sexta-feira, 25 de março de 2016

O BONDE

O bonde nos põe em contato com quase todos os espécimes mais raros da heterogênea fauna humana. Essas raridades – justamente aquelas cujas maneiras e atitudes as tornam destacadas dos demais passageiros – é que procuraremos apontar aqui. 

Primeiramente, vejamos aqueles compreendidos entre os “figura difícil”. Estão nessa categoria, desde os pacatos cidadãos que se postam de tal jeito nas pontas dos bancos,cruzando tão investidoramente suas pernas, incomodando e perturbando assim os que vão nos estribos, até os ingênuos (ou muito espertos) cavalheiros que, lépidos, tomam nosso lugar no estribo, se damos passagem para uma pessoa descer ou subir. Esses abomináveis tipos são os “figurinha”... 

Depois, temos aqueles indefectíveis indivíduos que, a pretexto de qualquer incidente de menor monta – uma curta parada por um enterro, um comum desligar de eletricidade – aproveitam o ensejo para desfiarem por cima de nós toda a sua filosofia da vida, todo o seu pseudo-cabedal das engrenagens do mundo. Esses ao os tradicionais “chatos”.

E existem também uns distintos passageiros que por tudo querem mostrar-se afáveis e polidos, fazendo questão de dar o sinal de parada para as senhoras ajudando as crianças a subirem, avisando os “pingentes” de lugares para sentar; sobretudo, cuidando de cutucar o vizinho distraído da cobrança da passagem. Costumamos chamar a esses gentis-homens da cortesia de “paizinho da família”... 

Nos “camarões”, às sossegada e calmas senhoras que esperam o bonde parar depois tratarem de pagar e descer (não sem antes deixarem de berrar “Espera!”, ”Parado!”, “Parado!”), damos o epíteto de “Já vão tarde”... 

E esses rapazes que aproveitam o silêncio das paras dos bondes para começarem a dialogar alto em inglês ou para falarem de operações (!) medicinais que “realizaram” (“Aquele sopro cistólico bilateral esquerdo (sic) no 3º mediastino, com bisturi elétrico, foi fácil!”. “Eu, não, à maneira dos grandes cirurgiões, só opero com anestesia ráqui”)? Esses, logo reconhecidos doutores da mula russa, são os “cabotinos”... 

Os que se postam nos estribos estão sujeitos a uma estranha hierarquia. Primeiro, os “remediados”: são aqueles que se grudam nos balaústres, viajando relativamente bem.Depois, em segundo lugar, vem os da categoria dos “infelizes”: aqueles cujos corpos pendem num ângulo agudo dos estribos, estando seguros por um braço só; e, por último, estão todos os que se sobrepõem às duas primeiras categorias, os braços clamorosamente abertos, estendidos. Esses são os “crucificados”... 

 Aí estão os tipos de passageiros de bondes. Situe-se o leitor onde os julgar mais à vontade, mas, se a classificação o desagradou, não nos recrimine, mesmo porque em matéria de bonde, “Cortesia com cortesia não se paga” ... 

 A IMPRENSA – Sábado, 5 de fevereiro de 1949

CRÔNICA DA CIDADE I

A Avenida São João 

A Avenida São João cresceu sempre juntamente com a capital. Refletiu, em todas as épocas. O progresso e o adiantamento de São Paulo. Não teve, na sua formação, o traçado científico das plantas dos engenheiros ou os benefícios das linhas arquitetônicas pré-estabelecidas. Tal como a cidade. Ambas – avenida e cidade – somente foram construídas conforme a grandeza e o desenvolvimento da terra bandeirante exigiam. Daí, a estreita ligação existente ainda hoje – guardadas, no entanto, as proporções – entre essa avenida de São Paulo e a terra de Piratininga. 

 A princípio, em 1810, a rua de São João era uma humilde via, estreita, quieta, de toscos e diáfanos lampiões à gás nas esquinas, o seu barro vermelho enodoando a alvura dos sapatinhos delicados das damas acetinados... Começava justamente ás margens do rio Anhangabaú, terminando pelas adjacências do Largo do Arouche. Pouco a pouco, desenvolve-se a cidade. Em 1906, com a canalização daquele lendário rio, foi anexada à Rua de São João, a famosa ladeira do Açu; uniam-se assim essas duas ruas fronteiriças que as águas do Anhangabaú separavam. 

A partir dessa época o seu crescimento foi vertiginoso. Aliás, somente acompanha o progresso notável da capital; e foram os mesmos senhores riquíssimos da lavoura que empolgaram a opinião pública com a ideia suntuosa da remodelação total – principalmente o alargamento – da Rua São João. Fizeram-se as desvalorizações. Delineou-se, finalmente – a atual avenida São João. A época era mesmo para grandes empreendimentos. A capital estava no ápice de sua evolução. A população crescera de 200.000 pessoas (1892) para 1.200.000 (1932). A avenida sentiu esse avassalar de progresso. Ergue-se, no seu inicio, a majestade sólida do Prédio Martineli, então a maior construção de cimento armado da América do Sul. De há muito, os seus ineficientes lampiões foram substituídos pela iluminação elétrica, a simetria dos paralelepípedos sobrepostos ao seu barro escorregadio. Sua extensão aumentou num ritmo acelerado até o bairro – passando por Santa Cecília e Campos Elíseos – da Barra Funda. A seu lado abrem-se bares, constroem-se pensões e hotéis. 

Depois, mais modernamente, a imponência aristocracia da capital exige cinemas suntuosos, confortáveis. E eles surgem, com suas cintilações perenes de luz. É o Broadway, o Art-Palácio, o Ritz, o Metro. Mais adiante, o chamariz feminil dos cabarés arrasta, na volúpia das suas bacanais, a mocidade boemia e notívaga. Após, aparecem as primeiras auto-escolas e as intermináveis casas de peças e acessórios para automóveis. E as oficinas de concertos realizando os serviços em plena avenida, nas calçadas, nessa desenfreada ganância de trabalhar depressa, de ganhar mais dinheiro. Mas, exata e derradeira coerência, não é essa, hoje em dia, a principal feição da nossa capital? 

“A Imprensa – Órgão Universitário dos Alunos da Primeira Escola de Jornalismo Fundada no Brasil” (São Paulo – Março de 1949 – Ano I – página 2). 


UM CAMINHO NATURAL

Os textos apresentados no índice LEK - JORNALISTA APRENDIZ, deste  blog, remontam à época de estudante universitário de Luiz Ernesto Kawall.

Aos que se interessem pela trajetória do jornalista, estes artigos já sinalizam o caminho que Kawall iria trilhar por mais de 60 anos de profissão.

Aqui foram  selecionados os textos publicados no jornal “A Imprensa", da Cásper Líbero, primeira escola de  jornalismo fundada no Brasil, do qual o próprio Luiz Ernesto foi um dos editores.

Arnaldo Chieus

Tonico e Tinoco, a dupla coração do Brasil

Com seu jeitão simples de caboclos do interior - são da região de São Manuel - João Salvador Perez, 67 anos, e José Perez, 64, vão deixando a Rádio e TV Bandeirantes, onde acabaram de gravar o “Brasil Caboclo”, programa pioneiro no rádio brasileiro, produzido pelo radialista sertanejo Tio Nassin, e que vai ao ar religiosamente de segunda a sábado das 5 às 5 e meia da manhã. Eles são os ilustres filhos de Salvador Perez, espanhol que chegou ao Brasil em 1892 e foi trabalhar na lavoura de Botucatu, e de Maria do Carmo, descendente de negros e bugres. Os irmãos Tonico e Tinoco são alegres, cumprimentam funcionários e amigos, tomam o cafezinho, sobraçam mais de 500 cartas chegadas nos últimos dias. Andam sempre juntos, e já vão pegar o carrão que os conduzirá ao bairro da Moóca, onde moram com as respectivas famílias. O nosso INFORMAC os apanha de surpresa. 

- Entrevista em hora destas, assim de manhã... Não tomamos nem café mais forte... Mas, senta aí, pode perguntar o que quiser... Não temos segredos.

A dupla coração do Brasil se acomoda, na salinha arrumada ali pelo estúdio. Estão há quase meio século cantando juntos. Foram e são felizes, segundo seus amigos. Já têm mais de 70 LPs lançados e fizeram, em todo território brasileiro, segundo seus cálculos, mais de 1500 shows, levando a música caipira e sertaneja ao sucesso e à glória. 

- É verdade que vocês estão ricos? 
- Qual nada. Dá pra viver. 

- E a história do avião, é verdade? - Não. Fizemos uma foto, junto a um avião, e foi aquela água... Mas não temos avião não! Até hoje, pra voar, a gente se benze... 

- Como vão indo os shows, atualmente, com o avanço dos forrós e dos roqueiros? 
- Otimamente. Nada nos atrapalha. Quando tocam nossas músicas, num salão de baile, ou num forró, é aquela alegria! E cada vez maior! 

- A que atribuem essa liderança e esse gosto popular? 
- A muitas coisas, seu moço. Nossas músicas escolhidas, nosso repertório, sempre alegre e romântico, cantando coisas do nosso homem da roça com simplicidade. Nós não nos fantasiamos, não usamos instrumentos eletrônicos, nada. Vivemos da nossa voz, das nossas criações, em parceria ou não, da nossa viola e da nossa sanfona “velha-de-guerra”. O resto, é viver com coragem e fé. 

Rádio e TV 
Além do programa diário na Rádio, que é transmitido a todo país, Tonico e Tinoco fazem também um programa diário na Bandeirantes AM (17 às 17,30) e todos os sábados se apresentam na TV bandeirantes, das 18 às 19 horas, quando cantam e apresentam outras duplas caipiras. Eles também concordam que a força do rádio e a penetração da televisão ajudam a manter seu nome e propagar suas músicas em todos os rincões. Nesse programa semanal da TV usam a indumentária simples, sem forçar o tipo. Contam com graça que a primeira vez que vieram a São Paulo, para um concurso da Rádio Difusora em 1942 - que venceram, derrotando mais de 50 duplas caipiras - foram tirar foto na Avenida São João. Depois que posaram e foto foi batida, o seu Léo disse: “Agora, podem trocar de roupa...” Mas acontece que o Tonico e Tinoco “estavam com a roupa do corpo, vestidos autenticamente como caipira do interior, com chapéu de palha, botas e tudo... 

- O que vocês acham do Sérgio Reis, do Boldrin, do Zé Bétio?... 
- Deixa isso prá lá, tem lugar pra todos... 

- Quais os gêneros em que fazem maior sucesso? 
- Todos, graças a Deus. Seja moda de viola, cururu, desafio, cateretê, catira, xote, rancheira, toada, vanerão (gaúcha), pagode, rasqueado, valsa, capoeira, guarânia, xamamé, arrasta pé, batidão (goiano), carimbo, côco, samba, embolada... Todos os gêneros da música popular brasileira. Acho que daí vem o nome de “dupla coração do Brasil”. 

- Vocês têm uma mensagem em suas músicas? 
- A nossa mensagem é curta e grossa. É a da simplicidade e da vida da roça. Das belezas do amor. Com nossa viola, não perdemos nossas origens. Quando cantamos nos shows, com outros artistas, “surramos” todos eles! Somos mais aplaudidos que todos! Nem todos têm a sorte de ser original. É assim no rádio, na TV, nos cinemas, já fizemos filmes. 

Conversas e a “paixão
Eles falam do empresário Elcio e da paixão que a música caipira desperta em todo o Brasil. Os shows duram 40 minutos. Sempre é bom deixar “um pouco de música pra cantar da próxima vez”, explicam. As mais pedidas, que já estão gravadas na alma e no cancioneiro popular, são “Luar do Sertão”, de Catulo da Paixão Cearense, “Tristeza do Jeca”, “Chico Mineiro”, “Cana Verde”, “Mamãe, mamãe”, “Baile na roça”, “Beijinho doce”, “Na beira da tuia” e muitas outras. 

Fora dos shows, gostam de conversas nas cidades aonde vão. Conversa de esquina mesmo, afinal, nasceram e cresceram em cidades do interior. Contam “causos” e recordações, usando e abusando de memória incrível. Aqui em São Paulo, levam vida caseira, ao lado das esposas Valdete (Tonico) e Nadir (Tinoco), dos filhos e netos. Aos domingos, se não viajam, visitam a mãe, d. Maria, 91 anos, mulher forte e decidida, que cuida da capelinha que fizeram em 1963 pra cumprir uma promessa. É a Capela N. S. Aparecida e fica na Vila Diva. A mãe é que toma conta do pequeno templo, onde Tonico e Tinoco muitas vezes rezam, como católicos que são. 

Tonico e Tinoco falam com entusiasmo do novo LP - “O Rei dos Boiadeiros” - e do livro “Da beira da tuia ao Teatro Municipal - TONICO e TINOCO”, que pode ser pedido diretamente pra eles, na Rádio Bandeirantes ou à Editora Ática, R. Barão de Iguape, 110, São Paulo. Nesse livro estão mais de 500 letras da dupla, com o mesmo jeitão ingênuo que é sua marca registrada e famosa: 

-É assim mesmo nossa vida. Sem novidades. Dede os tempos do Capitão Furtado, somos assim. Já cantamos até no Teatro Municipal. Mas não perdemos nosso filão. Nossa música caipira. Nascemos assim e somos doentes por ela. O caipira é o verdadeiro Brasil. Nós, nesta vida, só queremos cantar nossas boas músicas, fazer bons shows, bons programas, ter bons amigos, viver bem. 

Informac Órgão de Divulgação Interna das Empresas Machline Ano III - Nº 32
Setembro/outubro 1984.

José Mauro de Vasconcelos - O Homem Inquieto


Mania ambulatória”, diz Ledo Ivo, referindo-se ao nomadismo do escritor José Mauro de Vasconcelos, que é um homem inquieto, com capacidade de estar sempre se movendo, como se fosse instigado pela angústia ou pela inesgotável vontade de viver. Sua vida tem sido uma intensa movimentação, percorrendo o Brasil de Norte a Sul, desde os tempos da juventude; poucos escritores podem orgulhar-se, como José Mauro de Vasconcelos, de conhecer tanto não só as grandes e pequenas cidades do litoral e interior, como a selva bruta, onde ele pode contar dom amigos entre os Carajás ou os Índios do Xingu. 

Filosofia 
Embora às vezes um pouco arredio, José Mauro de Vasconcelos é agradável e cordial, tem vasto círculo de amizade e está galgando com seguras passadas os degraus da fama, sem que a celebridade seja o seu objetivo. Na verdade, não pensa quase nada na condição de escritor, que para ele é apenas uma decorrência. “O que importa é que eu escreva um livro, e não viva gozando dos privilégios de ser escritor”, diz o novelista. “E como eu escrevo um livro em curto prazo, não há razão para ficar pensado na qualidade do escritor o resto do tempo.” Essa é a filosofia do criador de romances tipicamente brasileiros. 

José Mauro de Vasconcelos não é um misantropo; seu desapego à vida social se deve principalmente ao desejo de não perder tempo com futilidades para empregá-lo em coisas mais úteis, como levar medicamentos para os seus amigos da selva. 

Se você perguntar o que elevai fazer no futuro, responderá que não tem planos. Toma a vida como ela vem vindo, sem ser fatalista. Sua aparência é a de um homem do campo, pela maneira com se veste, de camisa esporte (raramente é v visto de gravata). Jamais será um dos dez mais elegantes. 

Infância 
A inquietude e o nomadismo de José Mauro são produtos de uma educação indisciplinada, de um temperamento ardente e de um espírito ansioso de conhecer as coisas e as gentes. 

José Mauro de Vasconcelos tem nas veias sangue de Índia e português. Nasceu em Bangu, Rio de Janeiro, a 26 de fevereiro de 1920. Passou a infância em Natal, onde foi criado com muito sol e... água. Aos nove anos de idade aprendeu a nadar, e com prazer ele hoje rememora os dias de contentamento, quando se atirava às águas do Potengi, quase na boca do mar, a fim de treinar para as provas de grande distância. Com freqüência ia mar adentro protegido por uma canoa porque a barra de Natal está sempre infestada de tubarões. Ganhou vários campeonatos de natação e, como todo garoto, gostava de futebol e de trepar em árvores. 

Mas o esporte não constituía sua única preocupação. Depois do primário, aos 10 anos de idade já cursava o primeiro ano do curso ginasial, que terminou cinco anos mais tarde. Então, gostava dos romances de Graciliano Ramos, Paulo Setubal e José Lins do Rego. 

Bolsista na Espanha 
José Mauro, após o curso secundário, por seu espírito irrequieto, em vão fez várias tentativas de novos estudos. Principiou Medicina, Direito, Desenho e Filosofia. Sua última tentativa e malograda experiência foi em 1952, quando ganhou uma bolsa para estudar em Salamanca. Ficou três dias apenas na universidade. “Você acha que eu podia ficar uma hora inteira ouvindo chavões de literatura ou escrevendo composições sobre Cervantes?” - diz o incorrigível estudante. E acrescenta: “Tudo ali era muito chato”. De Salamanca, voltou a Madrid, onde ficou poucos dias, encerando o estágio-relâmpago de bolsista espanhol. Depois, foi fazer um giro pela Itália e França, por conta própria.

Trabalho e vaivém 
Depois do ginásio, os estudos de José Mauro como autodidata foram sempre feitos a base de trabalho. Seu primeiro emprego, dos dezesseis aos dezessete anos, foi o de treinador de peso-pluma; recebia 100 cruzeiros (velhos) por luta no Rio de Janeiro, pois aos quinze anos saíra de Natal para ganhar o mundo. No Estado do Rio, trabalhou numa fazenda em Mazomba, perto de Itaguaí, carregando banana. Depois, foi viver como pescador no litoral fluminense, onde não se demorou muito, partindo em seguida para o Recife. Ali, exerceu o cargo de professor primário nu m núcleo de pescadores. 

Da capital pernambucana, José Mauro saiu para começar incessante vaivém, de Norte a Sul, e vice-versa, permanecendo um pouco em cada lugar, para em seguida enveredar pelo sertão e viver entre os Índios. 


O Romancista 
Dotado de prodigiosa capacidade inata de contar histórias, possuindo fabulosa memória, candente imaginação e com uma volumosa experiência humana, José Mauro de Vasconcelos não quis ser escritor, foi obrigado a sê-lo. Os seus romances, como lavas de um vulcão, foram lançados para fora, porque dentro dele o “eu” estava transbordando de emoções. Ele tinha de escrever e de contar coisas. Sua fenomenal produção literária, iniciada aos 22 anos de idade, ainda não chegou ao meio caminho, porque ele está em plena ascensão, com inexauríveis reservas, que o levará a posição ainda mais elevada nas letras nacionais. 

Depois de “Banana Brava”, romance escrito em 1942, José Mauro produziu “Barro Blanco” (1945), “... Longe da Terra” (1949), “Vazante (1951), “Arara Vermelha” (1953), “Arraia de Fogo” (1955), “Rosinha, Minha Canoa” (1962), “Doidão” (1963), “O Garanhão das Praias” (1964), “Coração de Vidro (1964), “As Confissões de Frei Abóbora” (1966) e por último “O Meu Pé de Laranja Lima” (1968), livros que tiveram grande aceitação, todos eles elaborados à base de suas aventuras nas praias ou na selva. 

O autor desses belos romances tem método originalíssimo. De início, escolhe os cenários onde se movimentarão seus personagens. Transporta-se então para o local, onde realiza estudos minuciosos. Para escrever “Arara Vermelha”, percorreu cerca de 450 léguas no sertão bruto. 

Em seguida, José Mauro dá asa à sua fantasia e, na imaginação, constrói todo o romance, determinando até mesmo as frases da dialogação. Tem uma memória que, durante longo tempo, lhe permite lembrar-se dos mínimos detalhes do cenário estudado. 

“Quando a história está inteiramente feita na imaginação, revela o escritor, “é que começo a escrever. Só trabalho quando tenho a impressão de que o romance está saindo por todos os poros do corpo. Então vai tudo a jacto”. 

Com o seu sistema de ficar dormindo na pontaria até que o livro todo esteja “escrito” na imaginação, conta José Mauro que, ao por-se em ação, na fase material de bater à máquina, tanto faz escrever os capítulos, um após outro, como dar saltos; depois de pronto o primeiro, passa à conclusão do livro, sem antes ter elaborado o entrecho. “Isso, explica o escritor, “porque todos os capítulos estão já produzidos cerebralmente. Pouco importa escrever a seqüência, como alterar a ordem. No fim dá tudo certinho”. 

Cinema, TV e Livros 
José Mauro, atualmente autor exclusivo de Edições Melhoramentos, já tem publicado por elas os seguintes títulos: “Barro Blanco”, em 9ª edição; “Rosinha, Minha Canoa”, em 10ª edição; “Arara Vermelha”, em 5ª edição; “Arraia de Fogo”, em 4ª edição; “... Longe da Terra”, em 4ª edição; “O Meu Pé de Laranja Lima”, em 10ª edição; “Coração de Vidro”, em 6ª edição; “Doidão’, em 4ª edição; e “As Confissões de Frei Abóbora”, em 3ª edição. 

Ainda neste 1969, mais dois romances serão lançados: “Rua Descalça” e Palácio Japonês”. As reedições dos demais títulos estão previstas, também, para breve (“Banana Brava”, “Vazante”e “O Garanhão das Praias”). 

O fabuloso sucesso de “O Meu Pé de Laranja Lima”, valeu a José Mauro de Vasconcelos o Prêmio “Roquete Pinto - Especial” de 1968, maior prêmio da TV brasileira, pela primeira vez concedido no campo da literatura. 

Artista do cinema e da televisão, José Mauro de Vasconcelos já trabalhou em diversos filmes como “Carteira Modelo 19”, que lhe valei o Prêmio Saci como melhor ator coadjuvante, “Fronteiras do Inferno”, “Floradas na Serra”, “Canto do Mar”, do qual escreveu o roteiro, “Na Garganta do diabo”, obtendo o prêmio de melhor ator pela Prefeitura e culminando com “Mulheres e Milhões”, sendo laureado com o Saci como melhor ator do ano. Dos seus livros, “Vazante” e “Arara Vermelha” foram filmados. 

Estão sendo ultimados preparativos para as filmagens, por Herbert Richers, de “O Meu Pé de Laranja Lima”, película na qual José Mauro aparecerá interpretando o papel de Manuel Valadares, o “Portuga”.

Na televisão, desempenhou numerosos papéis, destacando-se o de Padre Damião. Como ator é também talentoso; suas sóbrias interpretações têm alcançado grande êxito.

Apesar do sucesso no cinema e TV, José Mauro não está satisfeito. Para ele, a melhor coisa do mundo é servir de enfermeiro para os índios. 

“Não vejo a hora de meter o peito no mato”, diz o escritor, que reside em São Paulo. Mas todo ano vai matar as saudades da selva.

quinta-feira, 24 de março de 2016

LYGIA FAGUNDES TELLES

Lygia: Esta é a sua história 


 A consagrada escritora brasileira tem um dia-a-dia cheio de atividades caseiras e intelectuais, e, aqui, contrasta passado e presente, depondo sobre sua vida.

 - Nasci em São Paulo, mas passei a infância em pequenas cidades do interior do Estado, onde meu pai foi promotor público ou juiz: Sertãozinho, Assis, Apiaí... Foi uma infância meio selvagem, livre. Com a figura principal de uma pajem preta, adolescente desbocada e sensual que me fazia confidências e contava histórias, centenas de histórias de lobisomem, almas-penadas, antiqüíssimos mortos que se levantavam chacoalhantes e lá vinham, com seu canto fanhoso até a nossa porta. Então eu tremia debaixo das cobertas (as histórias eram contadas durante a noite, no escuro) e chorava baixinho e tapava os ouvidos, mas deixando sempre uma fresta por onde se insinuava um fluxo implacável. O jogo era excitante: eu exigia mais, mais e fugia em pânico. O sofrimento agudo misturado ao prazer que se prolongava mais intenso, quando ficava sozinha e começava a reinventar tudo, novas personagens, novos enredos. 

Lygia Fagundes Telles - assim mesmo: com y no nome e dois LL no sobrenome - paulistana da Rua Barão de Tatuí, descendente de navegante português, membro da Academia Paulista de Letras, considerada uma das maiores escritoras do país de todos os tempos, acaba de tomar o seu café da manhã bem frugal (suco de laranja, café com leite, torradas). Ainda não começou sua ginástica diária - sueca e francesa - e já desfia sua estória ao INFORMAC. 

- Tamanho sucesso dessa contadora de histórias começou a atrair mais gente, agora não eram só crianças que vinha, se amontoar na escada de pedra do nosso quintal logo depois do jantar, em meio da cachorrada, tínhamos muitos cachorros. Na noite em que minha pajem não apareceu (tinha fugido com Heleno, trapezista do circo) resolvi num impulso de audácia substituí-la, tomar seu lugar: foi quando descobri que sentia menos medo falando, que era mais excitante contar do que ouvir porque enquanto falava, transferia todo o horror para o outro. Com o próximo ficava a minha insegurança e a minha dúvida, a minha ousadia e o meu medo, mas não era mesmo extraordinário isso? Pensei e me senti aliviada. Esvaída (como se todo o meu sangue tivesse escorrido nas minhas palavras) mas poderosa. Independente. 

Ela pára um pouco, toma fôlego. Escuta a rádio Jovem Pan, para se inteirar das notícias, em especial as econômicas, é um hábito. Lê também religiosamente o “Estado” e a “Folha” e só a tarde lerá o JB e O Globo. Começa pelas primeiras páginas, vê como anda a política e o humor dos políticos, passa pela geral, esportes e dêem-se na parte cultural. “Gosto de começar o dia-a-dia bem informada”, diz, e logo retoma o fio de sua vida. 

- Datam dessa idade de ouro os primeiros escritos assim que comecei a escrever, isso depois do aprendizado coma sopa de letrinhas, um macarrãozinho com todo o abecedário, era um brinquedo novo alinhar as letras nas bordas do prato fundo. Muito difícil, me lembro, encontrar o Y do meu nome, ia ver o prato dos outros, era enxotada. Então recorria ao caldeirão onde as letras se amontoavam lá no fundo, fervendo borbulhantes. Meu pai era um homem meio desligado, sonhador. Gostava de beber e de jogar: Durval de Azevedo Fagundes. Minha mãe, Maria do Rosário - o apelido era Zasita - tocava piano (Chopin) e cantava. Me lembro que era risonha, comunicativa mas vendo hoje seus retratos, descubro em sua fisionomia tamanha tristeza, ela era triste? Fazia doce de goiaba nos grandes tachos de cobre e a expressão que hoje uso para designar as mulheres daquele tempo - mulher-goiaba - tem sua origem na imagem da minha mãe mexendo, mexendo aquele doce. 

São cerca de 10 horas e Lygia se apronta, desce o elevador, sai para a rua. É a hora da caminhada matutina, anda a pé todos os dias, hoje está indo ao Clube, pois p dia está bom e o sol já saiu. Vai nadar e exercitar os músculos, ela que, nas rodas intelectuais é conhecida não só pela elegância, mas pela disposição e saúde. Mas, não queremos interromper sua meada: 

- Não tinha sequer idéia do que era o feminismo. Mas era uma feminista inconsciente quando me estimulou a escrever um livro, eu ainda estava no ginásio, era uma menina-moça com certos planos, tímida, mas com ousadias por dentro: “É uma profissão de homem, ela disse. Mas se você escolheu, por que não?” Revelou-me, sim, uma feminista nesse e em outros estímulos em seguida, quando eu quis entrar na Escola superior de Educação Física, uma escola que era só de homens. Pouca roupa. Muita liberdade nos campos de esporte, misturados aos jovens numa camaradagem que não estava nos usos e costumes de nossa rígida formação dentro dos moldes lusitanos. Ela aprovou essa idéia como também achou muito bom que logo em seguida eu fosse estudar Direito na mesma faculdade de meu pai, a Academia do Largo de S. Francisco. “Também é profissão de homem, ela observou. E homem não gosta de ver mulher no ramo dele, não sei se isso vai ajudar no casamento. mas você está somando profissões, pode trabalhar no que bem entender e isso é importante para uma moça pobre”. 

Regresso ao apartamento simples, bem arrumado, funcional. É hora do almoço. Hoje, dia da entrevista, tem arroz integral, carne leve, verduras e frutas. Aboliu as massas e o açúcar. Tem um afago especial pelo seu gatinho angorá. A empregada é solicitada e prepara tudo com carinho. Ela raramente aceita convites, prefere a sua quietude, propício à atividade de escritora e intelectual ativa. Telefonemas, atende, resolve. Lê um pouco seus livros “volantes” (sempre à disposição, em rodízio, em vários lugares do apartamento). Os de agora são de Drummond (poesias), Loyola Brandão e Nélida Pinon (romances), e o “Fausto” de Goethe. Confessa sua fé religiosa e mística, gosta das Santas Terezinhas, a do Menino Jesus e Tereza d’Ávila. Já colecionou folhas de árvores, de vários lugares do mundo, que coloca dentro de seus livros prediletos. Coleciona cartões postais, gosta especialmente dos de “Anunciação”, de Michelangelo e os de Giotto. Acredita firmemente nas três virtudes teológicas, as mais importantes, segundo diz, “em toda a roda do tempo do mundo”: fé, esperança e caridade. O seu depoimento prossegue: 

-Estávamos pobres, meu pai tinha jogado quase tudo na roleta, ele jogava nos números. Dele herdei essa vocação, eu jogo nas palavras. Perdi? Ganhei? Não importa, o importante é a emoção, o risco. A felicidade de exercer o ofício pela paixão, como queria Stendhal. Os dois cursos eu completei aqui em São Paulo, onde resido até hoje. Dois casamentos. Um filho, Goffredo Telles Neto, cineasta. O segundo casamento foi com Paulo Emílio Salles Gomes, crítico, ensaísta e professor de cinema. Pouco antes de morrer publicou um livro de ficções, originalíssimo, verdadeira ruptura na arte de escrever. Foi o fundador da Cinemateca Brasileira, criada nos mesmos moldes da Cinemathéque Française, em Paris, na qual ele trabalhou muitos anos com Henri Langlois. Hoje sou presidente dessa cinemateca que possui o maior acervo de filmes brasileiros - a memória do Brasil através da imagem. Sou do Signo de Áries (19 de abril), domicílio do planeta Marte. A cor do signo é o vermelho, mas aposto igualmente no verde: minha bandeira - se tivesse uma - seria metade verde, metade vermelha. Esperança e paixão não destituída de cólera. Vocação, sim, acredito em vocação, sortilégio e magia que os puxa pelos cabelos e nos empurra nesta direção e não naquela, uma fatalidade?Penso às vezes que não escolhi, mas que fui escolhida: nem sabia o que significava vocação, mas de forma instintiva já estava assumindo o meu ofício. 

Lygia Fagundes Telles começa a trabalhar “o seu ofício”, após o almoço. São dezenas e dezenas de carta a responder. Telefonemas a dar (ela preside com eficiência total a Cinemateca Brasileira). A Nova Fronteira quer editar novos livros seus. Atende também a outros escritores o pessoal da União Brasileira de Escritores. Está sempre com um novo texto a fazer, escreve (bem) à máquina, sempre foi assim, nunca esquece que foi advogada militante e Advogada do Estado. A TV Globo quer saber se tem outro romance para televisar. As 5 da tarde - é uma quarta-feira - apronta-se, sai lépida e bonita, para a sessão (e o chá) da Academia Paulista de Letras, como imortal que é. Às 8 da noite, a imortal Lygia, como uma mortal comum, retorna ao seu apartamento, à sua intimidade, à sua criação sensível e humana, aos mistérios e á sua esperança, marcas mais profundas dessa mulher de fama e consagração nacional, mas a um tempo tão feminina e simples. Antes de dormir, a última leitura, de um de seus livros “volantes”, para se apaziguar, a Bíblia, de que não se separa nunca. As 10 e pouco, 11 da noite, se tanto, dorme o sono justo das criaturas que tem fé, raça e coragem. É assim que o INFORMAC viu, nessa quarta-feira, dia 22 de agosto, essa mulher, escritora e gente, Lygia Fagundes Teles. . 

 Frases/Conceitos 

Escrever - Escrever, escrever, escrever sempre. Bérgson dizia: Nunca sabemos até que ponto vamos atingir, se não nos pusermos imediatamente a caminho. Eu escrevo aos poucos, a idéia vai amadurecendo. Quando sinto que chegou a hora, sento e escrevo. Pode ser à tarde. Muitas vezes à noite, quando está tudo silencioso, e as pessoas apaziguadas. 

Livros & obra - Sou uma andeja que sabe o que está procurando: a palavra exata para dar expressão a uma idéia. Meus livros são meus filhos também: alguns, coitados. Rejeitados, mas outros bastante minados. O último está sempre no meu colo. E minha obra, toda, é um livro só. 

Casar - O Homem é tão necessariamente louco que não ser louco representaria uma outra forma de loucura, escreveu Pascal... Dos sintomas básicos da neurose, quase ninguém escapa... Selecionei, em minha lista, as neuroses mais comuns: a necessidade neurótica de agradar os outros, necessidade neurótica de poder, necessidade neurótica de realização pessoal, necessidade neurótica de despertar piedade, necessidade neurótica de um parceiro que se encarregue de sua vida - ô Deus! - mas desta última necessidade só escapam mesmo os santos. E algumas feministas mais radicais. 

O Amor - Na vocação para a vida está incluído o amor, inútil disfarçar, amamos a vida. E lutamos por ela, dentro e fora de nós mesmos. Principalmente fora, que é preciso um peito de ferro para enfrentar essa luta na qual entra não só o fervor, mas uma certa dose de fervor e cólera... O amor é mais importante do que a glória. 

Fonte original: 
InforMAC - Órgão de Divulgação Interna das Empresas Machline Ano III - Nº 31 - Agosto 1984.

sábado, 12 de março de 2016

VIRGOLINO, O ABSURDO DOMÉSTICO, O MAGISMO POPULAR

- Até 1959, mais ou menos, fazia pintura social... Depois, minha pintura se ressentiu, ficou mais doméstica... Aliás, sou muito doméstico, mesmo, gosto do absurdo doméstico, do pitoresco e do humor do cotidiano, que procuro retratar sempre, em minhas telas... Eu gosto de pintar e ganho a vida assim, pintando, me distraindo... Desde 1967 estou nesta fase profissional de minha pintura, isto é, vivo exclusivamente do que pinto... Nunca fiz curso de pintura, faço pintura popular, de base figurativa, primitivo não dou... Embora possa ter raízes primitivas. 


Wellington Virgolino, 44 anos, pernambucano do Recife, faz sucesso em São Paulo em sua individual em “A Galeria”: 32 quadros - óleos sobre tela colada em Duratex, a técnica com temas bíblicos, quase todas vendidas, preços variando de 6 mil a 15 mil. São telas pequenas, médias e grandes, bem coloridas, decorando feericamente o amplo salão de entrada da galeria de Waldemar Szaniecki, na Rua Haddock Lobo. Virgolino atende a críticos e jornalistas, é sua terceira individual em São Paulo, depois de lançado aqui pela Galeria Artréia, em 1964 e em 1967. Tem fala mansa e cordata, aguda vocação para o humor. 

- Adoraria fazer vanguarda, se tivesse vontade, mas não tenho... O abstrato não me distrai nem atrai... Prefiro as histórias de quadrinhos, a gente das feiras, as bandeiras dos clubes esportivos, os desfiles carnavalescos... Por que Morandi só pintava garrafas e copos?... Porque gostava deles... Eu gosto da minha pintura, gosto de contar coisas com ela, fazer uma pintura bem popular, nada temática ou ideológica... A cor, sim, é bem primitiva, identifica minha pintura com o povo... A cor que a gente vê, nas ruas, nos bailes, nas feiras, está nas minhas telas. 

Antes, sua pintura não era identificada com o povo?

- Era, mas era mais social, temática... Depois surgiram crianças, essas crianças passaram a ter vida, a fazer brincadeiras, cada quadro meu tem muitas brincadeiras, coisas criativas e ingênuas que me divertem, oi retrato que procuro fazer do absurdo doméstico... E isto está dominando a minha pintura até hoje... Um brinquedo de feira num canto duma tela, uma panela que é chapéu, um urinol usado como cadeira... Mil artifícios que considero autênticos, estórias que eu conto... Acrescentando um ponto... Tudo tão diferente e tão distante da minha arte de 1950 e 1960, aliás, recebeu na época críticas elogiosas de um José Geraldo Vieira, de um Mauro Motta. 

Quando começou? 
- Lá pelos idos de 45, 46... Meu pai era marítimo, fiz o primário, estudei i ginásio até o científico... Trabalhei no comércio até 1967, numa companhia de navegação, tive minha própria agência de propaganda... A verdade é que vivi a infância nas ruas, ganhando a carga vivencial popular que hoje transponho em muitos quadros... Em 1950, por aí, com um grupo de pintores recifenses, criamos a Sociedade de Arte Moderna, que tinha um ateliê coletivo, onde podíamos pintar... Eu já pintava em casa, mas usei muitas vezes esse ateliê, onde também figuravam Brennand, Abelardo da Hora, Gilvan Samico, Wilton de Souza e outros... nó fazíamos de tudo, escultura inclusive, mas eu saí mais para pintor.

Qual a sua técnica? 
- Cada quadro meu leva tempo para sair... Escolhido o tema, preparo a tela, desenho, pinto, espero que ela seque... Dou uma segunda mão, retoco, espero secar outra vez... Por último vem o retoque final... Pinto vários quadros ao mesmo tempo. Toda minha produção é colocada na Galeria Ranulpho, do Recife, na própria capital, no Rio e em São Paulo... Uma garantia, acho, esse sistema, para o artista... Sou muito caseiro e bem organizado, pinto religiosamente 6 horas por dia, quando não, estou ocupado com coisas da arte, compra de tintas e telas, visitas a exposições, bate papo sobre arte com os amigos e coisas assim... Minha pintura é minha profissão, minha arte é minha vida... E posso dizer que meus personagens, mesmo os adultos, são crianças, parecem crianças sempre, são crianças impostas pela própria pintura. Com elas faço minha pintura, minha arte... Com elas me distraio e me divirto. 

Virgolino conta que vive em Campo Grande, bairro recifense, com a mulher e dois filhos. Sua primeira individual foi na própria Recife, no Teatro do Parque. Depois, fez outras individuais em Recife, São Paulo e Rio, e várias coletivas em sua terra natal. Belo Horizonte, Salvador, São Paulo Rio e Londres. Prêmios: 1954, Menção Honrosa (Pintura) no Salão do Estado de Pernambuco; 1955, (Escultura), idem; 1960, 2º Prêmio (Pintura), idem; e em 1961, Pintura 1º Prêmio, no mesmo Salão do Estado de Pernambuco. Ele repete considerar-se um pintor popular, não é primitivo nem folclórico... E o Popular, mais que pelos temas, por causa das cores. 

Seu hobby é, além da pintura, o futebol, não perde jogo do Santa Cruz, o último que viu foi o jogo da vitória do seu time sobre o Santos de Pelé, por 3 x 3. “Pelé não está no canto de cisne não, jogou um grande futebol, mas o nosso Ramon, artilheiro do Brasileirão, quis mostrar que é bom também e fez os gols a vitória sobre os santistas”. Virgolino encaixa muitas cenas e historietas do futebol em suas telas como no portentoso “Derrubada dos muros de Jericó”, onde, do lado vitorioso, entre os soldados guerreiros, está um deles com a bandeira do Santa Cruz. “Minha paixão é essa”. 

- Que acha da arte brasileira atual? 
- Excelente. O artista nosso é bom, seja aqui, no Recife, em Caruaru, no Rio ou em Paris... Mas só é conhecido e ganha fama se é divulgado, e nem todos o são... Eu tive sorte, tenho sido noticiado, e ainda mais agora em São Paulo, esse colosso do Szaniechik promovendo... Hoje, em todo o Brasil, há dezenas de jovens fazendo uma arte séria e adulta... São os seguidores de nossos maiores mestres, como Rego Monteiro, Tarsila, Portinari, Di, Segall, Volpi, Milton Dacosta, todos influenciando as novas gerações... Dos atuais, destaco, entre outros, lá mesmo no Nordeste, Brennand, Samico, João Câmara, José Cláudio, Fernando Lopes (Maceió), Miguel Santos (João Pessoa), Emanuel Araújo em Salvador e assim por diante... Afora os consagrados como Lula, Caribé, Cícero Dias, Jenner, Genaro, Cravo e outros. 

- A arte feita no Recife é exclusivamente regional? 
- Não, na é uma arte exclusivamente regional, embora tenha as influências do meio... É, em valor, até universal... Acontece que Walmir Ayala e Roberto Pontual acha que temos uma Escola Pernambucana, quase toda baseada em Rego Monteiro... Os principais elementos dessa escola seriam a cor, os temas populares e a tendência figurativa... Eu e João Câmara seríamos dois dos mais típicos representantes dessa Escola... Sim, somos unidos no Recife, temos boa camaradagem entre os artistas... 

 Virgolino está contando casos e anedotas, um grande grupo se forma à sua roda, ele parece um mágico a tirar surpresas de sua prosa ágil e inteligente, às vezes irônica e sarcástica como sua pintura em que transforma os elementos populares em formas plásticas de grande beleza. Ele repete e conta que sua tendência maior são os absurdos domésticos, o cotidiano engraçado, pitoresco, alegre, folgazão, mágico, quase surrealista.

E, DAQUI POR DIANTE, FALA O ARTISTA: 

... mas o que me interessa é contar uma história.

 Eu não conhecia a Bíblia. Nunca tinha lido. E como dizia Cézanne é sempre bom a ente fazer alguma coisa que vê pela primeira vez. A idéia de fazer um ciclo, uma série de quadros inspirados em episódios do Velho Testamento, surgiu logo que recebi o convite para fazer essa exposição, em “A Galeria”. Eu tinha feito, e me dado bem, duas exposições, duas séries: uma sobre o Circo e outra sobre os Signos.

Meu primeiro contato com o Velho Testamento foi através de uma Bíblia em quadrinhos, que pertence a meus filhos. Também tinha um texto de uma Bíblia católica, da minha casa. Mas depois que souberam que eu estava pesquisando sobre o tema recebi várias ajudas, um livro de ilustrações de Gustavo Doré e vários livros de interpretações ligadas à cultura hebraica, que me forma emprestados pela colônia israelita. 

A partir daí escolhi os temas: Suzana e os Velhos; José e a Mulher de Putifar; o Paraíso (tríptico); Derrubada dos Muros de Jericó; Moisés e as Tábuas, etc., em número de trinta e dois, que resultaram nos quadros dessa exposição. 

Moisés (o maior) foi o primeiro quadro que pintei. E por isso mesmo ele é, talvez, o mais linear; isto é, o mais ligado diretamente a uma narrativa do tema bíblico. Inclusive refiz, várias vezes, a inscrição dos Mandamentos, optando finalmente, pela forma hebraica, já nos outros quadros fui me soltando e colocando minha visão pessoal, uma interpretação minha em cada episódio(gosto desse tema porque ele lembra as revistas em quadrinhos, forma narrativa atual que muito me interessa). 

Sou uma pessoa séria, mas que gosta de brincar. E isto tem que ser revelado através da minha pintura (se não acontece agora, acontecerá aos 80 anos, quando eu estiver com muita maturidade). No quadro “José e a Mulher de Putifar” coloco um cabide com o chapéu de guerreiro de Putifar (como se sabe os guerreiros antigos usavam chapéus com chifres grandes, para assustar os inimigos); e isso poderá significar que José, realmente, estava no quarto de Putifar, e não no seu, como diz a Bíblia. No quadro “Derrubada dos Muros de Jericó” coloco uma bandeirinha do Santa Cruz Futebol Clube (meu time) no lado vitorioso e uma do Clube Náutico Capibaribe (time do meu grande amigo Carlos Ranulpho) no lado da cidade situada. São pequenos detalhes que fazem parte da minha pintura, uma forma de tirar o dramatismo pesado (que não me agrada). 

Na realidade, o Velho Testamento, o Circo, os Signos são apenas temas que servem à minha pintura E ela só ficará na medida em que for esteticamente boa (e eu espero que seja). Mas são temas onde encontro os elementos que posso transformar em formas plásticas, dentro do meu estilo. Porque na verdade junto ao ato de pintar o que me interessa é contar uma estória. De preferência, uma estória divertida. Muito me agradou pintar esses trinta e dois quadros que fazem a minha atual exposição; inclusive me divertiram. E eu espero que eles sirvam, também, para divertir o espectador. E se forem vendidos, melhor; me divertirão ainda mais. 

A TRIBUNA Santos, 18 de novembro de 1973.

ROSA/ROSETA DE ESPÍNDOLA NO MAB

No momento em que se discute a problemática da arte brasileira o artista Humberto Espíndola, mais uma vez, força a quebra de barreiras (como o fez com sua Bovinocultura). Desta vez com um novo símbolo - a rosa - em que à primeira vista não está ligada ao regional, propositadamente para não canalizar ligações que possam interferir no rompimento dessas barreiras. Espíndola coloca a rosa em diversas situações para falar de uma realidade circundante e, por sua extensão, de uma realidade nacional. A rosa saiu do isolamento, assim como a Bovinocultura. Diferentes, porém. A Bovinocultura saiu do isolamento sulista mato-grossense. A bovinocultura surgiu no poder do boi e dos mistérios econômicos desse poder. A rosa saiu de Cuiabá, centro administrativo, conseqüentemente novas circunstâncias, novas facetas do poder. Onde está o elo das ligações formais e temáticas no trabalho aparentemente diverso de um artista que se pretende coerente à sua própria posição no seu meio social? 

Para Humberto Espíndola a idéia central da rosa nasceu do crachá ou roseta - a comenda fartamente utilizada na sua fase anterior, a Bovinocultura. - A forma da rosa inspirou a roseta, assim, a rosa surge do crachá. A rosa flor aparece como um crachá mais universal, conseqüentemente um símbolo de maior penetração, atingindo a problemática em âmbitos novos. A rosa é a roseta que premia a sociedade mato-grossense, não mais apenas a do boi, mas a sociedade burocrática e administrativa cuiabana, da política e das lideranças. Agora Mato Grosso se vangloria de ser o estado agrícola e não apenas pecuário, nas o estado do arroz, da soja, do milho, da erva-mate e do café.. A rosa possui, portanto a correlação imediata com a terra, é o mesmo reino, é símbolo de fertilidade, é a comenda arrancada da terra. 

A rosa é poesia, flor do planalto. É a Brasília que se irradia. Espíndola aborda um sentimento estético do cotidiano transposto para a problemática da pintura, falando do kitsch como fator de raízes que modifica nossa sociedade. A rosa-crachá, a flor do art-noveau, satiriza os nossos tempos que se aproximam do novo fim do século e o romantismo que se esvazia. 

Espíndola quis trabalhar com uma imagem desgastada - a rosa é do mundo. Seus novos trabalhos propõem ao público cortar barreiras culturais para falar, no entanto, dessa mesma problemática. Aborda entre outras intenções o problema da incompreensão da arte moderna. Sim, é preciso levar em conta que o público não se identifica mais com a arte atual, seja ela de qualquer tipo. “A pintura hoje está cada vez mais relegada a uma elite intelectual e isso não é bom”. Ao falar da Rosa, Espíndola aproveita-se de estampas para explorar mais o desgaste da imagem e em conseqüência disso atingir mais, ampliar o alcance da obra para um público maior. 

Usa um meio de expressão convencional - a rosa é comunicação universal - atitude, portanto contrária ao individualismo que elimina o clichê, a compreensão mútua. As rosas são um protesto ao culto da originalidade, ironizando justamente o próprio sentido de “arte moderna” Neste momento de conscientização da crise de linguagem o artista propõe a rosa como imagem comum, precisamente pela falta de uma, nesta era de ideologias. 


Ao pintar o boi Espíndola lhe criou uma própria simbologia. Agora ele parte da simbologia já criada, catalogada e industrializada, para lhe acrescentar novas observações. Ao pintar a rosa ele se lhe dirige diretamente como símbolo, o emblema e o seu complexo de significações. 

Usa o verde-amarelo, porque são cores que a nós. Brasileiros, fazem palpitar desenvolvendo-nos a uma emoção remota dos tempos de criança, quando fomos apresentados aos símbolos nacionais. Memórias estas que a rosa revela, desvela, reflete. Outras vezes o usa com intenção de explicar o clima de brasilidade que Cuiabá nos permite sentir melhor por ser Capital, “Cidade Verde”, “Portal da Amazônia”, Centro da América, centro-oestina, política e administrativa, daí a trazer conversações mais emocionantes nesta hora de progresso palpável. 

Espíndola pensa em seu público em termos de Mato Grosso e Brasil. É uma posição do artista. Um ramalhete de rosas insinua o contorno da América do Sul (o título da obra é Florão da América). Como um emblema as rosas amarelas são a gema brasileira, sobre o azul aberto dos planaltos, planíveis, sertões e cordilheiras. Cercando o ramalhete o Cruzeiro do Sul. Pelo azul a aspiração da liberdade, a vontade de alçar vôo. Suas rosas sufocam um convite ao raciocínio. Seus quadros têm um discernimento sobre os mais variados assuntos. Em “Príncipe Negro”, por exemplo, notamos o ato de condecorar. Condecoram-se as personalidades, mas ao mesmo tempo em sigilo, o quadro do vidro de perfume enorme cuja tampa é a comenda. Veredas, intimidades, relações humanas sendo tocadas pela indagação da flor. 

A rosa acompanha o homem de gerações em gerações através de milênios. A rosa é memória, história, ética e estética que faz parte das coisas do homem, uma companheira, conquistada e prisioneira da própria fragilidade. Como a arte. A rosa é refinamento... Mas, ao mesmo tempo, pode ser também o contrário de tudo isso, desgastada pela massificação da imagem, a ponto de tornar-se hoje em dia proeza kitsch.

As rosas estão aqui e ali, naturais ou de plástico. Mas as naturais também perderam o cheiro, por força do imenso cruzamento híbrido. E o homem perdeu tanta coisa na hibridez de sua vida social! 

Espíndola propõe a divida diante da questão do gosto: bonito ou feio? Valioso ou não? Suas rosas rugiram no meio de uma circunstância onde elas não representam o mau gosto. O que seria o mau gosto? Mando da minoria. Aí está a dualidade tratada no trabalho de Espíndola - a mesma da sua Bovinocultura. Tanto quanto exalta ele critica, explode, reprime. O artista propõe um problema estético aos olhos da metrópole. 

- “A isso tudo verifica-se um constante bom humor. Gracejando com o conhecido o artista propõe novas relações, atinge a não evidência, chega-se ao inesperado”. 

 A TRIBUNA 16 de outubro de 1977.

No MAB 75 artistas mostram evolução da nossa tapeçaria

- Ao negar a Arte Conceitual em sua essência artística, Arnhein trouxe à baila a acadêmica e esclerosada questão da validade da obra de arte como fenômeno artístico. Partindo da premissa de que as “experiências reflexivas” propostas pelos artistas conceituais não passam de “úteis exercícios para a imaginação” e esquecendo que a arte é sobretudo uma coisa mental, concluiu que devemos considerar a obra de arte conceitual apenas como obra. Isto porque o termo “obra” oculta a modéstia da realização constituindo-se em ponto de referência, registro e instrução. Com todo o respeito que temos pelo professor de Psicologia da Arte não podemos deixar de considerar suas idéias como reacionárias e retrógradas. Tão anacrônicas como adjetivar a arte como maior, menor, aplicada, decorativa, atitude muito comum nesse nosso século que não tem o seu Catulo para cantar a sua falta de “graça e de raça”. As objeções de Arnhein à validade artística da obra conceitual são muito semelhantes àquelas levantadas à tapeçaria, comumente considerada como um subproduto artístico.


Quem fala assim, eufórico, é o prof. Carlos Von Schmidt, diretor do Museu de Arte Brasileira, apresentando a I Mostra Brasileira de Tapeçaria, no Museu da Fundação Armando Álvares Penteado. Além da exposição coletiva nacional - 155 tapeçarias de 75 artistas brasileiros - a Sala Especial em homenagem aos precursores da tapeçaria no Brasil - Regina Graz, Genaro de Carvalho, Norberto Nicola e Jacques Douchez, - a I Mostra expõe uma mostra paralela de peças indígenas, procedentes do Pará. E, além disso, há a Quinzena da Tapeçaria, com palestras e debates, exibição de filmes, exposição de tapeçarias em lugares públicos, tudo visando a uma promoção global da arte da tapeçaria entre nós. 

Com Schmidt prossegue: 

- Para Chevallaz a tapeçaria em nosso século “tem sido conservada com todo o piedoso respeito da história” em autêntico banho-maria. É uma arte que é e não é. Quando chega a ser, séculos de “tradição artística” calcada em preceitos e conceitos pré e pós-renascentistas, impõe à tapeçaria uma visão crítica subjetiva, a priori deformada. Quando Chevallaz referiu-se ao piedoso respeito da história pensava em séculos de tradição da arte da tapeçaria oriental européia. O que podemos pensar da jovem tapeçaria brasileira? Que importância tem? Que significado possui? O que representa artística e culturalmente? Quando deixou de ser “arte menor”, “arte aplicada”, “arte decorativa”? Formuladas as questões, tentar respondê-las era necessário. A resposta ou respostas, só poderiam obter através da própria tapeçaria. À margem dos museus, manifestando-se isoladamente, a tapeçaria brasileira sempre constituiu-se num fenômeno isolado, a parte do contexto artístico nacional. Acreditamos que a partir desta 1ª Mostra poderemos ter uma visão geral do que os tapeceiros brasileiros estão realizando. Através desta Mostra podemos observar o nível criativo e técnico desses artistas e aferir valores. Estabelecer-se, assim, um ponto de referência. 

- Hoje, tapeceiros como Olga Amaral, da Bolívia, Madalena Albakanowics, da Polônia, Buic Jagoda, da Iugoslávia, comumente citados e conhecidos dos freqüentadores das bienais, passam também a serem pontos de referência. Acredito que podemos pensar agora em termos de uma tapeçaria nacional, não de toda livre de modismos e influências internacionais, mas a procura de uma definição própria e autêntica. Sem nacionalismos exacerbados e regionalismos inúteis e vazios, folclore festivo e turístico, a tapeçaria brasileira está assumindo uma posição livre em que a tradição secular européia felizmente não interfere. Atendendo ao convite da Comissão Organizadora desta 1ª Mostra, 101 tapeceiros submeteram ao Júri de Seleção, 241 obras. Esta 1ª Mostra reúne 155 tapeçarias de 75 artistas de todo o Brasil. Acreditamos que para começo um passo enorme foi dado. Na 6ª Bienal Internacional de Lousanne o ano passado, foram submetidas a julgamento 600 obras. 55 artistas representando 20 países foram selecionados. Os dados falam por si. Dimensionam com objetividade e clareza o trabalho que ora iniciamos no Brasil. 

O diretor do MAB conta que a 1ª Mostra Brasileira de Tapeçaria foi organizada por uma Comissão da qual foi o presidente, sendo membros Norberto Nicola, Jacques Douchez. Sílvio Darcy, Olney Kruse e Luiz Ernesto Kawall. O Júri de Seleção e Premiação foi constituído por Paulo Mendes de Almeida (presidente), Renina Katz, Sheila Leirner, Cesar Goibbi, Ruy Ohtake, Alexandre Woloner, Norberto Nicola, Jacques Couchez e Alberto Beutenmuller. A premiação atingiu Iracy Nietsche (Prêmio Metal Leve, 10 mil), Inge Roesler (Banco Nacional, 10 mil), Gilda Azevedo (Moinho Santista, 5 mil), Maria Tereza Lemos de Arruda Camargo (Fundação Álvares penteado, 5 mil) e menções especiais para Marlene Trindade, Yedo Titze, Zorávia Betiol, Ignez Turazza e Karin Viegler. O prof. Schmidt informa e já retorna ao fio da meada: 

- Nesses 12 anos de Bienais em Lousanne, com a evolução da tapeçaria, os conceitos quanto a forma e conteúdo também evoluíram. Assim, as definições clássicas de arte aplicada, menor, decorativa, caducas e anacrônicas, nada mais significam, em face da proposição formal da tapeçaria contemporânea. Ao deixar o solo, a parede, ao ganhar o espaço, ao se dimensionar, ao se projetar rompendo os limites tradicionais, ao procurar novos materiais como a fibra de vidro, o alumínio, o aço, a fibra natural, a tapeçaria através de um dinamismo surpreendente criou condições de existência cujos limites desafiam as classificações. Esta Mostra não pretende e nem quer ditar caminhos ou sugerir soluções. Propõe-se apenas a criar condições para um levantamento futuro do que se faz em tapeçaria no Brasil. É intenção deste museu realizar em 1975 uma Mostra Internacional de Tapeçaria, e esperamos que a experiência desta I Mostra, com todas as possíveis falhas que possa ter, nos sirva de exemplo. Do trabalho pioneiro de Regina Graz, Genaro de Carvalho, Jacques Douchez e Norberto Nicola procuramos dar uma visão parcial, pois somente a partir desta I Mostra poderemos cogitar da importância que desempenharam e inda desempenham no processo cultural e artístico brasileiro. 

- As tapeçarias de Regina, precursoras de uma arte essencialmente brasileira, surge hoje aos nossos olhos, com sugestões tropicais que posteriormente Genaro iria desenvolver até as últimas conseqüências, em jamais conceder as facilidades coloridas de comércio certo e gosto duvidoso. Dos primeiros, senão o primeiro a chamar a atenção internacional para a tapeçaria nacional, Genaro desempenhou um papel significativo e relevante no desenvolvimento da tapeçaria tornando-a exeqüível e credível em uma época de total descrédito. Norberto Nicola e Jacques Douchez, idealizadores desta I Mostra, autênticos renovadores da tapeçaria brasileira, colocam-se na vanguarda desta arte em contínuo movimento, desempenhando um trabalho cuja seriedade e critério reveste-se do mesmo espírito pioneiro desenvolvido por Regina nos anos 20.

E conclui:

- Quando a História da Tapeçaria Brasileira for escrita a contribuição de Nicola e Douchez poderá então ser convenientemente ressaltada. Numa época em que todos os valores políticos, morais e filosóficos são questionados, os valores artísticos também não poderiam permanecer imutáveis. As mudanças radicais que diariamente transformam as leis da sociedade, felizmente também afetam a arte. Assim, acreditamos que os critérios que adotamos para organizar, selecionar, montar a I Mostra, não sejam os mesmos de amanhã. Acreditar nessa dinâmica é das poucas verdades plausíveis do momento. Negá-la, absurdo a que não nos propomos. 

A TRIBUNA 13 de Outubro de 1.974.

GOMIDE, ARTISTA PRIMORDIAL

“Dentro dos pioneiros da arte moderna no Brasil, Antonio Gonçalves Gomide está sendo dos últimos a ter o seu incontestável valor plenamente reconhecido. 


“É figura de primeira plana no movimento, tanto pela importância da obra, quanto pela influência exercida. A importância da obra, hoje, ninguém mais a discute. A influência exercida ainda não foi avaliada em toda a sua profundidade e em tudo que significou na fase heróica da nossa renovação. Poucos os que dela se beneficiaram vieram a público confessá-la. Um desses raros foi Arthur Luiz Piza. Piza, entretanto, é e outra geração. Conta-se entre os muitos alunos de Gomide. E um dos discípulos que agora honram o professor. 

Luiz Arrobas Martins, professor e advogado, novo imortal da Academia Paulista de Letras, ex-secretário de Estado, vice-presidente do Museu de Arte Moderna, conselheiro do Tribunal de Contas, está na galeria “A Ponte”, onde se realiza uma mostra de aquarelas inéditas de Antonio Gomide, saudoso artista, desaparecido em 1967 em Ubatuba, onde viveu os últimos anos de sua vida, cego e semi-abandonado. Arrobas é além de tudo “expert” em artes, um formidável propulsor da cultura, em todos os cargos onde tem exercido funções públicas. Ele dialoga com Paulo Mendes de Almeida, crítico maior de nossas artes plásticas, e que conheceu Gomide nos bons tempos do cubismo. Paulo diz que o artista, quieto, taciturno, era irmão de Regina Gomide Graz, casada com John Graz, um dois participantes (e ainda vivo) da Semana de 22. Mas Gomide não estava na Semana, em 1922 estava na Europa, onde aprendia os rudimentos da arte moderna com Picasso, Chagall, Braque e Lothe, entre outros. A conversa torna-se viva. Isaac Krasilchik, promotor da volta de Gomide ao cartaz artístico, recorda passagens da vida do artista, ainda lutador de boxe, soldado de 32, professor de inúmeros alunos, cenógrafo, pintos, aquarelista, escultor, desenhista, fazia também afrescos. Mas é Luiz Arrobas Martins, com sua reconhecida autoridade e fácil eloqüência, quem retoma a palavra, desatando vida e obra de Antonio Gonçalves Gomide, que deve ocupar “um lugar primordial na evolução da pintura brasileira”. 


Arrobas: 
“Refiro-me, porém, à influência que teve sobre os contemporâneos, sobre os seus próprios companheiros de geração e os pouco mais moços. Ela foi muito maior do que se faz supor o seu temperamento arredio, a sua rebeldia a grupos ou corrilhos artísticos, a sua indiferença pela publicidade e pela promoção pessoal. Talvez se tenha feito sentir mais através da obra, que da atuação direta e pessoal do artista. 

“E se irradiou por vários setores: o desenho, a aquarela, a pintura a óleo, o afresco, em que teve papel capital, os cartões para vitrais, em que ninguém o superou. 

“Gomide não participou da Semana de Arte Moderna. Encontrava-se em Paris, nessa ocasião. Depois de se diplomar pela Escola de Comércio de Genebra, em 1914, e cursar a Escola de Belas Artes até 1918, fora para a capital da França. Estava no centro universal das pesquisas estéticas inovadoras. Tomava contato direto com os movimentos de vanguarda, freqüentando Braque, Lhote, Picasso, Severine, Picabia e participando do “Salão dos Independentes” e no “Salão de Outono”. É quando recebe o poderoso influxo cubista, que marcará toda a sua obra, ora bem visível e manifesto, como no esplêndido “Árvores”, de 1925 (col. Erik Stickel, S. Paulo) e na aquarela que representa o que parece um desolado Pierrô a carregar a sua Colombina de longos cabelos ondulados, ou na que estiliza caçadores de antílopes, ambas incluídas nesta exposição; ora menos evidente como na aquarela “descida da Cruz”, também constante desta mostra; ora quase apagado e apenas subjacente, como na aquarela das três dançarinas sob a árvore, em que se percebem vestígios de “art nouveau”. O desenho raramente consegue encobrir o formalismo cubista, ao menos nos traços fundamentais e na simultaneidade dos planos, inclusive na sua fase mais realista, quando se dedicou principalmente a temas folclóricos e a cenas populares da nossa terra, acentuando o seu reencontro com a natureza e o ambiente brasilinos, dos quais esteve afastado durante mais de 25 anos, com apenas uma curta interrupção de alguns meses, em 1927-1927. Definitivamente, só regressou ao Brasil em 1929. A sua formação foi toda européia. Na Europa esteve durante o período decisivo da constituição de qualquer personalidade, dos 18 aos 34 anos. 
Porto

“A superioridade da formação cultural de Gomide, sua experiência concreta dos meios revolucionários da Europa e o seu conhecimento direto das fontes da renovação artística deram-lhe a autoridade da qual decorreu a influência exercida sobre os artistas brasileiros da sua própria geração. Este é um estudo que precisa ser feito urgentemente. Gomide teve mais ou menos, a mesma sorte de Ismael Nery. Como ele, só recentemente está sendo redescoberto. No entanto, também como ele, sustenta facilmente o cotejo com qualquer dos seus contemporâneos consagrados há mais tempo. Ainda como Ismael, se aqui tivesse exposto quando começou a pintar, ou durante a famosa Semana de 22, os mesmo nos anos que se lhe seguiram imediatamente, ter-se-ía verificado que já estava adiante daqueles que tanto escândalo causaram nos ronceiros arraiais artísticos do Brasil daquela época. O prof. Valter Zanini teve inteira razão ao afirmar que é “um dos nossos artistas essenciais dos anos 20 e mesmo da década de 30”. 

“Quando Gomide passou por São Paulo, em 1927, Mário de Andrade escreveu: “Agora já carece que a gente principie falando de Antonio Gomide no Brasil”. Esta é, hoje, uma verdade inconteste. Só se estranha tenha levado tanto tempo para vir à tona, quer com relação a Gomide, quer com relação a Ismael, de quem, finalmente, já se vem falando. E encontro mais dois paralelos sobre os destinos de ambos: a inapagável herança cubista, da qual são os mais altos representantes entre nós e a predileção pela aquarela. A herança cubista transparece formal e na solidez do desenho em um e em outro, embora pintores bastante diversos na inspiração. No traço, na temática e no colorido. O legado cubista de ambos revela-se ainda na austeridade cromática, na preferência pelas cores primárias, na simplicidade das figuras quase sempre reduzidas aos seus elementos essenciais e na intenção escultural da maioria dos trabalhos. 

“Gomide encontrou, na aquarela, a forma mais adequada para exprimir a sua visão plástica do mundo. É nela que a sua linguagem se faz mais natural. O domínio do desenho lhe permitiu grande espontaneidade no uso desta técnica difícil, talvez menos rica, menos dramática, porém mais exigente e mais delicada que o óleo. Dentre os pintores brasileiros, creio que só mesmo Ismael Nery lhe pode ser comparado neste terreno. Gomide tinha um perfeito controle da aguada e sabia aproveitar habilmente o branco do próprio papel, como o demonstra a “Descida da Cruz”. O seu agudo senso da composição fazia ressaltar, naturalmente, os principais elementos dela, em geral figuras humanas., para as quais iam todas as suas preferências. Depois delas as árvores. Quase tudo quanto pinta, em especial nas aquarelas, está ao ar livre, para que apareçam as árvores. 

“As suas figuras são de rara leveza e placidez, conquanto em movimento, na maioria dos quadros. O seu profundo senso rítmico coloca-se, quase sempre, em posturas esculturais de “ballet”. Esta estilização das figuras e das cenas, particularmente, as que parecem representar festas campestres à moda grega, à que dá aos trabalhos de Gomide um certo decorativismo que neles lamentou Sérgio Milliet, embora fazendo questão de frisar a alta qualidade do artista, “um velho amigo da aquarela”, e “um mestre no gênero”, que “sempre a empregou”. 

“Mais do que com jogos de luzes e de sombras, Gomide conseguiu os contrastes e a iluminação das suas aquarelas com uma destra gradação de tons de poucas cores, geralmente os amarelos, descambando para os ocres e os terras, os vermelhos que se abrandam até o rosa - claro, o verde e as várias cambiantes do azul. Somente quando queria obter maior dramaticidade é que se serviu de cores puras, como já na citada “Descida da Cruz”, nas muitas “Santas Ceias” que deixou e no barco açoitado pelo vendaval, que se acha nesta exposição. 

“As paisagens urbanas, também expostas, são nova demonstração do geometrismo cubista, presente em toda a sua obra. 

“Em vida, acho que Gomide só expôs individualmente uma vez. Esta exposição, após a retrospectiva de 1968, se filia à série de iniciativa que o estão recolocando no lugar primordial, que lhe cabe, na evolução da pintura brasileira. 

TRIBUNA DE SANTOS Domingo, 16 de dezembro de 1973.


SAIBA MAIS SOBRE ANTONIO GOMIDE:

Fonte: MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA/USP

Antonio Gomide
Itapetininga, SP, Brasil, 1895 / Ubatuba, SP, Brasil, 1967

Um dos grandes nomes da Primeira Geração de modernistas, Antônio Gomide foi pintor, escultor e professor. Trouxe para a modernidade paulistana a experiência vanguardista parisiense - Cubismo e Art Déco -, desenvolvendo sua arte dentro das propostas da Semana de Arte Moderna de 22. Sua obra apresenta mudanças de rumo ao longo de quase 50 anos de produção, particularmente depois dos anos 30. 

Pertencente a elite paulista, era um homem cultivado de bela aparência física e esportista; praticava o boxe inglês e a esgrima. Filho de um jurista, sua formação artística se deu em Genebra, onde já vivia com a família antes da Primeira Guerra Mundial. Frequentando com a irmã a Academia de Belas Artes, foi aluno do simbolista Ferdinand Hodler e colega do pintor John Graz, que se tornaria seu cunhado. Entretanto, o que marcaria profundamente sua obra seria a experiência parisiense, a partir de 1923. Nesta oportunidade, convive com os modernistas brasileiros Tarsila do Amaral e Victor Brecheret, que lá estavam. Entra em contato também com a arte de Pablo Picasso, Georges Braque, Francis Picabia, Gino Severini, André Lhote, entre outros. 

Gomide destacava-se no grupo da Primeira Geração de Modernistas por sua experiência com a técnica do afresco, a partir de 1924, quando teve com mestre Marcel-Lenoir, em Toulouse. Neste período, aborda temas religiosos, como faziam Vicente do Rego Monteiro e Victor Brecheret.

Voltando ao Brasil, em 1928, Antônio Gomide passa a integrar-se cada vez mais ao panorama nacional, residindo em São Paulo. Participa do cenário artístico e político da cidade; alista-se nas tropas constitucionalistas da Revolução de 32. Neste mesmo ano, funda o CAM (Clube dos Artistas Modernos), juntamente com Flávio de Carvalho, Carlos Prado e Di Cavalcanti. Como Oswald e Tarsila, torna-se socialista e sua arte volta-se, no decorrer dos anos 30, à temática nacional e popular, com ênfase na sensualidade e no ritmo das figuras africanas. Sua pintura percorre os esquemas decorativos cubistas do Art Déco - como nos cartões de estamparia, nos estudos de painéis e vitrais e na arte religiosa dos anos 20 -, bem como uma fatura expressionista - nas figuras toscas, com ausência de desenho. Além desta participação efetiva na modernidade paulistana, pode ser recordada sua significativa produção de painéis em afrescos e vitrais espalhados pela cidade, mantendo os esquemas estilizados do Art Déco. 

Nos anos 60, a perda de sua visão o obriga a mudar novamente seu destino como artista. Em uma relutância em abandonar a arte, dedica-se à lecionar, transmitindo para novas gerações a herança modernista. É a escultura, no entanto, que permite o artista a continuar sua produção, apesar da dificuldade em enxergar. Com a visão bastante comprometida, retira-se para Ubatuba, onde vive em reclusão até a sua morte, em 1967.


Ainda sobre Antônio Gomide:

Fonte:100 OBRAS ITAÚ - Exposição no MASP entre 30/10 a 24/11, 1985

Walter Zanini, em 1968, dedicou-lhe estas linhas:

"É pois aos 34 anos que Gomide vai procurar integrar-se à arte de seu país de origem. Sua pintura, fortemente marcada pela estica cubista, sofrerá profundas e rápidas transformações, nacionalizando-se radicalmente. Nesse sentido, podemos aproximar sua  experiência daquela de Di Cavalcanti. Desde o regresso demonstrou aptidões didáticas e durante muitos anos orientou inúmeros alunos, reunidos em pequenos grupos, nos ateliês que  abria e fechava em vários pontos da cidade". 

ARTES REPORTAGEM - FICHA TÉCNICA



Artes Reportagem

FICHA CATALOGRÁFICA

KAWALL, LUÍS ERNESTO MACHADO, 1927 Artes reportagem;

Prefácio, LUÍS ARROBAS MARTINS

Apresentação, FRANCISCO LUÍS DE ALMEIDA SALLES

São Paulo, Centro de Artes Novo Mundo, 1972.

1. Arte – Brasil
2. Artistas brasileiros
3. Repórteres e reportagens

I. Título 72-0517 17. CDD-070.440981 18. -070.44970981 17. 18 -709.81

Índices para catálogo sistemático:
1. Brasil: Arte 709.81
2. Brasil: Arte: Reportagens: Jornalismo 070.440981 070.44970931

FICHA TÉCNICA

Planejamento editorial de FERNANDO CERQUEIRA LEMOS

Assistentes: LISBETH REBOLO GONÇALVES e MAURA APARECIDA MACHADO

Arquitetura Gráfica: TIDE HELLMEISTER

Assistente: LUIZ FRANCISCO E. J. KRUG

Coordenação Técnica: MASSAO OHNO

Rebollo e Massao Ohno

Composição: LINOART Fotoletras de LETTERA FOTOLETRAS
Fotografias de JARBAS MARCONDES Interfoto Produções Fotográficas
Fotolitos: MULTICHROM Fotos de capa: ALL-TYPE
Impressão em off-set Gráfica Impressores
1ª edição – 2000 exemplares São Paulo – Brasil