Bureau, ficando, porém, provisoriamente, na direção do mesmo acadêmico Slioma Selta, do Rio de Janeiro e como interventor Vicente Ferrão, da bancada paulista. 

 Interessaram-se também os futuros arquitetos, além de problemas gerais, de seu interesse, pela preservação das obras de Oscar Niemayer feitas em Pampulha, as quais se encontram em estado de lastimável abandono, e, ainda, pela reorganização do curso de Arquitetura da Escola de Belas Artes da Bahia. Ambas estas teses foram apresentadas pelo acadêmico paulista Antonio Carlos Alves de Carvalho. 

JORNAIS UNIVERSITÁRIOS 

 A imprensa universitária junto ao Congresso deu prova de robusta vitalidade, pois circularam com farto noticiário acadêmico, distinguindo-se entre eles “O Prisma”, “Lábaro”, “A Verdade”, “Unidade”, “Presença”, “O Tonel”, “Fanal”, e o “União”, este da União Estadual do Estudantes de São Paulo. O jornal do Centro Acadêmico “Casper Líbero”, nosso A IMPRENSA, também foi distribuído com grande aceitação, sendo unânimes os congressistas de vários pontos do Brasil em se declarar impressionados não só com a qualidade selecionada de suas colaborações como, sobretudo, pelo excelente aspecto gráfico, em que é apresentado, o que o torna, sem dúvida, órgão universitário mais impresso do país. 

PASSEIOS REALIZADOS 

Aproveitando as horas em que não eram realizadas sessões plenárias os congressistas visitaram os pontos pitorescos de Salvador e, sobretudo, “o que há de mais belo na Bahia: as suas igrejas” (Manuel Bandeira): a velha Catedral da Sé, a antiqüíssima Conceição da Praia, a humilde da Palma e a majestosa Igreja de São Francisco, cujo barroco harmonioso e fulgurante da ornamentação deslumbrou os visitantes. Também, foram visitadas a ilha de Itaparica, a famosa praia de Itapoã (onde soubera os estudantes estar sendo filmado por companhia francesa uma adaptação moderna do poema de Santa Rita Durão, “Caramuru”) e o local denominado Candeias, onde impressionou a todas as imensas possibilidades petrolíferas do local. 

Durante a estadia dos congressistas na “Capital mais brasileira do Brasil”, foram-lhes oferecidos vários bailes, destacando-se neste particular as atitudes simpáticas dos presidentes da Associação Atlética Bahiana e do Iate Clube, dois dos clubes mais fidalgos e queridos da “Boa Terra” e que colocaram a disposição dos estudantes as sedes sociais e todas as instalações esportivas dos mesmos. E foi sempre o fabuloso jornalista Roschild Moreira quem ofereceu os ágapes de cozinha mais tipicamente bahiana. Foram assistidos vários candomblés e realizados inúmeros passeis nos pitorescos saveiros. O bar “Anjo Azul”, que na opinião do crítico Wilson Rocha “é talvez a mais séria instituição bahiana” também foi insistentemente procurado, tendo causado a todos favorável impressão. 

ELEIÇÕES 

Dia 25 foram realizadas as eleições a presidência e demais cargos da diretoria da U.N.E. relativos ao período 1949-50. Concorreram duas chapas, em pleito nitidamente democrático, saindo vencedora a denominada “Autonomia e Administração”, que estava assim constituída: 
Presidente: José Antonio Rogê Ferreira (S. Paulo); 
1º vice: Celso Medeiros (Distrito Federal); 
2º vice: Waldir Freitas Oliveira (Bahia) 
3º vice: Fausto G. da Mata Machado (Minas Gerais); 
4º vice: Renato Celidônio (Paraná); 
Secretário Geral: Raimundo Nonato Santana (Ceará); 
1º secretário: Grimaldi Ribeiro (Pernambuco); 
2º secretário: José Orsini Reis (Estado do Rio); 
3º secretário: Raimundo Ramalho (Distrito Federal); 
Tesoureiro: Jose Cal Gonzales (Distrito Federal). 

O novo presidente da U.N.E. que foi o último presidente do Centro Acadêmico “XI de Agosto” da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e também da União Estadual dos Estudantes e atualmente cursando a Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade de São Paulo, ao ser eleito, teve oportunidade de declarar: 

“Tenho planos de minha gestão bem coordenados e procurarei, mesmo a despeito das futuras dificuldades que naturalmente surgirão, pô-los em prática, embora sabendo que inúmeras barreiras serão colocadas frente a eles. Jamais capitularei e os pontos mais visados por mim são: a estruturação definitiva do ensino superior, a situação econômica do estudante brasileiro e a reabertura do restaurante da U.N.E., fechado pelo Ministério da Educação.” 

Por Luiz Ernesto Machado Kawall, 
Enviado especial de A IMPRENSA

CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DA CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA

A carta de Pero Vaz de Caminha é considerada a certidão de batismo do Brasil. Não tem, esse relatório da viagem de Pedro Álvares Cabral, as especificações técnicas nem os rigorismos categóricos dos relatórios etnográficos ou histórico-culturais. Pero Vaz de Caminha, seu autor, escrivão da frota e da feitoria de Calicut, homem culto, formado em artes e medicina, era, sobretudo, fidalgo da Casa Real e o Mestre da Balança e da Moeda do Pôrto. Entretanto, sua célebre carta é vasada numa linguagem simples, natural, algumas vezes até, cheia dum prosaísmo que encanta e nos encoraja a percorrê-la através de suas 14 páginas “in-fólio”. 

As palavras de Caminha assumem um aspecto documental precioso, pois constituem o único relatório existente sobre a expedição de Cabral, desde que as outras cartas de que se tem notícia (de Sancho Tovar, do feitor, etc.), atreves dos tempos, se extraviaram. Não vamos aqui dissecar tal carta, posto que outros de mais cultura e mérito o tenham feito ou possam fazê-lo com maior magnificência. Mas queremos, na medida do possível, destacar, dum e doutro trecho, observações que, dentro de sua simplicidade primitiva, careçam, no entanto, dada a sua importância intrínseca, de uma análise mais profunda. 

Destacamos, logo de início, o dia em que está datada a carta: “Hoje, sexta-feira, 1º de Maio de 1500. Deste Porto Seguro de Vossa Ilha de Vera Cruz”. Essa afirmativa é significativa por orientar-nos a respeito da data do descobrimento do Brasil. A descoberta de nossa terra sempre foi celebrada a 3 de maio devido a uma tradição antiga de celebrar-se o natalício do Brasil messe dia, data em que a Igreja comemora o encontro da Santa Cruz. Procuraram explicar a mudança da data de 22 de abril para 3 de maio por causa da reforma do calendário gregoriano; mas, como bem diz Joaquim Silva (“História do Brasil’), “a reforma foi feita 82 anos depois e não poderia, portanto, ter efeito retroativo”. Tem, por isso, a carta de Vaz de Caminha já esse grande valor histórico, pois estabelece, definitivamente, a data exata de nosso descobrimento. 

Outra assertiva do escrivão merece também destaque especial. È quando ele afirma, depois da narração do desgarro da nau de Vasco de Ataíde, textualmente: “E assim seguimos nosso caminho, por esse mar de longo”... A esse “nosso caminho”, assim escrito com tanta autoridade, com tanta ênfase, poderíamos acrescentar: “nosso caminho... para o ocidente”... O que, sobretudo, se não quebras a causalidade do descobrimento, porque ela já está quebrada de há muito (asseguram até que os papagaios levados pelos portugueses para a Corte já falavam palavras de francês...), pelo menos, não a confirma; principalmente, porque, depois, a frase “por esse mar de longo”, como muito bem diz Malheiro Dias na “História da Colonização Portuguesa do Brasil”, significa: velejando ao ocidente, através do oceano Atlântico”. Se é de se notar essa falta de maiores esclarecimentos por parte de Caminha, talvez seja por que ele estivesse ainda influenciado pela “política de segredo” do monarca D. João III... 

Outras palavras de Caminha, quando ele descreve a terra, merecem reflexão: “Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo”. E “Com tudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente”. 

É de se refletir profundamente sobre essas duas conclusões de Pero Vaz. “Dar-se á nela tudo”... “Salvar essa gente”... Hoje, passados quatrocentos e cinqüenta anos do nosso descobrimento, que somos? Financeiramente, politicamente, e o que é mais importante ainda, culturalmente, que somos? E que triste é a realidade! 

Somos, como já disse alguém, “o país a que amamos, mas por quem choramos”. Situado dentro dos meridianos excelentes de um clima bastante saudável – pois os rigores do inverno nem os calores mais intensos do verão nos atingem – estando colocado num ponto tão estratégico que fáceis se tornam suas comunicações com o exterior, e sendo dono de vastas extensões próprias para grandes culturas, somos hoje, uma pobre terra à que faltam, ainda, comunicações, transporte, produção agrícola, escolas, universidades! Tudo definha; só cresce uma ambição impetuosa para o poder e o dinheiro. Tudo fenece; só medram as inteligências medíocres que dominam os quadros poderosos da administração pública. 

Tudo são incertezas, egoísmo, comissões e “comessões”, funcionalismo. (Aliás, aqui, parece que sofremos de uma espécie de fatalismo histórico, pois o próprio Vaz de Caminha, no final de sua carta, pede, humildemente, ao monarca, que transfira para a Corte a Jorge de Osório, seu genro, que servia, na Ilha de São Tomé, como funcionário municipal...). Nada se faz com patriotismo, com perfeição, com desbravamento, excetuadas, talvez, as três vigas mestras de nossa “civilização”: o samba, o jogo do bicho e o futebol. O povo permanece ignorante, menos por sua culpa, ressalte-se, do que pela da inépcia dos governos dominantes. 

 E é notável que dentro de tanta mesquinhez as campanhas redentórias se façam sempre com um aspecto de grandiosidade relevante! São as “Campanhas de Educação de Adultos”, “Marcha para o Oeste”, “Campanha contra o analfabetismo”, etc., etc., tudo com um sentido grandioso do “Weltanschaung” germânico! Nesses casos, o governo é sempre o pedinte ao particular: sua verba é sagrada, é necessária para financiar os Institutos, as embaixadas luxuosas, os Legislativos brincalhões... 

Pobre terra! A fauna mais daninha é eleita vereador, ou deputado, e então, nas Câmaras, eles dominam, porque os de boa vontade, os homens, são minoria... Como Pero Vaz de Caminha é terrivelmente real ainda hoje! Como ele, dentro desse anacronismo tristíssimo, é profundamente verdadeiro. “Dar-se-á nela tudo”... “Será salvar essa gente”... Mas se Caminha, há 450 anos, dirigia-se ao rei D. Manuel, a quem, hoje, dirigiremos esse apelo “salvar essa gente”? A quem se não a nós mesmos? E quem somos nós mesmos?

Luiz Ernesto Machado Kawall 
A IMPRENSA – Outubro/novembro de 1949