quarta-feira, 26 de novembro de 2014

NONÊ - O guerreiro que se foi


Nonê era um homem fabuloso, alegre, comunicativo, simples, educado. Tudo nele era motivo de festa. Trazia flores para casa e me escrevia sempre cartas e bilhetes de amor, chamava-me de “mãe”... Era bom, paciente, afetuoso, preocupado com os filhos e com a memória de Oswald, inteligente, culto, lia muito e de tudo, falava fluentemente francês e inglês, sabia alguma coisa de espanhol, italiano e alemão. Tinha uns requintes de burguesia, gostava de boas comidas e só tomava uísques e vinhos muito bons, adorava pintar, ensinar trabalhar em diversas atividades e empreendimentos culturais, construir, escrever, participar, lutar por suas ideias... Sim, o Nonê era um idealista, um anjo bom como quer o jornalista, o Nonê era gente, sim... E tratava todo mundo como... gente... O Nonê, querido.

Anita Malfati
Retrato de Oswald de Andrade Filho (Nonê)

Adelaide Guerrini de Andrade casou-se com Oswald de Andrade Filho em 1940. Tiveram de um casamento feliz, 4 filhos: Inês Adelaide, casada com o cineasta Cavalheiro Lima; José Oswald, casado com Maria Jambeiro; Marcos Antonio, casado com Regina Ceneviva e Bárbara Heliodora, a Pílula. Os nomes foram dados todos, “pelo velho Oswald”. Ela conheceu Nonê quando Oswald se casou com sua irmã, Julieta. Trinta dias exatos da morte de Nonê, Adelaide está sentada junto à mesa colonial da sala de jantar. Ali está a poltrona vazia de Nonê. Entre lágrimas e recordações, junto às fotografias, recortes, pacotes de livros, cadernos de anotações de Nonê, recorda: 
“O Nonê morreu de sua diabete, não foi do coração, morreu sentado na cama, em nossa casa do Guarujá, dialogando comigo... Eu mexia na cozinha, preparando o jantar. Eram umas seis horas.. O Nonê estava meio quieto. Pensei que era aquela dorzinha que ele tinha no braço. Perguntei, ele me disse que escutava os passos do jardineiro lá fora... Voltei-me, ele já caíra pra trás, inerte, os olhos vidrados, morto. Naquele dia não quis ir à praia, tomou só um gole de vinho ao almoço, não bebeu cerveja, ficou logo tempo sentado na escada de fora, olhando a paisagem... Ele me disse que se ganhasse na loteria – raramente ele jogava – daria uma casa nova para nossa empregada. Ele comprava aquele morro do Guaiúba, todo verde, para impedir os loteamentos, o asfalto cortando a mata, os carros barulhentos poluindo a bela natureza do lugar... Ah, o Nonê de mil projetos, do Museu do Mar, do Salão de Arte Lúdica, do seu livro que escrevia há anos e está pronto... o Nonê, nunca mais.

Cabeça de Oswald  - 1942 (por Nonê)

O piano alemão fechado, ex-votos do Ceará, anjos e santos de igreja, as telas de Tarsila, Di, Anita, Bonadei, Rebolo, Graciano, Léger, assistem mudos o diálogo difícil e terno. A pílula já está preparando um cafezinho. Adelaide conta da grande alegria de Nonê, este ano, com a mostra da Semana de 22 no Museu de Arte, que montou a pedido do prof. Bardi, os debates que se saíram, as três aulas que deu – durante horas num dia só, na Faculdade São Caetano, quando repôs a verdade sobre Oswald, conforme disse, extenuado, ao voltar noite alta para casa. Pai pelo qual tinha verdadeira adoração – e também Oswald tinha loucura pelo Nonê – o Oswald que queria “levado a sério, como literato e artista, propulsor do modernismo no Brasil”. Ela fala também da longa conversa, praticamente o dia todo, que o Nonê teve com o irmão Rudá, aqui na sua casa, nesta sala, na véspera de sua morte. Eles, parece, trocaram confidências de toda a vida. Nunca se falaram tanto. O Nonê teria pressentido sua morte? O cafezinho é bom, forte. 
José Oswald Antonio de Andrade (Oswald de Andrade Filho, Nonê) nasceu em São Paulo a 4 de janeiro de 1914. Filho do escritor Oswald de Andrade e Henriette Boufllers. Fez seus estudos no Brasil. Em 1924 foi para Lausane (Suíça) retornando a São Paulo em 1929. Em 1924, seu pai casou-se com Tarsila do Amaral, que exerceu influência em sua formação humana e artística... Nessa época Nonê teve os primeiros contatos com grandes figuras da arte europeia (Picasso, Cocteau, Lerger, etc.) e assistiu a importantes manifestações artísticas de vanguarda da época... Iniciou seu aprendizado de pintura com Portinari, depois Anita Malfati, por último com Segall... Conforme seu depoimento, apesar de seu estilo bastante pessoal, integrou-se nos movimentos renovadores da pintura paulista, sempre atuando em defesa de uma arte brasileira com raízes no povo, no folclore, como a maior e mais rica fonte de inspiração para o artista. Desde 1935 até 1972 apresentou anualmente seus trabalhos em diversas exposições. 
Adelaide se levanta, vai mostrar o ateliê de Nonê, instalado no fundo da casa. Após a passagem pelo pátio sevilhano, de tijolo cru, a churrasqueira da roça, a bela palmeira, outras, outras árvores, todas plantadas por Nonê, a piscina azulejada por Paulo Rossi... Nas paredes quadros de Nonê de várias fases, no cavalete um quadro não terminado, Nonê pintava aquela moça anjo, o pote de barro, as flores folclóricas, o céu azul... Ela diz que ele estava animado com sua pintura. Encontrara ultimamente um caminho bom.

Três figuras - 1948

O Nonê escreveu e editou dois livros infantis, “O Rei Floquinhos” e “O Saci que foi à Lua”... Foi redator e programador durante vários anos da Rádio Gazeta de São Paulo, e do jornal “A Gazeta”, de São Paulo. Realizou sempre palestras em centros culturais. Mantinha cursos de pintura para alunos e produzia numerosos artigos sobre folclore, literatura e pintura. Estava planejando a criação do Museu do Mar em Guarujá e preparava uma série de painéis para o Instituto Histórico e Geográfico Guarujá-Bertioga, para o qual criou os painéis que decoram, externa e internamente, a capela de Nossa Senhora dos Navegantes do canal do Porto de Santos, junto ao ancoradouro da Pouca Farinha, na Ilha de Santo Amaro. Foi diretor do Museu de Artes e técnicas Populares. Assistente técnico da Comissão do IV Centenário de São Paulo. Exerceu outras atividades públicas, docentes, jornalísticas, etc. 
Para abranger de um relance toda a obra de Nonê, basta dividi-la nos três ciclos marcantes de suas existências e pesquisas: surrealista, antropofágico e primitivista. Qualquer dessas fases surge e desaparece ao longo dos anos. Conforme a inspiração e o tema. O pintor retoma e desenvolve o estilo já antes experimentado. Escolhendo uma série de quadros, mesmo de anos diferentes, pode-se agrupá-los dentro do seguinte conceito de sua fase surrealista... É um ciclo dos mais constantes, nas obras de anos atrás e também recentes. Sem deixar de ser brasileira, pois aproveita a linha lendária da “Cobra Norato”, tem uma extensão que vai desde o telurismo até as expressões de onirismo freudiano. Na fase antropofágica, segue uma corrente lançada por Oswald de Andrade, pai, cuja primeira manifestação plástica foi o “Abapuru”, de Tarsila. A série dessa “escola” é primitivista no tema, mas de fatura ao nível internacional. Seria como a solução de uma crise crônica da pintura brasileira: elaboração plástica e tratamento de alto efeito e técnica pictórica, mas sem equivalência temática. Ou, em outras palavras, nossa pintura tem qualidades, mas falta-lhe, ou perde-se, no assunto... E quanto à sua fase primitivista, ela abrange variada gama de pesquisas de soluções plásticas a serviço de uma temática nacional se sentido cultural, na acepção sociológica do termo. E tem como particularidade importante o seu historicismo, não como celebração davidiana ou patrioteira, mas como solução natural, nascida da própria força pictórica, através da integração e dinamização dos assuntos, inspirados na imagística formação nacional... Destro desse ciclo destaca-se como subfase da série religiosa, que, aliás, se inscreve na ambivalência pré-barroca, porque inspirada na imaginária brasileira... Nonê tira o maior partido dos santeiros portugueses e da floração barroca, de mistura com as imagens folclóricas da nossa lírica civilização do matuto do mato e outras bandas interiores e litorâneas. 

Nonê e Menotti

Adelaide está contando que Nonê não tinha “hobbys”, além de gostar de bater papo, ler, participar, dialogar com os jovens, tomar um bom uísque... ... Seus melhores amigos foram Teodoro Nogueira, Dante de Laytano, Murilo Mendes, Lucia Falkemberg, Rossini Camargo Guarnieri, Rossini Tavares de Lima, Paulo Machado, Paulo Bomfim, Tarsila – para quem tinha grande admiração e extraordinário respeito – Mário da Silva Brito, Bento de Almeida Prado, Silvia Sodré Assumpção e Luís Arrobas Martins... E ainda suas alunas e grandes amigas Tica Rivetti, Helene Matarazzo... Em épocas mais distantes, tanta gente, Carlos Lacerda, Rebolo, Piolim, Di Cavalcante, Almeida Salles, Ciccillo Matarazzo, Carlos von Schmidt, Este um fraterno companheiros de muitas andanças, ficara com o álbum de fotografias antigas de Nonê, que o fora buscar às vésperas de sua morte. 
Antes de sua morte, entrevistamos Nonê, acerca de sua ideia de fundar o Museu das Artes e Técnicas do Mar: 
“Há um homem digno de homenagem: o nosso. A costa do Brasil é imensa, imensas são as nossas praias, é nesse cenário em que o nosso pescador nasce, vive e morre. Não são poucas nem pequenas as lutas travadas pelo nosso país em defesa do imenso patrimônio marítimo, uma de nossas maiores riquezas. As indústrias pesqueiras multiplicam-se, tornam-se cada vez mais atualizadas, fazendo, aos poucos, desaparecer o velho e querido pescador primitivo, aquele que, no dizer de Dorival Caymmi, “não precisa dormir pra sonhar”, aquele que vê o sol despontar no horizonte saindo, seja com sua jangada, saveiro ou canoa, que volta para o seu r ancho com seu coração cheio de canções e de estórias que conta nas noites estreladas ao seu filho ou à sua namorada – Iemanjá, Alamoa , os monstros das profundezas que povoam a vida desses homens.” 
“Como seriam áridos os escritos de Jorge Amado sem o homem do mar que o ajudou tanto a transformar suas vidas difíceis em doces acalantos. 
“É esse homem que queremos homenagear, criando no Museu das Artes e Técnicas do Mar. Inicialmente será o trabalhador do mar que festejaremos, construindo um lugar em que seus instrumentos de trabalho possam ser conservados, guardados, protegidos, estudados; em que suas lendas, canções possas ser recolhidas e conhecidas por todos aqueles que queiram contar sua beleza, sua dor, sua alegria; onde elas possam ser estudadas artística e cientificamente, e se conservar, para as futuras gerações, a sua imagem viva e heroica. E o que há de melhor para prestar essa homenagem do que um museu, um museu no qual as futuras gerações possam conhecer e sentir toda a sua vida, suas histórias, suas canções de amor ou de desespero, sua religião, suas preces. 

Nonê e Tarcila do Amaral

A mensagem e o humanismo de um grande homem simples - depoimentos

Conheci Oswald de Andrade Filho, em 1935, se bem, me lembro, na primeira exposição que Portinari fazia em São Paulo. Naquele tempo, tanto eu quanto ele dávamos os primeiros passos na pintura. Começou então uma amizade e convívio que duraria 37 anos. Nonê frequentou todos os “ateliers” que tive, a começar pelo primeiro nos altos do Teatro Municipal, onde eu era aluno do Waldemar da Costa; depois vieram os outros; no Edifício Santa Helena, com Zanini e Manuel Martins; na Rua Bittencourt Rodrigues com Manuel Martins; na Barão de Itapetininga; na Xavier de Toledo; na Sebastião Pereira; na Av. São João e ultimamente no meu apartamento. Portanto, ao longo de tantos anos, conheci-o muito bem e posso dizer que foi um grande artista, um grande homem e um grande amigo. CLOVIS GRACIANO

Tive o prazer de colaborar com o Nonê na ocasião da exposição da Semana de Arte Moderna aqui no Museu de Arte de São Paulo. Foi um trabalho repleto de ensinamentos para mim a respeito do ambiente que o Nonê viveu desde criança com o pai: pena que sua morte tão repentina tenha tirado de cena um artista de tanto talento e um historiógrafo de segura informação. Ele me dizia que queria escrever a história do grande Oswald. O desparecimento prematuro de Nonê, sempre jovial e bom companheiro, especialmente durante os árduos trabalhos da organização da Exposição da Semana de Arte Moderna, deixou, em todos nós do museu, uma saudade e uma tristeza profundas. - PIETRO M. BARDI

Oswald de Andrade Filho, o Nonê que os amigos tanto queriam ainda mais do que um artista, era uma grande alma de artista... Os requintes de delicadeza que punha no trato com os seus e com os que lhe eram caros, davam às relações com ele um colorido de pura estesia emotiva. Nisto, como nas obras que deixou, tornou-se inesquecível... Tenho a impressão de que o seu maior desejo era fazer uma obra de arte no mais rigoroso sentido. LUIZ ARROBAS MARTINS

O Nonê era um grande amigo e atuava no nosso “time” de pintores há muito tempo. Uma grande figura humana, uma boa alma, um participante dos nossos melhores movimentos de arte, como, por exemplo, quando lutamos pela criação do Salão Nacional de Arte Moderna, etc. Fiz um desenho dele, que guardo com muito carinho. Como pintor, lutava por uma obra autêntica, de raízas populares e folclóricas, de raízes bem brasileiras.REBOLO GONSALES 

Em plena comemoração do cinquentenário da Semana, uma perda sentida e irreparável acontece: a morte súbita de Oswald de Andrade Filho (Nonê). Filho do mais famoso dos modernistas acompanhou nestes 50 anos, como pintor, intelectual e professor que era todas as marchas e contramarchas do modernismo. Extraordinária figura humana, simples e bom, compreensivo e disposto, dedicava-se também ao folclore e a inúmeras iniciativas, como, por exemplo, a criação do Museu do Mar de Guarujá, I Salão Nacional de Tapeçaria e outros projetos. Recentemente, debateu com estudantes, no Museu de Arte, durante 8 horas, o modernismo brasileiro. Ensinava pintura e preparava nova mostra na galeria “A Mão de Pilão”, de Bento de Almeida Prado, em Itapecerica da Serra. Nonê iniciara a série de entrevistas com pintores, nesta página, há pouco mais de um ano, e voltaria a ela, com seu depoimento prometido sobre Oswald. Um enfarte o atingiu mortalmente, contudo, enquanto dormia seu sono de justo, em sua casa da Praia de Guaiúba. Tinha sido o idealizador e propulsor das comemorações de 22, braço direito de “Ciccillo” Matarazzo na última Bienal, de Paulo Bonfim, no Conselho Estadual de Cultura, do professor Bardi, no Museu de Arte. São dele, neste ano, as maiores glórias do brilho das mostras sobre 22 da Bienal e do MASP, e das iniciativas oficiais. Nonê, o guerreiro do modernismo, que se foi. Descansa em paz. LUIZ ERNESTO KAWALL 

REMATE FINAL Agora Oswald é totalmente Nonê. O menino renasce das velhas fotografias, estende a mão ao pai, e caminham juntos... A lágrima de infância foi ganhando cores e a solidão floriu em quadros, na poesia de existir, na graça do sorriso agasalhando o coração dos amigos. Na praia do mundo o ponteio do mar fala de adeus... Nonê descobre o horizonte e parte com suas estrelas.  PAULO BOMFIM

Publicado originalmente no jornal "A Tribuna", de Santos, em 11/4/1971 e 13/8/1972.

FLEXOR

Flexor era um pioneiro, um lutador, um inovador, um bom amigo, o melhor companheiro, um homem justo, um incentivador dos artistas e das artes... Sim, sinto comovidamente a sua falta, sempre, principalmente nas horas matutinas, quando acordava estuante de vida e passava ao trabalho preciso, ordeiro, abnegado e sincero do dia-a-dia. Meu marido criou e deixou uma escola, formou muitos artistas, e sei até de muitos alunos que, depois da morte de Flexor, não conseguiram mais pintar. Margot viveu com Flexor quase 40 anos. Tem cabelos brancos alourados, usa óculos de grossas lentes e aros. Não esconde tique e ar parisienses. Ao lado de Evelyn e Romy Fink e de Gregory Fink, proprietários da Chelsea Galerias de Arte, de autoridades, empresários, artistas, gente da sociedade, críticos e jornalistas, ela abre a mostra de trabalhos de Flexor, ainda não faz um ano da morte do mestre abstrato. Está ali também Álvaro Pinto de Aguiar Júnior, do Grupo Novo Mundo, cujo Centro de Artes cooperou decididamente para o sucesso maior da mostra. 
Margot está depondo: 
Flexor era um homem cerebral, pensava muito antes de falar, de idealizar uma obra, emocionava-se dentro do seu processo criativo e cada vez que concluía um quadro... Em seus últimos trabalhos se vê perfeitamente as manchas de um círculo que se fecha em torno de si mesmo, isso era ele, puramente emocional e cerebral... Na última fase era, sem dúvida, um cubista e o maravilhoso abstracionista-lírico de sempre. 
Além do térreo sofisticado, a galeria tem mais dois pisos, de pedra mineira, e o público já sobe a escada e mármore para ver as obras – 36 óleos e 26 aquarelas – de Flexor, colocadas também nos andares superiores. 
Flexor trabalhava muito, pois, embora romeno de origem, tinha uma ordenação verdadeiramente germânica no trabalho... Sua cultura era vasta e de formação francesa... Quando trabalhava tinha um tudo em ordem, fazia um quadro sem deixar sair um pingo de tinta no chão... Era organizado e metódico, começava geralmente a pintar às 9 da manhã e deixava ao meio-dia. Almoçava bem, comia de tudo – antes de cair doente – descansava um pouco, voltava a trabalhar... Recebia seus inúmeros alunos, pintava escutando Bach, Vivaldi e Beethoven, música clássica, sempre. 
Flexor formou um grupo em torno de si e de sua arte, orientado dezenas e dezenas de artistas em seu Ateliê Abstração... Todos bons artistas. Entre outros, Nicola, Douchez, Raimo, Wega, Izar Amaral Berlink, Anatole Wladislav, Alberto Teixeira, Gisela Lerner, Iracema... Com pensamento claro e palavra fácil, gostando de desenhar e adorando ensinar. 
Flexor foi um dos maiores professores de arte que o Brasil conheceu... Além disso, foi o primeiro artista a introduzir entre nós o abstracionismo, e, no começo, foi muito combatido. O público não estava preparado para esse gênero moderno da pintura... Mas desde há uns 10 anos, Flexor foi reconhecido justamente, como um dos mestres da arte da atualidade. 
Flexor pintou, ao que sei, mais de mil quadros – a óleo e aquarelas. E muitos desenhos. Mas, gravura, só fez uma. “A mulher de pedra”, para o NUGRASP – Núcleo de Gravadores de São Paulo... Foi sua única gravura, frita a pedido de Izar, e é muito bonita... Seu último óleo chama-se “Venus”, esse que, aqui na exposição da Chelsea, está ao lado de meu retrato, pintado em Nice, há 40 anos, em guache envernizado... Bons tempos, aqueles. Conheci-o mocinha em Paris, lá por 1932 e nos casamos no mesmo ano... Fomos, sim, muito felizes, e tivemos dois filhos, que nasceram na França, em Paris, André Vitor, que lá moa até hoje, e psicólogo e o outro, Jean-Marie. Este ficou aqui e é diretor do Departamento de Geofísica da Universidade da Bahia... 
Flexor nasceu na Romênia, mas estudou na França, que deu forma à sua cultura artística e humanística... Conheceu, em Paris, Lhote, Léger, muitos outros mestres e começou o abstracionismo influenciado por Leon Degand, que foi o primeiro diretor do Museu de Arte Moderna de São Paulo, e que já fora seu amigo na França... Antes disso, Flexor era geométrico, foi cubista, pós-cubista... Quando jovem, foi pintor de nus em Paris, isso antes da guerra. Tinha então influências do impressionismo... Em sua última fase, Flexor era um misto de abstracionista e cubista, misturando lembranças de seus nus e dos tempos da geometria e da abstração da sua idade madura. 
Flexor adorava o Brasil e a arte brasileira, sem embargo de ter sido um pintor internacionalmente conhecido... No começo, aqui, foi influenciado pela cor e pelo barroco brasileiro. Seus amigos mais chegados eram Sérgio Milliet, que almoçava duas vezes por semana em casa, Mário Pedrosa, Antonio Bento, Luiz Martins, José Geraldo Vieira e, entre os pintores, dezenas e dezenas, mas, íntimos, mesmos, dois: Ianelli e Douchez... Seu “hobby” era colecionar santos antigos e pedras, peixes fossilizados do Ceará... E adorava, sempre, tocar piano, mas só peças clássicas. Não gostava da pintura nem da música populares... Era mais místico que religioso; misticismo que se reflete nas suas numerosas obras religiosas. 
Margot dá um suspiro, recorda-se de Flexor em Praia Grande, onde iam nos fins-de-semana, e Flexor pintando no ateliê improvisado da casa de praia... A casa de São Paulo, a da Vila Mariana, Rua Gaspar Lourenço, 587, projetada pelo arquiteto Rino Levi, foi inspirada no ateliê de Flexor, de Paris, com um mezanino alto, onde o pintor tinha seus pertencer artísticos... Tudo Margot diz que conserva como a morte encontrou Flexor, naqueles dias horríveis da operação precipitada no Hospital Santa Catarina... O mesmo ateliê em ordem. A mesma sala organizada, o belo salão de exposição, com umas 50 telas do artista companheiro, uma, duas, três, de cada fase... Fotos, álbuns, recortes, a fita do Museu da Imagem e do Som do Rio; Flexor foi ao Rio de Janeiro em 1968 e gravou seu depoimento para a história. 
Romy Fink (dirigiu durante muitos anos o Balé Russo de Monte Carlo) é inglês e fixou-se há 11 anos no Brasil. Dirige, ao lado de Evelyn e do filho Gregory, as três Chelseas da Capital e a do Guarujá. Na Inglaterra e outros países europeus, lidou também com livros de arte e foi crítico de arte e famoso “marchad”. Fink disse de Flexor: 
Nos últimos 10 anos de sua vida, houve um raro relacionamento entre Flexor e nossa galeria, a Chelsea. Esse grande artista do Brasil e do mundo havia exposto conosco seis vezes, sendo duas em Nova Iorque e Chicago. Tínhamos com Flexor uma amizade íntima e entendíamos sua arte, sua obra, seu ser como artista. Flexor situa-se num plano elevado na arte contemporânea, ao mesmo nível de mestres europeus e dos mestres da pintura chinesa da época “Sung”. Deu nova grandeza à pintura, foi o primeiro artista que encontrou uma simbiose perfeita entre suas concepções filosóficas e a pintura – linguagem falada – que se exprimia com arte e com mensagem. E afirmava que a ideia de se fazer uma obra de arte, sem exigir do público uma interpretação, é mera decoração. Muitos pintores já conseguiram fazer isso quando se tratava de misticismo ou religião. Mas Flexor adotava ideias da filosofia moderna, em t ermos de pintura atual. Por exemplo, a filosofia da escola de Carmap, que é incompreensível para pessoas não especializadas. Ele tentou explicar e manifestar a todos que se aproximada de sua arte de uma maneira bem séria. Flexor nunca achou que a pintura se pudesse olhar “em passant”, mas que uma obra tem que ser comtemplada e entendida e, para ser mais que entendida, amada. A obra de Flexor vive em nós, com suas novas lições, novos ensinamentos, novas concepções de imortalidade. Vivi e viverá, enquanto o homem tiver olhos para ver e compreensão para entender. 
Samson Flexor nasceu em Soroca, na Romênia, em 1907. Pintor, desenhista e professor. Estudou na Escola Superior de Belas-Artes e na Academia Ranson de Paris, participando, desde 1926, na capital francesa, dos Salões de Outono, das Tulherias e dos Independentes e ainda do Salon des Surindépendentes, de cuja direção foi membro entre 1929 a 1938. Nesse período inicial de sua carreira, segundo sua nota biográfica publicada no “Dicionário de Artes Plásticas do Brasil” de Roberto Pontual, dedicou-se à pintura mural com predominância dos temas sacros e realizou exposições individuais em Paris, Nova Iorque, Bruxelas, Lisboa, Stuttgart e Montevidéu. Nessa época travou contato com André Lhote, Fernand Léger e Henri Matisse e veio um pouco mais tarde ao Brasil, fixando residência a partir de 1940 em São Paulo. Terminou aqui a série “Composições Sobre o Tema da Paixão”, de estudos expressionistas e cubistas, onze telas sobre a paixão de Cristo, que expos no Museu de Arte Moderna de São Paulo Em 1951. Realizou em 1948 uma exposição de seus trabalhos semi-abstratos de temas brasileiros numa galeria de Paris. Estimulado por León Degand, que dirigia então o Museu de Arte Moderna de São Paulo, passou a dedicar-se à pintura de concepção abstrata, fundando a seguir a escola e o movimento “Ateliê Abstrato”. De 1957, quando viajou e expôs nos Estados Unidos, até 1971, realizou cerca de 50 mostras individuais no Brasil, nas Américas e na Europa; participou de mais de 20 mostras coletivas, de seis Bienais de São Paulo, de Veneza (1954), de Tóquio (1955) e dos Salões Paulistas de Arte Moderna (Grande Medalha de Ouro); primeiro prêmio, em 1970, da Bienal de Montevidéu. E realizou afrescos oficiais em Paris, painéis em São Paulo, painel geométrico (esmalte) no Clube Atlético Paulistano, afrescos (300 metros quadrados) da Igreja do Perpétuo Socorro em São Paulo, projetos de vitrais para a igreja de Copacabana do Rio de Janeiro e numerosos afrescos em residência particulares. Suas obras estão em coleções famosas e em museus de arte moderna de São Paulo, Rio, Paris, Montevidéu, Genebra, Chicago e Moscou. Naturalizou-se brasileiro em 1955. Casou-se com d. Margot Flexor em Paris em 1932 e teve dois filhos: Jean Marie e André Vitor. Morreu no dia 31 de julho de 1971no Hospital Santa Catarina em São Paulo. 

Um combatente da pintura moderna 
Por quinze anos Samsom Flexor empenhou-se, no Brasil, pelo ensinamento e pelo exemplo num útil combate pela pintura moderna. Por mais positiva que fosse essa ação não teria seu valor se não se apoiasse numa obra pessoal que não cessou de crescer e de assegurar sua continuidade. Com ela, Flexor voltou a Paris, neste bairro de Montparnasse, onde trabalhou outrora e que permaneceu caro a seu coração. Tive ocasião, em diversas bienais de São Paulo, de seguir as etapas de sua evolução e me parece que ele chegou hoje a um ponto de equilíbrio feliz entre pesquisas que foram sempre muito sábias e uma expansão de formas que conquistaram a liberdade. A construção, já de muito tempo aparente, tornou-se subjacente e possui mais autoridade. E como em pintura restituir às formas este movimento vital, essa respiração que lhe é indispensável, sendo pelas cores que vivem elas também, segundo a luz onde elas mergulham, versáteis, plenas de evolução em potencial. Com respeito a isto, as cores de Flexor são muito notáveis, quase indefiníveis com suas tão delicadas, seu brilho surdo. O cinza evoca joias, pérolas, opalas; o negro, os laços profundos; os brancos são carregados de reflexos azulados, rosas, de verdes leves transparentes. Dir-se-ia nuvens densas que se movem lentamente sem se desfazer, mas se transformam sem cessar; formas arredondadas, vivas, que não terminam; fazem um jogo entre si, de se sobreporem, desse misturarem, sem perder sua existência própria. Esta arte sem entraves, síntese equilibrada entre a construção e o lirismo, nos faz penetrar na intimidade dos elementos e nos oferece imagem de continuidade. MÁRIO PEDROSA. Rio, 1961 (do prefácio para a individual no MAM de São Paulo). 

A contemplação das cinco telas é como a contemplação de um altar do século XX, erigido no templo do Nada. Flexor é o nosso Grunevald, o nosso Brueghel. Como o Renascimento, essa passagem da fé medieval para a dúvida moderna pinta o terror do Deus que se evade, assim Flexor, essa articulação da passagem da dúvida moderna para algo inimaginável, pinta o terror do Nada que invade. Existe toda uma multidão de textos que comprovam esta afirmativa. Mais que ilustração, Flexor parece ser demonstração experimental de textos como os de Kafka, Rilke, Heidegger, Camus, Becket. Inúmeras sentenças desses textos parecem comentários das telas de Flexor. Há um clima comum a todas essas articulações e este clima pode ser resumido na sentença de Heidegger: “existimos para a morte”. As telas de Flexor são retratos das aberturas para a morte, portanto autorretratos do século XX. GERALDO FERRAZ. São Paulo 1966. 

O itinerário de Samson Flexor no Musée Rath... suas primeiras obras brasileiras dedicadas às “abstrações tropicais”, traduzem um lirismo formal e colorido, seguido por um momento de serenidade, onde, guiado pelas opções religiosas, Samson Flexor atinge uma síntese expressiva... Vem em seguida um “período” de abstração fria e “cristalina” próxxixma do construtivismo e das preocupações óticas e ambíguas do “Op’art”. Finalmente, é o “levantamento de vôo” para as pesquisas muito atuais onde o olho “escuta as pulsações dos elementos e faz eclodir, na extensão da tela, estranhas crateras, flores venenosas, ondas incomodadas, signos de uma totalidade plástica e poética, a qual aspira Samson Flexor. CHARLES GEORG – Conservador do Musée d’Art et d’Historie. Genebra, 1955.

...um exemplo marcado desse novo espírito é o pintor Flexor, que se encontra entre nós... É preciso verificar-se a influência da guerra na evolução de sua pintura: influência que se caracterizou pela perda da liberdade e por uma quase delirante euforia em reconquistá-la; fases de que a sua pintura nos mostra com a nitidez de um gráfico, as criações mais impressionantes. Durante a ocupação, uma timidez exasperante; depois, o orgulho do homem que se sente capaz de criar livremente do espírito. É um drama que vale a pena ser visto e admirado... SÉRGIO MILLIET – São Paulo, 1946 – O Estado de São Paulo.

Publicado originalmente no jornal "A Tribuna", de Santos, em 25/6/1971

NOTÍCIA

Inspirou este livro de Luiz Ernesto Kawall o amor às coisas ligadas às artes – pois foi uma curiosidade pessoal que determinou o numeroso e longo itinerário pelos ateliês dos artistas abrangidos nesta paginação selecionada, viva e vivida na dialogação, evocando raízes, fontes, origens, influências, opções. 

Emergiu então desse dialogar a série dos capítulos que formam este volume, e que dispensariam esta esquina referencial. Quer, porém o A. que um crítico de arte embora da militância venha contribuir também com um alinhavado para o brilho destas bandeiras desfraldadas, em que sopram as inquietações de nosso tempo, envolvendo a obra de arte em várias modalidades. E daí a presença destas linhas, que se justificam, também, por termos acompanhado esse trabalho, no jornal que semanalmente veio trazendo à tona os testemunhos do homem do garimpo. 

Nesta última feição, nosso aplauso ao esforço de Luiz Ernesto Kawall vale alguma coisa, na pretensão imodesta, pois a qualidade de tempo curtido marcou o seu vinco de veterano nesta tarefa – A TRIBUNA há décadas tem recebido bastante de nosso esforço. E foi nestas páginas de A TRIBUNA que Luiz Ernesto veio imprimindo, sempre aos domingos, seu atento registro do diálogo com os artistas, e com isto merece ter destacada a função cultural exercida no meio em que insere a sua atuação. 

Caberá, portanto, também, além do esforço já louvado pela simples realização do trabalho jornalístico, salientar o interesse com que os editores de A TRIBUNA, Giusfredo Santini e Roberto Mario Santini, têm prodigalizado seu apoio pertinentemente às tarefas culturais, insuflando iniciativas, estimulando a inspiração década setor em que possam ser assinaladas marcas consequentes, no sentido da maior divulgação artística e intelectual. 

Daí ter-se facilitado a abertura de páginas dedicadas à cultura, às artes, à literatura, especificamente, sem que os que se dedicam a tais setores, sistemática ou ocasionalmente, encontrem qualquer restrição – o que deles se reclama do alto da direção de A TRIBUNA é a continuidade no empreendimento. Então, se regularmente o jornal de Olympio Lima e de Nascimento Junior acompanha, em seções especializadas, os fatos da cultura, estes se desdobram, toda vez que, num caso como este, de Luiz Ernesto Kawall, surge uma iniciativa particularizada, a incorporar-se ao todo do tradicional matutino. 

Daí a colher torta que entrou neste último arranjo do livro de Luiz Ernesto, que precisa ir cuidando de imaginar outras aventuras, tão belas como a que aqui aparece cumprida. Geraldo Ferraz

REGISTRO

É difícil a gente, sem querer, virar “escritor”, ainda mais por obra e graça de amigos fraternos como Diná e Luiz Lopes Coelho, Luiz Arrobas Martins, Francisco Luis de Almeida Salles, Clóvis Graciano, Pedro Luiz de Toledo Piza, Geraldo Ferraz, César Luiz Pires de Mello, Oswaldo da Palma, Waldemar Szaniecki, tantos outros, que estimularam e empurraram pra frente este livro; este “Artes Reportagem” que afinal vem a lume, vencidas mil restrições e inibições próprias do “autor”. 
Que não é obra literária, se verá logo. Nem redação de crítica de arte, que também não pratico. São registros de repórter de carreira, agora acampado no jornalismo cultural e aqui, quase sempre, mais preocupado com o universo cotidiano de nossos artistas que com suas criações. 
Do jornalista deslumbrado com a arte brasileira, desconhecida da maior parte do público, exigindo de todos nós maior divulgação e, do governo, maior apoio. Essas artes brasileiras que aos poucos partem, pela mão de alguns marchands conscientes, para ganhar o mundo. Abrindo para p país um verdadeiro corredor de exportação cultural. 
Muitos artistas foram ouvidos, mas nem todas as reportagens puderam ser publicadas. Não seria possível, como desejaria, incluir num só volume todos os trabalhos. Por isto “Artes Reportagem” pretende ser coleção. Nossa promessa, evidente, dependerá do Centro de Artes Novo Mundo, a quem se deve, em primeiro lugar, esta edição e da veterana “A Tribuna” de Santos, onde as reportagens são publicadas originalmente. E ainda ao apoio do público, a quem é dedicado este livro cultural-jornalístico. Falei em obra dedicada? Cabem, pois, aqui, agradecimentos aos amigos que ajudaram a colocar o “Artes” na rua, Gilberto Arien, Fernando C. Lemos, Tide Hellmeister, Luiz Francisco Krug, Lisbeth Rebolo Gonçalves, Álvaro Miranda, Antonio Fernandes neto, Manoel Galego Fornielis, Massao Ohno, todos bens amigos, “titti buona gente”, como diria o Volpi em seu ateliê, no Cambuci, enrolando laboriosamente sei cigarrinho de palha, antes de pintar outros volpis. 
Ofereço, ainda, por último, estes escritos, à minha mãe, Marieta Machado de Oliveira Kawall e a Carlos Lacerda, que me conduziram nas artes da imprensa, e aos artistas que fazem, das artes brasileiras, instantes de beleza e testemunhos de liberdade. 
L. E. M. K. Ubatuba, 4/11/72

PREFÁCIO

Um catequista das artes Arre! Até que enfim chegou o nosso primeiro catequista das artes plásticas. Artistas, amantes da arte mecenas já os temos tido. Uns bons, outros maus, outros péssimos, outros até prejudiciais, como em toda parte. Mas ainda não tínhamos visto gente que soubesse conquistar para a arte, naturalmente, sem nenhum esforço visível, quase só porque dá o seu recado na linguagem que todos entendem e de um jeito que todo mundo gosta, sem aquele empertigado ar apostólico dos que se sentem ungidos para cumprir missão divina. 
Luiz Ernesto é o primeiro que faz proselitismo verdadeiro, em favor da arte. Lança a sua rede para todos os lados, indistintamente, e recolhe-a sempre carregada. Os que vêm nela estão contentes: ou reforçam a sua crença, ou se sentem preparados para o batismo da arte. Até agora, quem falava de arte, pelos jornais, ou não entendia nada do riscado, limitando-se a descartar-se de uma tarefa profissional, para ganhar o pão nosso de cada dia, ou, quando era entendido, timbrava em postar-se “lá no assento etéreo”, para dirigir-se exclusivamente aos iniciados, aos já batizados e crismados na sua religião, que tudo faziam para tornar esotérica. Os primeiros ou amontoavam sandices irritantes, ou armavam bonitas frases, pontilhadas de termos sonoros e peregrinos, mas que não formavam nenhum sentido. Os entendidos, se cultos, inteligentes e com sensibilidade bastante, sabiam interpretar e comentar o artista e a sua obra, situando-o no t empo e nas correntes estéticas, com argúcia suficiente para descobrir belezas ocultas ou falhas disfarçadas e para denunciar os charlatões. Mas falavam só para o restrito auditório do clube dos já apreciadores matriculados. Não ampliavam o círculo dos associados e creio que essa ideia nem lhes passava pela cabeça. Isto quando não sedavam ao jogo inglório de escrever cartas mais enigmáticas que as das revistas especializadas, porque absolutamente indecifráveis. 
Luiz Ernesto inaugurou um gênero diferente na página de arte dos jornais. Nem a crítica erudita, repleta de conceitos técnicos, minuciosa na exegese da obra examinada, cheia de alusões e reminiscências inteiramente compreensível só pelos oficias do mesmo ofício, nem a mera reportagem incolor, terra a terra, feira de lugares comuns, que nada diz de aproveitável nem de novo, que não sobe acima da mediocridade morna das outras, igualzinha àquelas sobre as ocorrências policiais da véspera ou sobre a última partida de futebol, a denuncias que o autor não pesca nada do assunto tratado. 
Temos aqui reunidos, os trabalhos de quem lançou, na imprensa diária, a crônica sobre arte, leve sem ser superficial, feita com a sensibilidade de alguém que sabe captar e transmitir o prazer estético recebido, interessante, movimentada, banhada num tocante calor humano, informando e instruindo sem pedantismo, educando o gosto sem nenhum tom professoral, como quem não quer nada, senão bater papo despreocupadamente, em linguagem simples, íntima, ao ritmo de uma cadeira de balanço, sobre coisas que aprendeu a analisar, porque fazem aquelas coisas. Nasceu para este trabalho de catequese. Escreve para todos e todos o entendem. As nossas artes visuais não tiveram melhor divulgador e arregimentador de adeptos. Alicia gene de todo tipo e de todo grau de instrução. Pode não ser esta a sua intenção. Acho mesmo que não é. Mas é isso que consegue com a sua atividade jornalística. Este livro vai prova-lo. 
O autor deste livro gosta de arte, coleciona obras de arte com, o pouquinho que sobra do dinheiro suado, frequenta os artistas, adora um bom papo sobre arte, vive pensando em fazer coisas pela arte. Como me lembro de seu entusiasmo, dos bilhetinhos animadores, quase sempre com preciosas sugestões, que me mandava, quando passei a curar as minhas extenuantes canseiras de Secretário da Fazenda, utilizando os raros momentos de folga para dar apoio oficial às artes e aos artistas, para iniciar ou impulsionar os muitos diversificados e marcantes empreendimentos artísticos, que assinalaram o governo Abreu Sodré. Este, em quatro anos, sob a batuta estimulante do Governador, outro incorrigível amante da arte, fez mais nela cultura, em São Paulo, do que dez ou quinze anteriores, reunidos. 
Há cerca de um ano, Luiz Ernesto resolveu aumentar o número dos participantes da conversa sobre arte. Quantos? Ele não sabe. Quanto mais, melhor. Foi cavaquear sobre arte, pelo jornal. Era um meio de trazer mais gente para a roda. Gente desconhecida. E era também um modo de servir á arte em campo mais vasto. Servir à arte e aos artistas, arrebatando novos amigos para a sua cruzada, com o ânimo alegre, bem humorado, sentimentalão, mas pertinaz e o realizador de sempre. Ele sabia que “a única forma de gosto, com ânimo universal, é o mau gosto”, como, há pouco, dizia Étienne Gilson num luminoso e espicaçante livrinho sobre “La Societé de Masse et as Culture”, onde demonstra o contrassenso da reprodução em série, de objetos de arte cuja essência é exatamente serem únicos. Partiu para a catequese pelo bom gosto, utilizando armas novas, ou, melhor, velhas armes que haviam caído no esquecimento. Reviveu o método dos padres catequistas do início da nossa colonização, Anchieta à frente. Nada das especulações teológico-filosóficas, vazadas no palavreado pomposo dos sisudos padres conciliadores, recém-saídos das reuniões de Trento. Nada de latim, Catecismo trocado em miúdo, traduzido na “língua geral”, ensinado no idioma dos curumins e servido á moda da casa.: com muita representação cênica, muita procissão, muita cantoria ao som dos atabaques, muito enfeite depenas e de peles, muito apelo às comparações com as coisas de todo dia. A pregação dos jesuítas deu certo. A de Luiz Ernesto também pegou. É para rojões, dançando em regozijo, ao redor de fogueira, em festança bem nossa, sorvendo bastante quentão, para ferver o entusiasmo. E ouvindo bastante cantiga violeira, para sentir gostoso. 
Como lá diziam os Goncourt, “apprendre á voir est le plus long apprentissage de tous les arts”. Este livro – que terá e precisa ter continuação, com as crônicas que não couberam nele e com as outras ainda a serem escritas – vai fazer muito por que o homem comum, aquele com quem cruzamos na rua, a cada passo, aprenda a ver a tela dos nossos pintores, as gravuras dos nossos Goeldis, as nossas tapeçarias artísticas, as nossas aquarelas, guaches e águas-fortes, os desenhos dos nossos Portinaris, a estatuária dos nossos escultores, aquelas coisas estranhas e cativantes, que os artistas de hoje fazem e que a gente não sabe direito como e onde classificar; amanhã, também os belos edifícios dos nossos bons arquitetos, que os temos de primeira água, e as obras ditas das artes menores, que só são “menores” porque os gregos não inventaram musas para elas. 
Estas crônicas estão construindo, pedra a pedra, um preciosos documentário, onde virão estabelecer-se os futuros historiadores da nossa arte de agora. Trabalho parecido com o que fez, pacientemente, Teodoro Braga, o meu manso, camarada, humaníssimo e culto professor de desenho. São como aqueles operários que constroem a casa inteirinha, em nome do engenheiro que assina a planta, mas que não aparece nem para ver que tal andam as coisas. Como Teodoro Braga valeu para o tão útil “Dicionário das Artes Plásticas no Brasil”, há pouco publicado por Roberto Pontual! Assim também valerá este “Artes-Reportagem” a quem for fazer, amanhã, um dicionário semelhante. Com uma vantagem sobrea contribuição do Braguinha, como os seus alunos o chamavam carinhosamente: os depoimentos dos artistas. Só quem já estudou alguma dessas extravagantes personalidades ou já teve bom contato com os resultados de tais estudos sabe quanto essas confidências são valiosas, em especial neste nosso Brasil, onde raramente aparece um Di Cavalcanti para narrar as suas memórias e contar as suas experiências artísticas. Mesmo quando eles mentem, quando escondem a verdade ou não a dizem por inteiro, quando querem fazer-se passar de executores de profundas elucubrações mentais, em vez de realizadores instintivos, mesmo assim os testemunhos dos artistas são altamente reveladores sobre eles, sobre a sua obra e sobre a criação artística. É conhecido o caso de Edgar Allan Poe, sobre a gênese da sua extraordinária poesia “O Corvo”, que o nosso Machado de Assis traduziu. Ele inventou toda uma estória inverossímil, totalmente inaceitável, sobre uma suposta origem ultra racional e lógica do poema. Ainda assim, as suas palavras ajudam sobremaneira a interpretação dos versos e o conhecimento do processo da sua criação. 
Os depoimentos dos artistas não servem apenas para revela-los, para trazer á luz as suas tendências, os seus pendores, assuas preferências, as suas antipatias, as suas idiossincrasias, as suas filiações estéticas, as suas inevitáveis incoerências, as escolas em que se inscrevem, ou que detestam, os seus maneirismos, as suas concessões à moda e o heroísmo necessário para resistir à corrente. Servem também aos filósofos, para a contribuição das doutrinas estéticas. Confessava, outro dia, um deles – Étiene Souriau – dos maiores da atualidade, ao fazer o balanço os últimos vinte anos de estética, na “Revue d’Esthétique”, que é muito difícil atingir a natureza profunda do fenômeno estético “sans quelque experience personnelle de la création, sans quelque connaissence de l’art par l’intérieur”. Luiz Ernesto está fornecendo material aos nossos estudiosos de estética “sob specie philosophiae”. Eles existem? Existirão? 
Existam ou não, quer eles, se existirem ou vierem a existir, quer os historiadores do atual período artístico do Brasil, já não poderão dispensar os subsídios aqui acumulados a mancheias, pelo Luiz Ernesto. Todos os últimos 50 anos das nossas artes visuais desfilam pelas páginas deste livro. Ou entram diretamente, pela presença dos entrevistados, ou pela evocação. Desde os precursores – Segall, Anita Malfatti – e alguns corifeus da Semana de 1922 – Brecheret, Di Cavalcanti – até os abstratos, com o grande Flexor na primeira linha, os sucessores deles, os taxistas, os concretistas, os primitivos – esse extraordinário José Antonio da Silva, um caso raro – os novos figurativistas, os contemporâneos em geral, passando pelos participantes da Sociedade Pró-Arte Moderna mais conhecida como SPAM, do Clube dos Artistas Modernos, dos Salões de Maio, infelizmente só três, do Grupo do Sta. Helena, que Mário de Andrade veio a batizar de “Família Artística Paulista”, das exposições do Sindicato dos Artistas Plásticos, dos “29”, do Museu de Arte Moderna, das Bienais de São Paulo, todos movimentos ou entidades nem sempre de duração muito longa, mas que fundas marcas deixaram na evolução das nossas artes plásticas. Ninguém poderá fazer o levantamento das nossas artes plásticas, a partir da Semana de 22, sem ir ao que escreveram Mário de Andrade, Sérgio Milliet, Osório Cesar, Luís Martins, este, para empobrecimento nosso, aposentado prematuramente nesta atividade, o inquieto Geraldo Ferraz tão bom amigo quão temível brigador, se o provocam nas suas convicções, dono de um farto enorme para descobrir o artista de verdade, a obra de arte genuína, sabendo definir, como ninguém, o que as coloca fora de série, Lourival Gomes Machado. E outros, vários outros. Paulo Mendes de Almeida, por exemplo, incansável conhecedor e servidor das artes, cuja evolução acompanha minuto a minuto, há muitos anos, com uma extraordinária capacidade de compreensão, de jeito só dele de falar sobre elas com extrema sensibilidade, num estilo claro, fluente, que se lê com o mesmo encanto com que ele discorre sobre o assunto. A seu modo. Luiz Ernesto será tão indispensável quanto eles, no futuro. 
Luís Arrobas Martins

Esse nosso Luiz Ernesto

APRESENTAÇÃO 

Conheci Luiz Ernesto Kawall no Palácio Bandeirantes, sede do governo paulista, durante o governo Abreu Sodré.

De há muito ouvi falar dele: seu brilhante curso na escola de jornalismo “Cásper Líbero”, a direção da sucursal da “Tribuna da Imprensa”, em São Paulo, onde montou excelente equipe realizando alguns feitos da nossa imprensa, suas atividades ao lado de Carlos Lacerda, durante cerca de 14 anos, que no jornal, quer no assessoramento de sua campanha para governador da Guanabara e ainda em sua atuação destacada na imprensa publicitária e em relações públicas.

Tenho a impressão de que, certa vez, o vi em Ubatuba, quando Francisco Matarazzo Sobrinho era prefeito e onde Luiz Ernesto possui uma famosa casa de sapé, repleta de esculturas e pinturas dos caiçaras e mantém ao fundo de seu terreno, debaixo de visto do chapéu-de-sol, um mini-circo para as crianças da cidade. Era uma espécie de assessor cultural de “Cicillo”, colaborando para a biblioteca recém-formada da cidade e a criação, com Wladimir Piza e Paulo Florençano, do Museu Histórico, Geográfico e Folclórico “Hans Staden”, hoje orgulho local. Ficamos amigos e ele me causou desde o primeiro instante, uma curiosa impressão: a de um homem em surdina, tímido e delicado ao excesso, mas dotado de uma capacidade de ação e de imaginação também intensas, não fora seu sangue germânico. Nunca vira reunidas, numa pessoa, disposições tão antípodas. Para Luiz Ernesto não existem obstáculos.

Talvez a ele se aplicasse uma frase que vi num barzinho da Barra do Saí, onde Clóvis Graciano é rei: “O difícil fazemos logo, o impossível demora um pouco”.

Comunica-se diariamente, em São Paulo, com dezenas de pessoas, não só por telefone, o que seria normal, mas por meio de seus famosos bilhetes, alguns de numerosas páginas, escritos num cursivo claro e sereno e que chegam às mãos dos seus destinatários, até hoje não sei de que maneira, pois Luiz Ernesto é o seu próprio correio. Sei que em casa, no restaurante, num local que pensávamos ele ignorasse, estão lá os bilhetes nas esperando e dando conhecimento de tarefas feitas ou propondo novas tarefas. Seu fascínio é a comunicação escrita, diria que é a sua própria respiração. Mas ama o texto como elemento da vida de relação, o texto atuante, que une pessoas, sugere problemas, noticia muitos fatos. Não é a carta, é o recado veloz.

Se os nossos correios instituíssem o “pneumatic” parisiense, Luiz Ernesto, por certo, seria o principal usuário. Seus recados convocam-nos sempre para “conspirações” culturais e congraçam, no instante, sempre em dia, todas as pessoas que ela acredita adequadas para tal e qual missão. E não esquece ninguém e não erra nunca na eleição dos convocados. Por essa via imaginária e prática já fez por aprovar muitas sugestões valiosas, que propôs a muitos de nossos homens públicos. Sem alarde, sem nunca exaltar na fala, como se estivesse fazendo uma confissão íntima, dá-nos noticia de um bom plano que horas depois já está concretizado e gerando efeitos. A nossa primeira conspiração cultural foi o Museu da Imagem e do Som de São Paulo. Quando me tocou no assunto, no primeiro ano do governo Sodré, a sua ideia já estava elaborada, o governador dando seu entusiasta assentimento e uma reunião com Cravo Albim, diretor do MIS do Rio, e Paulo Emílio Salles Gomes, Maurício Loureiro Gama e Rudá de Andrade, já marcada. Fui eu que o detive um pouco. Porque, como presidente da Cinemateca Brasileira, achava que era preciso conciliar as finalidades, bastante semelhantes, das duas entidades.

Mas o Kawall me falava do MIS com entidade cultural da maior importância, integrador da nossa cultura, e como, ainda, se dependesse de mim a iniciativa. Depois vi – e não mais me surpreendi – como nasceram as suas entrevistas na “A Tribuna”, de Santos, mais de 80 em menos de um ano e meio – e o entusiasmo incansável com que se entrega a essa tarefa, que hoje se evidencia como a maior importância; vi a sua atuação nos primeiros meses do MIS, colaborando na sua estruturação, ideando as primeiras gravações, hoje, já históricas, do Museu – Warchavchik, Volpi, Di Cavalcanti, Tarsila, Menotti, Piolim, Arrelia, Guiomar Novaes, Ermírio de Moraes e tantos outros – e concretizando-se em contatos e providências, sem nunca dar impressão de esforço; e, agora, a criação, nova ideia sua, do Centro de Artes Novo Mundo, do Banco Novo Mundo que, em menos de um ano de atividades, financiando o mercado artístico, editando catálogos de bom conteúdo, promovendo concursos culturais entre a juventude colegial e universitária, apoiando montagem de teatro, criando o Troféu Novo Mundo – o novo “Saci” das nossas artes.

Aproveitando uma viagem do presidente Médici a São Paulo, recente, conseguiu que ele recebesse um seu plano de criação do “Fundo Nacional da Cultura”, a ser constituído com porcentagem das inesgotáveis fontes da Loteria Esportiva – um projeto pronto, objetivado, informado, para execução imediata em todos os rincões do país, beneficiando de imediato a cultura nacional em todos os níveis. Sou culpado de ter retido, provisoriamente, a realização de um outro projeto de Kawall: a criação de um Clube de Amigos Primitivos e Ingênuos (CAPI) e já com uma Bienal Internacional do gênero concebida. Mas a coisa será feita.

Ama a arte popular brasileira e sua casa – com a doce complacência de Zilda e das filhas Márcia, Beatriz e Helena – é um pequeno-grande museu com mais de 200 quadros primitivos, uns 3 mil volumes sobre cultura popular, milhares de folhetos de literatura de cordel (sua coleção se rivaliza com a de Orígenes Lessa, a maior do país), centenas de ex-votos, que busca incessantemente em suas andanças na Bahia, Maranhão, Ceará e afins. E essa coleção ela a reúne, como tudo que faz, na discrição, na aparente ausência de empenho. Tem estudos sobre aspectos da sobrevivência do cordel nordestino, prevendo sua extinção nos próximos anos, o que dá um relevo original às suas pesquisas, incentivadas, aliás, por Câmara Cascudo. “Prefere ser útil, a ser feliz”, alguém disse dele. Mas Luiz Ernesto se realiza, feliz, na própria utilidade.

Considero estas reportagens-entrevistas, como iniciativa inédita e do maior interesse para a compreensão das raízes, pressupostos, influência e inclinações nas artes plásticas do Brasil de hoje. Futuras monografias, ensaios e mesmo histórias ambiciosas sobre os nossos artistas e nossa arte, não poderão dispensar estas sondagens que o Kawall faz na intimidade devida e obra dos nossos artistas, carregadas de conteúdo humano e objetividade informativa aparentemente contraditória, mas oferecendo um material precioso de esclarecimento, informação e sugestão crítica.

Francisco Luiz de Almeida Salles

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

CESCHIATTI, DESENHISTA DA ESCULTURA

 Marianne Peretti, Athos Bulcão, Alfredo Ceschiatti, Oscar Niemeyer, José Sarney e Burle Max

Ceschiatti, mineiro, há muitos anos radicado no Rio de Janeiro, escultor de Brasília, de muita fama, expõe atualmente no Museu de Arte de São Paulo. 

Dele diz um de seus maiores incentivadores, Oscar Niemeyer:
– “Como dois bons amigos, vamos caminhando pela vida. Eu, absorvido pela Arquitetura, inventando formas, brincando com o concreto armado; ele, o nosso Ceschiatti, a fazer suas esculturas. Essas mulheres lindas, barrocas, cheias de curvas, que seu talento cria para o mármore. Como gosto de vê-las! De sentir, depois de tantos anos que o nosso amigo não mudou, que não ingressou em caminhos alheios, mantendo-se autêntico, modesto, irrepreensível. Não tenho preconceitos. Aceito tudo que me parece bom e verdadeiro. E por isso gosto da escultura de Ceschiatti, uma pausa necessária neste devaneio exibicionista, que tantas vezes compromete e vulgariza a arte contemporânea”. 

Di Cavalcanti, fala assim de Ceschiatti: 

– “Quando Ceschiatti estreou suas obras fui dos primeiros a chama a atenção dos críticos e público para o autor de tão belas esculturas... 

 Aí está ele no grande aprimoramento de sua obra. 

 Ninguém pode negar a beleza que elas encerram. São autênticas. 

 O sopro moderno não prejudica suas qualidades clássicas... 

 Temos vontade de dormir abraçados com essas esculturas sensuais e serenas. 

 Não é preciso que eu o elogie mais... 

É um grande mestre o italianíssimo mineiro de Belo Horizonte, e que ele viva na modéstia de homem inteligente e na beata solitude de verdadeiro artista”. 

Rubem Braga: – “Ele sempre oscilará entre a pesquisa de formas puras e a transfiguração estética e às vezes sensual do nu; é com a mão firme de um bom artesão italiano que ele executa, através dos tempos, algumas das mais belas obras da escultura brasileira”. 

 E a jovem crítica paulista, Sheila Leirner: – “Já era tempo do paulistano poder apreciar de perto o conjunto notável as obras de Alfredo Ceschiatti, tão conhecido entre nós pelas esculturas que povoam e se integram à paisagem urbana de Oscar Niemeyer em Brasília e pelos trabalhos esparsos que pontuam e enriquecem praças, museus, igrejas e coleções particulares de nossa cidade e de nosso país. Felizmente, a oportunidade surge com a expressiva retrospectiva que o Museu de Arte Moderna de São Paulo abre em seu pavilhão do Ibirapuera, em que as quatro décadas percorridas pelo artista mineiro, com árduo e persistente trabalho, estão representadas por mais de 40 obras. 

O escultor, desenhista e professor Alfredo Ceschiatti vive e trabalha no Rio. Mas foi em Belo Horizonte que nasceu há 57 anos, que revelou-se a sua predisposição artística, o que o levou a desempenhar um papel preponderante no panorama nacional e internacional das artes plásticas. Ainda adolescente saiu de Minas para a Europa e busca do conhecimento e da inspiração nos artistas da Renascença e mais especialmente em Miguelangelo e Donatello, cujas influências se perpetuam até hoje em suas obras. Em 1945, com o prêmio de viagem ao estrangeiro que conquistou com o baixo-relevo que realizou para a Igreja de São Francisco de Assis na Pampulha, por encomenda de Oscar Niemeyer, teve oportunidade de entrar em contato com a geração européia do pós-guerra: com o trabalho de Max Bill (outro dos seus escultores preferidos), Laurens, Auricoste, Wolls, Giacomo Manzu e Fazzini. Também foi desta época o seu relacionamento com a obra de Maiol, o grande inspirador que, segundo Ceschiatti, “trouxe a Grécia de novo para o mundo”. 

De volta da Europa, o artista figurou em inúmeras exposições individuais e coletivas, como a Bienal de São Paulo e o II Salão Nacional de Arte Moderna. Teve suas esculturas espalhadas por diversos museus brasileiros, instituições e residências particulares na Praça do Patriarca, em São Paulo, na embaixada brasileira em Moscou; e por Brasília, em perfeita sintonia com a arquitetura de Oscar Niemeyer. Lecionou desenho e escultura na Universidade do Distrito Federal, acabando por se demitir em solidariedade com outros professores exonerados em 1964. 

O interesse maior desta mostra que o MAM apresenta não se resume apenas na evolução uniforme e coerente que marca toda a trajetória artística de Ceschiatti, mas principalmente nas particularidades e excelentes qualidades que caracterizam cada trabalho em particular. Tanto nas obras figurativas, como nas abstratas ou semi-abstratas (“Adão e Eva”, “Pomba”, “Gaivota”, “Mulher-Guitarra”, “Galo” e “Peixe”) Ceschiatti flagra e imortaliza – por meio de uma visão extremamente pessoal – momentos de alta poesia, tensão e forte conotação plástica, em que a pulsação rítmica continua sempre latente. Suas esculturas surpreendem pela dignidade e nobreza com que se erguem de seus pedestais ou descem do teto em suspensão – estaticamente, porém plenas desse movimento interior – para materializar a mulher, figuras e cenas bíblicas de intensa dramaticidade, santos, anjos, animais, bailarinas, acrobatas, imponentes personalidades históricas ou lendárias. Estes corpos possuem uma organização própria, em que a disposição de volumes, o jogo de membros e a perfeita proporção entre as partes produz um efeito dos mais equilibrados e pessoais, conseqüência inevitável da intuição e da sensibilidade estética, aliados a uma excelente técnica. 

Exemplos desse equilíbrio é a prova cabal pela qual passaram incólumes os miniaturizados “Evangelistas” e os gigantescos anjos suspensos da Catedral de Brasília que, para poderem constar na exposição, tiveram de ser mutilados e colocados e colocados sobre base de madeira numa posição antinatural, sem perder, contudo, o sentido de “voo” e suspensão e as qualidades que o distinguem. Outro exemplo desse equilíbrio e leveza incomuns está na configuração quase etérea de suas bailarinas e acrobatas que transcendem sua matéria e seu corpo para significarem o próprio movimento. Segundo o princípio básico da escultura, como o dizia e empregava Brecheret, Ceschiatti perpetua seus volumes num só transcurso, sem interrupções na linha que os contorna imprimindo ás formas em bronze e pedra – materiais que manipula com maestria – sensualidade, poesia e musicalidade. As formas femininas exercem um inegável fascínio arquetípico sobre o escultor. Suas mulheres são redondas e torneadas, sensuais e lascivas, fortes, e ao mesmo tempo dóceis e frágeis. “O abraço” – escultura de propriedade de Oscar Niemeyer, na qual duas mulheres de tronco interceptados formam um conjunto voluptuoso e emotivo – distingue-se como um das suas melhores peças. Assim com Ceschiatti molda, recria e descobre o nu em suas múltiplas possibilidades, da mesma forma ele consegue tirar o máximo proveito das vestes como elementos altamente ilustrativos, envolvendo grande parte de suas figuras com estes mantos nada diáfanos da realidade escultórica e dramática. 

Ceschiatti é, ante de tudo, um desenhista da escultura. Seus trabalhos nascem se desenvolvem por meio de um traçado sensível, às vezes picassiano, que faz com que eles adquiram leveza, harmonia e, sobretudo, uma limpidez na formalização plástica de seus temas. Alcança uma qualidade rara nos escultores atuais: a adequada e profunda assimilação dos artistas clássicos, principalmente no tocante à qualidade humanística que caracteriza seus trabalhos. 

Um grande número de pessoas certamente irá ocorrer à retrospectiva de Alfredo Ceschiatti, que o Museu de Arte Moderna de São Paulo – consciente da importante contribuição cultural que esta mostra significa – teve a elogiável iniciativa de organizar. Isto porque Ceschiatti sai do círculo fechado e vicioso da arte para a minoria, logrando – por meio de seu neoclassicismo que não perde a modernidade, pois é vivo e atuante num direcionamento mais amplo a um número cada vez maior de espectadores. Sensibiliza desta maneira, também, àqueles que não pertencem à elite do que estão a par dos mais novos modismos da nossa época e que acreditam, assim como o artista, que a arte deve desafiar o tempo e permanecer coexistindo – sem, contudo ser marginal ou paralela – com as imponderabilidades do nosso século de incríveis avanços tecnológicos e de pesquisas inéditas e vanguardistas no campo formal e conceitual da arte contemporânea.

WARCHAVCHIK, pioneiro e visionário de pés no chão

Lúcio Costa, Frank Lloyd Wright e Gregori Warchavchik 

“Uns me chamam de pioneiro. Pioneiro sou, sim, de pés no chão. Outros me tacham de visionário. Visionário sou, sim, também de pés na Lua. Na mesma Lua distante etérea, que os astronautas maravilhosos russos e americanos, e logo de outros países, pisam eufóricos no atual instante mundial”. 

O sotaque meio russo, meio italiano, é o mesmo. Como é ainda, o mesmo, alto, esguio, elegante, com a cabeça toda branca, lembrando um pouco o Carlitos, esse lendário Gregori Warchavchik, que os tavares-de-miranda chamavam de “jovem alto, louro, rico e bonito”. Naquele tempo, exatamente a 14 de junho de 1925 Warchavchik publicava no jornal italiano “Il Picolo”’, em São Paulo, sob o título de Futurismo? O primeiro manifesto sobre a arquitetura moderna no Brasil. Logo depois, a 1º de novembro, em português, as mesmas teses eram transcritas no carioca “Correio da Manhã”, atraindo Warchavchik a atenção dos modernistas para seu texto, “verdadeiramente oi primeiro documento, o único em que se lançaram até aquela data as idéias da nova arquitetura no Brasil” (Geraldo Ferraz). 

Setenta e cinco anos, devagar e reto, Warchavchik desce do elevador panorâmico do Museu de Arte, à cata do professor Bardi, que prepara a monumental exposição sobre “Warchavchik atual e os inícios da arquitetura moderna no Brasil”. 

O deus vulcânico do Museu para tudo, para atender a seu amigo arquiteto. Combinam detalhes, na sala ampla, repleta de projetos, desenhos, fotografias, textos e recortes já selecionados por Luiz Ossaka para a grande mostra. Warchavchik está alegre, como sempre - mas um pouco preocupado. Quer saber dos resultados do novo vôo da Apolo à Lua. 

“Não entendo como, numa época de viagem à Lua, o homem continue fabricando casas de tijolos, cimento e telhas.” 

Qual a solução? 

“A casa pré-fabricada, de placas de madeira ou de fibras, de vidro ou de plástico, toda móvel... Aliás, vou inaugurar uma casa assim, construída em 3 ou 4 horas, no fim do ano, no Guarujá, a primeira nesse gênero no País.” 

Em 1927 Warchavchik levantara na Rua Santa Cruz - Vila Mariana, a primeira casa modernista brasileira, de linhas ascéticas e funcionais, surgindo revolucionariamente no panorama arquitetônico paulistano. Agora, 44 anos depois, a repercussão não será menor e Warchavchik fica contente em dar o furo à “A Tribuna”, onde trabalha um de seus grandes amigos. Geraldo Ferraz, autor da excelente obra a seu respeito, publicada pelo Museu de Arte, em 1965. 

“A tecnologia e a ciência já superaram o homem. É preciso que o homem as domine, como procuro fazer, senão estamos fritos. Não é possível que o homem continue a levar 4, 5, 6 meses para fabricar uma casa, quando as viagens à Lua duram algumas horas. A Indústria e a técnica devem produzir materiais novos, como sei que são fabricados atualmente no Japão e na Alemanha, para que a arquitetura e a engenharia possam chegar ao ano 2000 equiparadas ao avanço tecnológico total. Em Nevada, nos Estados Unidos, fizeram recentemente uma ponte moderna e segura, com fibra de papel e adesivos, funcionando perfeitamente. 

O que acha da arquitetura brasileira? 

“A nossa arquitetura, o nosso futebol, a nossa música popular são da melhor qualidade, as três atrações do Brasil de hoje, dentro e fora do nosso país. Os nossos arquitetos, principalmente a geração surgida nas últimas décadas, compreenderam que o importante na arte da arquitetura é uso que se faz do objeto projetado ou construído, e não a sua fachada. O conforto, o custo e a funcionalidade, não a beleza estética apenas. O arquiteto dever ser, antes de tudo, um psicanalista, um sociólogo familiar de cada caso. A casa ainda é, no mundo de hoje, a “máquina de morar”, como queria Le Corbusier. 

Que achou da atitude de Lúcio Costa de não voltar a Brasília? 

Warchavchik teve escritório com Lúcio, nos anos 30, no Rio, onde trabalhou um desenhista chamado Oscar Niemeyer - não demora a responder: “Lúcio só poderia ter agido dessa maneira. O Estado não t em o direito de deturpar e macular uma obra de arte, planejada, funcional, histórica como Brasília, diz. 

O que acha da megalópole S. Paulo de hoje? 

“S. Paulo torna-se, aos poucos, asfixiante, sem paisagem urbana, sem beleza plástica, sem condições de morar, poluída, estragada pelo mau gosto, apesar da luta empreendida por arquitetos e urbanistas do maior respeito. Mais 20 ou 30 anos, e ninguém viverá mais, razoavelmente, aqui... Acredito que o dinâmico prefeito Figueiredo Ferraz, seguindo a linha do inolvidável Faria Lima, encontrará soluções para os maiores problemas de S. Paulo. O metrô é uma das soluções, se não vier tarde demais... é preciso enfrentar os problemas da cidade com maior coragem, acabar com o crescimento desordenado industrial, com a migração interna indiscriminada, com a poluição ambiental e visual... Para esse esforço de arquitetos, engenheiros, sociólogos, legisladores, urbanistas, planejadores, estetas, estou às ordens, com meu modesto trabalho e minhas idéias, se puder servir. 

Warchavchik não pára de falar. Começou o dia às 5,30 da manhã, um velho hábito, “um costume de criança russa”. Tomou sua coalhada, a maçã amassada e o cafezinho, preparados por Mariazinha, sua mulher. Leu os jornais, em especial “O Estado de S. Paulo”, com preferência para os setores de arte e o noticiário de astronáutica. Há dias, sentiu e abateu-se enormemente com a morte dos astronautas russos no espaço. 

“Creio em outras vidas e em outros povos. Acredito que a vida seja uma bênção de Deus. Essa nossa vida, que deve ser bem vivida, e que depende tanto da sorte... e de Deus. Eu sou um homem realizado, que salvou certa vez meu pai da execução dos vermelhos, que pertenceu ao grupo Kerenski, que conheceu e admirou Lenine, mas que a sorte da vida atirou no Brasil... Este país que amo extremadamente, onde criei e desenvolvia minha arte, onde nasceram meus dois filhos Ilia e Sonia, e os cinco netos e onde, por sorte e pela graça de Deus, repito, vivo com as minhas antenas abertas para o mundo e os pés no chão. No Brasil, onde me naturalizei, com orgulho, que será a meu ver, ainda neste século, o país número um do mundo. 

Na hora do almoço, ele comeu um filé mal passado e verduras sem sal. É corado. E atribui sua saúde e disposição incomuns não às dietas, mas ao estado de espírito interior. Não bebe, é contra o álcool. Em matéria de comida, só tem um fraco, as “blinis”, panquecas russas, com creme de leite e caviar. À noite, não janta, toma um chá simples, com torradas. Mesmo nas exposições e visitas às casas dos amigos, que faz com freqüência, não belisca e rejeita uísque e salgadinhos. 

“Gosto da música clássica, de Bach e Haendel. Não assinto a televisão, fora um ou outro programa Chacrinha e Silvio Santos são males necessários, o povo gosta deles, portanto, devem ter seu valor. O que não entendo e ver tantos jovens grudados aos programas de televisão que influencia danosamente também o nosso cinema. A nossa mente é feita para inventar coisas, não apara se agarrar a carismas e se escravizar à máquina. 

O que achou da despedida de Pelé da seleção? 

“Um ato de inteligência desse Macunaíma de muito caráter de nossos dias,. Desse herói popular, que não deseja acabar como Garrinha, infeliz e desacreditado. Pelé deixou honra e glórias por um gesto de bom senso. Os jovens que se iniciam em todas as profissões devem meditar sobre seu exemplo.

Warchavchik, acredita em Deus? 

“Acho que Deus está dentro de cada um de nós. Acredito, sim, mas infelizmente não cultuo quanto gostaria. Tenho muita fé. 

O que acha da morte? 

“Um sonho natural, não temo nada. Vi sangue o horror na minha terra, sonhei um dia em encontrar um lugar com palmeiras, areia e mar. Essa terra eu encontrei, era o Brasil. Se esse sonho bom realizei, e fui tão feliz aqui, quem sabem a morte não será, também, outro sonho bom para mim?

Gregori Warchavchik beija afetuosamente Raquel Babenco, mais bela e elegante do que sempre, uma das assistentes do Museu de Arte. Ela sai apressada, vai correr os jornais para preparar a cobertura de sua monumental exposição, a ser iniciada dia 9 próximo. Numa nota cinzenta, a única durante a entrevista, diz Warchavchik: 

“Pena que meus grandes e maiores amigos não estejam aqui, vivos, nesse dia, para a festa da mostra dos meus trabalhos e minhas lutas de 50 anos de arquitetura - Lasar Segall, Rinmo Levi, Lucjan HJorngold, Henrique Mindlin, Le Corbusier e Assis Chateaubriand. Mas, creio que o gentil Flávio de Carvalho representará bem esses amigos de ontem, de hoje e de sempre. 

Pega a avenida Paulista e segue, de carro, até a cidade.Um pulinho no escritório, para resolver alguns problemas. Uma passada na Patóptica - sua máquina japonesa emperrou. Ele gosta de fotografar, tem mais de 80 máquinas, inclusive uma Leica preta, do início do século. É o único hobby de Warchavchik. 

Ainda considera válido seu manifesto de 1925, hoje em dia? 

“Sim, assinaria hoje o mesmo manifesto, sem mudar uma vírgula. É verdade que, fundamentalmente, deixaria de combater tanto as fachadas absurdas da época, como atacaria o uso indiscriminado do cimento e do tijolo nas nossas construções atuais. Continuo a favor das construções lógicas e da arquitetura funcional - mas utilizando novos materiais: fibras, sintéticos, plásticos, ligas, vidros. Compete à indústria e à moderna tecnologia suprir os arquitetos e engenheiros desses novos elementos, para que a arte da construção acompanhe a modernização da vida atual em contínua evolução. 

De Odessa à Vila Mariana 
1896 - Nasce em Odessa, Rússia. 
1913 - Demonstra interesse pela arquitetura na Universidade de Odessa, orientando sua atividade cultural nessa área. 
1917-18 - Frequenta o curso de arquitetura na Universidade de Odessa, interrompendo os estudos devido à Revolução que transforma a vida do país. Decide viajar para a Itália, matriculando-se no “Instituto Superiore di Belle Arti”, de Roma. 
1920-23 - Termina naquela escola o curso de arquitetura realizando durante esse período projetos para residências, casas econômicas e igreja rural. Trabalha como assistente do professor Marcello Piacentini, o mais considerado arquiteto da época, dirigindo a construção do Teatro Savoia, em Florença. 
1923 - Pelo nome que já conquistara, é convidado a vir ao Brasil, contratado pela Companhia Construtora de Santos, com sede em São Paulo, dirigida por Roberto Simonsen. 
1925 - Publica o primeiro manifesto sobre Arquitetura Moderna no Brasil sob o título de Futurismo, no jornal em língua italiana “Il Piccolo”, São Paulo, e depois no “Correio da Manhã”, Rio, sob o título “A cerca da Arquitetura Moderna”, artigos que provocam muita discussão num meio onde ainda a profissão de arquiteto não é reconhecida. 
1927-28 - Naturaliza-se e casa-se com Mina Klabin, residindo na Vila Mariana. Estabelece-se com firma própria e constrói a primeira casa de estilo racional no Brasil, na Rua Santa Cruz, São Paulo, sendo o projeto do jardim de autoria de sua mulher. Continua na imprensa e no meio profissional um clamoroso debate que concentra inusitado interesse para os modos arquitetônicos propostos. 
1929 - Combatido principalmente através de violentos artigos do arquiteto Dácio de Moraes, responde com uma série de notas no “Correio Paulistano”, demonstrando o atraso do construir eclético. Visitando o Brasil pela primeira vez, de regresso da Argentina, Le Corbusier o indica em carta a Siegfried Giedeon para delegado dos CIAM (Congrés Internationaux d’Architecture Moderne), representando a América do Sul. Projeta e constrói casas segundo padrões racionalistas, entre elas as casas econômicas em série na Mooca, São Paulo. 
1930 - Realiza exposição da Casa Modernista, à Rua Itápolis, São Paulo, reeditando a iniciativa em escala mais ampla de Le Corbusier em 1925, do pavilhão de “L’espiriti Nouveau”. Projeto e construção da residência Luís da Silva Prado, à Rua Bahia, São Paulo, e das casas econômicas para a classe média à Rua Afonso Celso e D. Berta, São Paulo. 
1931 - Construção da residência Antônio da Silva Prado Neto, São Paulo. Participa da exposição e do I Congresso Nacional de habitação, São Paulo, e da XXXVIII Exposição Geral de Belas Artes, Rio. Convidado por Lucio Costa, diretor da Escola Nacional de Belas Artes, a empreender uma reforma no ensino da arquitetura naquele instituto. Projeta e constrói a primeira casa modernista no Rio, à Rua Toneleiros, que é visitado por Frank Lloyd Wright. Projeto para a sede social da Sociedade Paulista de Tênis, atual Clube Harmonia, São Paulo. Projeto das instalações internas e mobiliário para a Associação Paulista de Medicina, São Paulo. 
1932 - Exposição de um apartamento modernista mobiliado e equipado, no último andar do Edifício Olinda, Rio. Deixa a Escola Nacional de Belas Artes em solidariedade a Lúcio Costa, pressionado por um movimento antimodernista. Constitui com Lucio Costa uma sociedade de arquitetura e construções. Projeto do “atelier” de Lasar Segall, seu cunhado. 
1933 - Participa da I Exposição de Arte Moderna da Sociedade Pró-Arte Moderna de São Paulo (SPAM), fundada por ele e sua esposa juntamente a um grupo de intelectuais entre os quais Lasar Segall e Mário de Andrade. Ainda em sociedade com Lúcio Costa projeta e constrói uma série de casas econômicas no bairro de Gamboa, Rio, e a residência Duarte Coelho, na Gávea. Encerra-se a sociedade Warchavchik & Lúcio Costa. 
1939 - Recebe o 2º prêmio no concurso para o Paço Municipal de São Paulo com o projeto Praça Cívica, em colaboração com Vilanova Artigas. Projeto e construção de edifício de apartamentos à Alameda Barão de Limeira e da residência Klabin à Avenida Europa, São Paulo. 1940 - Participa do I Salão de Arte da Feira Nacional de Indústria, São Paulo. 1942-43 - Projeto do Estádio Municipal de Santos e construção da casa na praia da Enseada, Guarujá, do conde Raul Crespi. Participa da Exposição de Arquitetura Brasileira organizada pelo Ministério das Relações Exteriores, na “Royal Academy de Londres”, exposição repetida depois em Copenhague. Recebe o prêmio de melhor edifício pelo prédio construído em 1939, à Alameda Barão de Limeira e de melhor residência pela casa Klabin, São Paulo. 
1945 - Projeto “Cidadinha” dedicado a solucionar a crise de habitações populares. Construção do rancho Jorge da Silva Prado na praia de Pernambuco, Guarujá. 1946 - Projeto do Edifício Tejereba, Guarujá. 
1948 - Projetos para a sede social do Clube Paulistano e do edifício de apartamentos Roberto Simonsen, São Paulo, e da fazenda Santa Maria de Calunga, Moji - Mirim, São Paulo. 
1949 - Projetos para o Iate Clube do Guarujá e construção da casa na paria da enseada, do próprio arquiteto. 
1950 - Projeto e construção das casas de Gianicola Matarazzo e Ricardo Jafet, Guarujá. 
1951 - Restauração da Capela do Morumbi, São Paulo. 
1953 - Sala especial Habitações Coletivas na II Bienal de São Paulo. 
1954 - Projeto e construção do Edifício “Cícero Prado”, à Avenida Rio Branco, São Paulo. 
1956/57 - Construção das sedes sociais do Clube Pinheiros e da Hebraica, São Paulo. Construção do Conjunto Nacional, à Av. Paulista, projetado por David Libeskind. 
1963 - Sala especial “Manifesto de 1925”, na VII Bienal de São Paulo. 
1966/69 - Projeto e construção do Clube Tietê, S. Paulo. 
1971 - Exposição dos 50 anos de sua arquitetura e os inícios da arquitetura moderna no Brasil, no Museu de Arte. Projeta a primeira casa desmontável, com novos materiais, pretendendo montá-la no Guarujá, ao final do ano.
 A Tribuna Santos - domingo, 1º de agosto de 1971.

JOHN GRAZ, O SUIÇO DE 22


John Graz nasceu na Suíça, em 1895. Cartazista, escultor, pintor e decorador. Frequentou a Escola de Belas-Artes de Genebra, aperfeiçoando-se em Paris e Munique. Veio para o Brasil com bolsa de estudos para ficar três meses, noivo de Regina Gomide, com quem se casaria. Fixou-se em S. Paulo, realizando duas exposições individuais em 1920 e 1921. Participou com 8 telas da Semana de Arte Moderna, na capital paulista. Dedicou-se muitos anos à decoração de ambientes, realizando afrescos e painéis. Introduziu pioneiramente aplicação de canos e metais no mobiliário brasileiro. Ultimamente deixou a decoração, dedicando-se exclusivamente à pintura. Expôs nos últimos três anos na Galeria Opus, em S. Paulo. Na Galeria de Arte do Centro Cultural Brasil - Estado Unidos, em Santos, e no Museu de Arte Brasileira da Fundação “Armando Álvares Penteado”. 

O que interessa é o meu trabalho de hoje, que faço no dia-a-dia... São as minhas pinturas concretas e abstratas, são as figuras que procuro colocar com estabilidade e equilíbrio nos meus quadros... São as permanentes procuras da cor e as buscas da forma... É essa minha arte atual, à qual me dedico inteiramente... Essas histórias da Semana de 22, já tudo muito falado, nem sei onde andam minhas obras daquela época. 

John Graz alto, esguio, elegante, educado, grisalho, mas não tanto, está rijo nos seus 76. Regina Graz, sua mulher, um bibelô-de-Sèvres, acha que Graz vai assim - alegre, simples, com excelente saúde, trabalhando sempre - até os 90 anos. Eles moram numa casa de decoração moderna, confortável, de três andares, junto à Avenida Rebouças e Jardim Europa. O terreno era de Oswald de Andrade, o mestre do modernismo que, gostando de uma tela de Graz, “A Ceia”, fez a troca com o pinto recém-chegado de fora. Graz está recebendo a visita de João Paulo Domingues, o bicho papão da arte, dano da Collectio. 

 Ele queria comprar toda minha obra, antiga e atual, futura também... Paga à vista. Veja só a diferença. Em 22, éramos em pequeno grupo de artistas, só uma reduzida elite econômica e intelectual comprava nossas obras, e ainda assim a preços muito baixos. Hoje, o país todo vive um momento histórico, a arte está lá em cima, há venda, há pintores, há galerias, há museus, há leilões, há até ajuda oficial. 

Benjamim Steiner, ex-jornalista, um dos proprietários da Casa dos Leilões, vem chegando com suas propostas. Graz vende alguns quadros, aceita encomendas várias. Ia expor uma série de cavalos, no Clube de Campo Santo amaro, mas Steiner levou-os todos, a preço bom. “Mesmo depois da Semana, fiquei anos sem pintar, não havia mercado regular, só fazia decoração e painéis, mas de uns três anos para cá voltei a pintar de maneira total”, diz Graz. 

 Ele afirma que o tema estava esgotado, mas volta à Semana: 

O movimento de 22 acordou os artistas, a Semana nos reuniu, e essa coesão, que antes não existia, nos deu força para defender nossas tendências modernas - sem ela todo esse formidável movimento artístico de hoje não existiria: 22 foi o primeiro movimento de rebeldia nas artes plásticas contra as estreitezas do academicismo. É um verdadeiro absurdo querer reduzir-se como alguns falam a importância da Semana de Arte Moderna. 

Não acha que, de certa forma, nossas artes necessitem de outro 22 renovador. “Nossa arte vai muito bem, temos às nossa frente a figura exponencial de Di Cavalcanti, temos os jovens pesquisando e realizando coisas muito autênticas, sei que no norte do país aparecem também valores muito bons.” 

John Graz pinta boa parte do dia, desde as 8 horas. Come pouco - faz permanente regime, com Regina - deita-se cedo. Lê muito, jornais, livros, revistas. Não gosta da televisão, não tem ido muito ao cinema. A distração dos fins de semana é o clube de Campo Santo Amaro, onde tem uma boa roda de amigos e joga golfe. Agora apareceu por lá um japonês atarracado e simpático, a desafiá-lo. É Manabu Mabe. 

Vim para o Brasil por três meses, para me apresentar à família de minha noiva, Regina, que conheci na Escola de Belas Artes de Genebra. Expus em São Paulo em fins de 1920, quadros trazidos da Europa, não os melhores, esses, tinha vendido lá. E também expus em 1921. Geraldo Ferraz fez aquela crítica no “Jornal do Comércio”, mas veja que coisas interessantes escreveu sobre a minha pintura no “Estado de S. Paulo”, quando expus há dois anos no Museu de Arte Brasileira! Bem, no início, aqui no Brasil, estranhei muito. Não conseguia adaptar-me em São Paulo, não encontrava tempo para o trabalho artístico e até já pensava em voltar para a Suíça. Fui então convidado pelo cônsul da Suécia para fazer a decoração de sua residência. Nessa época conheci Oswald de Andrade e foi por seu intermédio que participei da Semana de Arte Moderna, com oito quadros. Eu fazia uns trabalhos que alguns classificavam como impressionistas, mas acredito não se enquadrassem em escola alguma. 

Diz, depois de ser interrompido pela Sucursal de “O Globo”, que, quanto ao seu estilo, passou de “uma pintura que caracterizou o início do modernismo no Brasil, para o abstrato, caminhando daí para o figurativo”. Os trabalhos de sua última fase têm uma temática marítima, vegetativa, animal, muitos são inspirados em suas viagens ao Litoral Norte de S. Paulo. Em Ubatuba, os Graz têm uma casa de praia na Enseada, ali viveu muitos anos um irmão de Regina, o pintor Antonio Gomide - até morrer em 1967. Graz dirige com maestria o Corcel; são 500 km, de ida e volta, e não perde de vista as paisagens marinhas da região - as mais belas do Brasil. 

John Graz é um dos 14 participantes vivos de 22, ao lado de Di, Menotti, Guiomar Novaes, Paim Vieira, Ian de Almeida Prado, Agenor Barbosa, Plínio Salgado, Rubens Borba de Moraes, Paulina d’Ambrózio, Francisco Gomes, Renato de Almeida e Frutuoso Viana. Ele diz que participará das solenidades que se programam, para o cinqüentenário da Semana, este ano. Dará entrevistas, mas não deseja fazer conferência. “Cada um no seu ofício. O meu é pintar. Regina, citada como participante por Di e René Thoillier, contesta. “Não sei onde ele me viu no Teatro Municipal”, diz. Ela estudou Belas Artes na Suíça e tecelagem indígena no Rio, até casar-se com Graz aqui. É filha do saudoso ministro do Tribunal de Contas, Gabriel Gonçalves Gomide, cujo “hobby” era fazer os filhos (7) estudarem na Europa. Durante muitos anos, dirigiu uma fábrica de tapetes a mão, “Regina”, colaborando também para o orçamento doméstico com suas decorações de interiores e arte manual. Segundo Aracy Amaral, jovem crítica e pesquisadora que conhece todos os passos do casal Graz, Regina introduziu entre nós o “geometrismo cubista” em tapetes, colchas, almofadas e abajures, ajudando em 1930 Warchavchik a decorar a sua famosa “Casa Modernista”. 

O telefone toca, é para Jonny, como carinhosamente Regina trata o pintor. Ele mostra suas peças pequenas de borracha, dos índios do Pará, santas de madeira do interior de Minas, bois e lhamas mexicanos, figuras do folclore sulino, tudo está numa bela estante de madeira pintada a branco, projeto de John. “Não sei quantas residências decorei, fiz painéis, acho que ainda tem um no Sanatório Esperança, os outros, nas casas de Simonsen, Scuracchio, Noschese, Lunardelli, Prado, Godói Moreira, acho que nem existem mais”. 

A Semana valeu? 

Claro. Nós vibramos, brigamos, expusemos. Participamos com vontade. É verdade que os intelectuais e literatos tomaram a frente. E tinham razão, a festa era deles. 

John Graz desce no elevador de dois lugares. Calmo, satisfeito consigo próprio, bem apurado no terno leve. Despede-se com afeto, a precisão é suíça. 

TRIBUNA DE SANTOS 6 de fevereiro de 1972

John Louis Graz nasceu na Suíça e radicou-se no Brasil em 1920, quando se casou com a artista plástica e decoradora Regina Gomide, estabelecendo-se em São Paulo, onde passou a maior parte de sua vida vindo a falecer em 1980.