sexta-feira, 25 de março de 2016

O BONDE

O bonde nos põe em contato com quase todos os espécimes mais raros da heterogênea fauna humana. Essas raridades – justamente aquelas cujas maneiras e atitudes as tornam destacadas dos demais passageiros – é que procuraremos apontar aqui. 

Primeiramente, vejamos aqueles compreendidos entre os “figura difícil”. Estão nessa categoria, desde os pacatos cidadãos que se postam de tal jeito nas pontas dos bancos,cruzando tão investidoramente suas pernas, incomodando e perturbando assim os que vão nos estribos, até os ingênuos (ou muito espertos) cavalheiros que, lépidos, tomam nosso lugar no estribo, se damos passagem para uma pessoa descer ou subir. Esses abomináveis tipos são os “figurinha”... 

Depois, temos aqueles indefectíveis indivíduos que, a pretexto de qualquer incidente de menor monta – uma curta parada por um enterro, um comum desligar de eletricidade – aproveitam o ensejo para desfiarem por cima de nós toda a sua filosofia da vida, todo o seu pseudo-cabedal das engrenagens do mundo. Esses ao os tradicionais “chatos”.

E existem também uns distintos passageiros que por tudo querem mostrar-se afáveis e polidos, fazendo questão de dar o sinal de parada para as senhoras ajudando as crianças a subirem, avisando os “pingentes” de lugares para sentar; sobretudo, cuidando de cutucar o vizinho distraído da cobrança da passagem. Costumamos chamar a esses gentis-homens da cortesia de “paizinho da família”... 

Nos “camarões”, às sossegada e calmas senhoras que esperam o bonde parar depois tratarem de pagar e descer (não sem antes deixarem de berrar “Espera!”, ”Parado!”, “Parado!”), damos o epíteto de “Já vão tarde”... 

E esses rapazes que aproveitam o silêncio das paras dos bondes para começarem a dialogar alto em inglês ou para falarem de operações (!) medicinais que “realizaram” (“Aquele sopro cistólico bilateral esquerdo (sic) no 3º mediastino, com bisturi elétrico, foi fácil!”. “Eu, não, à maneira dos grandes cirurgiões, só opero com anestesia ráqui”)? Esses, logo reconhecidos doutores da mula russa, são os “cabotinos”... 

Os que se postam nos estribos estão sujeitos a uma estranha hierarquia. Primeiro, os “remediados”: são aqueles que se grudam nos balaústres, viajando relativamente bem.Depois, em segundo lugar, vem os da categoria dos “infelizes”: aqueles cujos corpos pendem num ângulo agudo dos estribos, estando seguros por um braço só; e, por último, estão todos os que se sobrepõem às duas primeiras categorias, os braços clamorosamente abertos, estendidos. Esses são os “crucificados”... 

 Aí estão os tipos de passageiros de bondes. Situe-se o leitor onde os julgar mais à vontade, mas, se a classificação o desagradou, não nos recrimine, mesmo porque em matéria de bonde, “Cortesia com cortesia não se paga” ... 

 A IMPRENSA – Sábado, 5 de fevereiro de 1949

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