A carta de Pero Vaz de Caminha é considerada a certidão de batismo do Brasil. Não tem, esse relatório da viagem de Pedro Álvares Cabral, as especificações técnicas nem os rigorismos categóricos dos relatórios etnográficos ou histórico-culturais. Pero Vaz de Caminha, seu autor, escrivão da frota e da feitoria de Calicut, homem culto, formado em artes e medicina, era, sobretudo, fidalgo da Casa Real e o Mestre da Balança e da Moeda do Pôrto. Entretanto, sua célebre carta é vasada numa linguagem simples, natural, algumas vezes até, cheia dum prosaísmo que encanta e nos encoraja a percorrê-la através de suas 14 páginas “in-fólio”.
As palavras de Caminha assumem um aspecto documental precioso, pois constituem o único relatório existente sobre a expedição de Cabral, desde que as outras cartas de que se tem notícia (de Sancho Tovar, do feitor, etc.), atreves dos tempos, se extraviaram. Não vamos aqui dissecar tal carta, posto que outros de mais cultura e mérito o tenham feito ou possam fazê-lo com maior magnificência. Mas queremos, na medida do possível, destacar, dum e doutro trecho, observações que, dentro de sua simplicidade primitiva, careçam, no entanto, dada a sua importância intrínseca, de uma análise mais profunda.
Destacamos, logo de início, o dia em que está datada a carta: “Hoje, sexta-feira, 1º de Maio de 1500. Deste Porto Seguro de Vossa Ilha de Vera Cruz”. Essa afirmativa é significativa por orientar-nos a respeito da data do descobrimento do Brasil. A descoberta de nossa terra sempre foi celebrada a 3 de maio devido a uma tradição antiga de celebrar-se o natalício do Brasil messe dia, data em que a Igreja comemora o encontro da Santa Cruz. Procuraram explicar a mudança da data de 22 de abril para 3 de maio por causa da reforma do calendário gregoriano; mas, como bem diz Joaquim Silva (“História do Brasil’), “a reforma foi feita 82 anos depois e não poderia, portanto, ter efeito retroativo”. Tem, por isso, a carta de Vaz de Caminha já esse grande valor histórico, pois estabelece, definitivamente, a data exata de nosso descobrimento.
Outra assertiva do escrivão merece também destaque especial. È quando ele afirma, depois da narração do desgarro da nau de Vasco de Ataíde, textualmente: “E assim seguimos nosso caminho, por esse mar de longo”... A esse “nosso caminho”, assim escrito com tanta autoridade, com tanta ênfase, poderíamos acrescentar: “nosso caminho... para o ocidente”... O que, sobretudo, se não quebras a causalidade do descobrimento, porque ela já está quebrada de há muito (asseguram até que os papagaios levados pelos portugueses para a Corte já falavam palavras de francês...), pelo menos, não a confirma; principalmente, porque, depois, a frase “por esse mar de longo”, como muito bem diz Malheiro Dias na “História da Colonização Portuguesa do Brasil”, significa: velejando ao ocidente, através do oceano Atlântico”. Se é de se notar essa falta de maiores esclarecimentos por parte de Caminha, talvez seja por que ele estivesse ainda influenciado pela “política de segredo” do monarca D. João III...
Outras palavras de Caminha, quando ele descreve a terra, merecem reflexão: “Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo”. E “Com tudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente”.
É de se refletir profundamente sobre essas duas conclusões de Pero Vaz. “Dar-se á nela tudo”... “Salvar essa gente”... Hoje, passados quatrocentos e cinqüenta anos do nosso descobrimento, que somos? Financeiramente, politicamente, e o que é mais importante ainda, culturalmente, que somos? E que triste é a realidade!
Somos, como já disse alguém, “o país a que amamos, mas por quem choramos”. Situado dentro dos meridianos excelentes de um clima bastante saudável – pois os rigores do inverno nem os calores mais intensos do verão nos atingem – estando colocado num ponto tão estratégico que fáceis se tornam suas comunicações com o exterior, e sendo dono de vastas extensões próprias para grandes culturas, somos hoje, uma pobre terra à que faltam, ainda, comunicações, transporte, produção agrícola, escolas, universidades!
Tudo definha; só cresce uma ambição impetuosa para o poder e o dinheiro. Tudo fenece; só medram as inteligências medíocres que dominam os quadros poderosos da administração pública.
Tudo são incertezas, egoísmo, comissões e “comessões”, funcionalismo. (Aliás, aqui, parece que sofremos de uma espécie de fatalismo histórico, pois o próprio Vaz de Caminha, no final de sua carta, pede, humildemente, ao monarca, que transfira para a Corte a Jorge de Osório, seu genro, que servia, na Ilha de São Tomé, como funcionário municipal...). Nada se faz com patriotismo, com perfeição, com desbravamento, excetuadas, talvez, as três vigas mestras de nossa “civilização”: o samba, o jogo do bicho e o futebol. O povo permanece ignorante, menos por sua culpa, ressalte-se, do que pela da inépcia dos governos dominantes.
E é notável que dentro de tanta mesquinhez as campanhas redentórias se façam sempre com um aspecto de grandiosidade relevante! São as “Campanhas de Educação de Adultos”, “Marcha para o Oeste”, “Campanha contra o analfabetismo”, etc., etc., tudo com um sentido grandioso do “Weltanschaung” germânico! Nesses casos, o governo é sempre o pedinte ao particular: sua verba é sagrada, é necessária para financiar os Institutos, as embaixadas luxuosas, os Legislativos brincalhões...
Pobre terra! A fauna mais daninha é eleita vereador, ou deputado, e então, nas Câmaras, eles dominam, porque os de boa vontade, os homens, são minoria...
Como Pero Vaz de Caminha é terrivelmente real ainda hoje! Como ele, dentro desse anacronismo tristíssimo, é profundamente verdadeiro.
“Dar-se-á nela tudo”...
“Será salvar essa gente”...
Mas se Caminha, há 450 anos, dirigia-se ao rei D. Manuel, a quem, hoje, dirigiremos esse apelo “salvar essa gente”? A quem se não a nós mesmos? E quem somos nós mesmos?
Luiz Ernesto Machado Kawall
A IMPRENSA – Outubro/novembro de 1949
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