Uma lástima, é o termo que mais se coaduna com a análise do serviço de bondes em São Paulo. A carência de carros e a sua impontualidade. Primeiro, e a falta de conforto e os deseducados cobradores, depois, são para o paulistano um suplício, suplício este que se torna calvário de cada dia, pois sem tomar seu cafezinho e o seu bonde diário os habitantes desta terra de Piratininga não ficam...
Isso, falando materialmente. Na parte espiritual, o bonde é, antes de tudo, um veículo... de psicologia. Nele, os estudantes dessa ciência de Freud encontrariam um farto material para suas observações. Porque em nenhum outro lugar a alma humana fica tão devassada como nos bondes. Por quê? Complexos, recalques? Talvez. Psicologia das multidões? Quem sabe. Mas, deixemos falar os fatos que, mais que as palavras, eles evidenciam por si sós.
Vejamos primeiramente o sentimento de curiosidade. Já repararam na curiosidade dos vizinhos quando estamos lendo alguma coisa? Já notaram o esforço que despendem procurando ver o que estamos vendo, observar o que estamos observando? Incrível o não podermos tirar o mínimo objeto possível dos bolsos sem que a atenção não os penha de sobreaviso para saber o que seja!
Notório também se mostra o escárnio para com o vexame dos outros passageiros. Como gostaríamos de ver o próximo em má situação, sofrendo os impropérios dos condutores, rendendo-se aos seus insultos... O cinismo não passa despercebido também. Que comoção, que pena, que sofrimento vai pelo bonde se atropela um pobre gato caolho! No entanto, por um passageiro mutilado ou defeituoso, ninguém se compadece. E quanto de cinismo há na atitude de certas pessoas que, para subirem num banco, mostram-se todas corteses e bem educadas, mas, à saída, nem soltam um simples “Com licença”.
Mas, é sobretudo pela exibição de si mesmas, pelo luxo de serem notadas, é que algumas pessoas querem, nos bondes, evidenciar mais sua arrogância, sua pretensa superioridade. Então, os homens tidos como os mais corteses tornam-se os mais mandões, questionando alto pelo troco, blasfemando por alguma parada nalgum cruzamento, soltando grossas baforadas de mal cheirosos charutos, nos vizinhos. Outras mulheres, por sua vez, - fazendo do bonde o confessionário do mundo – comentam questões íntimas e escabrosas o mais alto possível; e demoram para tirar o correspondente às passagens dado à enormidade de bolsas e de bolsinhas, das quais fazem alarde, que se abrem e se fecham com grande bulha.
Bem que essa psicologia dos bondes nos entretém e consola. E só por isso não os temos por abomináveis.
A Imprensa – Abril de 1949)
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