sábado, 12 de março de 2016

VIRGOLINO, O ABSURDO DOMÉSTICO, O MAGISMO POPULAR

- Até 1959, mais ou menos, fazia pintura social... Depois, minha pintura se ressentiu, ficou mais doméstica... Aliás, sou muito doméstico, mesmo, gosto do absurdo doméstico, do pitoresco e do humor do cotidiano, que procuro retratar sempre, em minhas telas... Eu gosto de pintar e ganho a vida assim, pintando, me distraindo... Desde 1967 estou nesta fase profissional de minha pintura, isto é, vivo exclusivamente do que pinto... Nunca fiz curso de pintura, faço pintura popular, de base figurativa, primitivo não dou... Embora possa ter raízes primitivas. 


Wellington Virgolino, 44 anos, pernambucano do Recife, faz sucesso em São Paulo em sua individual em “A Galeria”: 32 quadros - óleos sobre tela colada em Duratex, a técnica com temas bíblicos, quase todas vendidas, preços variando de 6 mil a 15 mil. São telas pequenas, médias e grandes, bem coloridas, decorando feericamente o amplo salão de entrada da galeria de Waldemar Szaniecki, na Rua Haddock Lobo. Virgolino atende a críticos e jornalistas, é sua terceira individual em São Paulo, depois de lançado aqui pela Galeria Artréia, em 1964 e em 1967. Tem fala mansa e cordata, aguda vocação para o humor. 

- Adoraria fazer vanguarda, se tivesse vontade, mas não tenho... O abstrato não me distrai nem atrai... Prefiro as histórias de quadrinhos, a gente das feiras, as bandeiras dos clubes esportivos, os desfiles carnavalescos... Por que Morandi só pintava garrafas e copos?... Porque gostava deles... Eu gosto da minha pintura, gosto de contar coisas com ela, fazer uma pintura bem popular, nada temática ou ideológica... A cor, sim, é bem primitiva, identifica minha pintura com o povo... A cor que a gente vê, nas ruas, nos bailes, nas feiras, está nas minhas telas. 

Antes, sua pintura não era identificada com o povo?

- Era, mas era mais social, temática... Depois surgiram crianças, essas crianças passaram a ter vida, a fazer brincadeiras, cada quadro meu tem muitas brincadeiras, coisas criativas e ingênuas que me divertem, oi retrato que procuro fazer do absurdo doméstico... E isto está dominando a minha pintura até hoje... Um brinquedo de feira num canto duma tela, uma panela que é chapéu, um urinol usado como cadeira... Mil artifícios que considero autênticos, estórias que eu conto... Acrescentando um ponto... Tudo tão diferente e tão distante da minha arte de 1950 e 1960, aliás, recebeu na época críticas elogiosas de um José Geraldo Vieira, de um Mauro Motta. 

Quando começou? 
- Lá pelos idos de 45, 46... Meu pai era marítimo, fiz o primário, estudei i ginásio até o científico... Trabalhei no comércio até 1967, numa companhia de navegação, tive minha própria agência de propaganda... A verdade é que vivi a infância nas ruas, ganhando a carga vivencial popular que hoje transponho em muitos quadros... Em 1950, por aí, com um grupo de pintores recifenses, criamos a Sociedade de Arte Moderna, que tinha um ateliê coletivo, onde podíamos pintar... Eu já pintava em casa, mas usei muitas vezes esse ateliê, onde também figuravam Brennand, Abelardo da Hora, Gilvan Samico, Wilton de Souza e outros... nó fazíamos de tudo, escultura inclusive, mas eu saí mais para pintor.

Qual a sua técnica? 
- Cada quadro meu leva tempo para sair... Escolhido o tema, preparo a tela, desenho, pinto, espero que ela seque... Dou uma segunda mão, retoco, espero secar outra vez... Por último vem o retoque final... Pinto vários quadros ao mesmo tempo. Toda minha produção é colocada na Galeria Ranulpho, do Recife, na própria capital, no Rio e em São Paulo... Uma garantia, acho, esse sistema, para o artista... Sou muito caseiro e bem organizado, pinto religiosamente 6 horas por dia, quando não, estou ocupado com coisas da arte, compra de tintas e telas, visitas a exposições, bate papo sobre arte com os amigos e coisas assim... Minha pintura é minha profissão, minha arte é minha vida... E posso dizer que meus personagens, mesmo os adultos, são crianças, parecem crianças sempre, são crianças impostas pela própria pintura. Com elas faço minha pintura, minha arte... Com elas me distraio e me divirto. 

Virgolino conta que vive em Campo Grande, bairro recifense, com a mulher e dois filhos. Sua primeira individual foi na própria Recife, no Teatro do Parque. Depois, fez outras individuais em Recife, São Paulo e Rio, e várias coletivas em sua terra natal. Belo Horizonte, Salvador, São Paulo Rio e Londres. Prêmios: 1954, Menção Honrosa (Pintura) no Salão do Estado de Pernambuco; 1955, (Escultura), idem; 1960, 2º Prêmio (Pintura), idem; e em 1961, Pintura 1º Prêmio, no mesmo Salão do Estado de Pernambuco. Ele repete considerar-se um pintor popular, não é primitivo nem folclórico... E o Popular, mais que pelos temas, por causa das cores. 

Seu hobby é, além da pintura, o futebol, não perde jogo do Santa Cruz, o último que viu foi o jogo da vitória do seu time sobre o Santos de Pelé, por 3 x 3. “Pelé não está no canto de cisne não, jogou um grande futebol, mas o nosso Ramon, artilheiro do Brasileirão, quis mostrar que é bom também e fez os gols a vitória sobre os santistas”. Virgolino encaixa muitas cenas e historietas do futebol em suas telas como no portentoso “Derrubada dos muros de Jericó”, onde, do lado vitorioso, entre os soldados guerreiros, está um deles com a bandeira do Santa Cruz. “Minha paixão é essa”. 

- Que acha da arte brasileira atual? 
- Excelente. O artista nosso é bom, seja aqui, no Recife, em Caruaru, no Rio ou em Paris... Mas só é conhecido e ganha fama se é divulgado, e nem todos o são... Eu tive sorte, tenho sido noticiado, e ainda mais agora em São Paulo, esse colosso do Szaniechik promovendo... Hoje, em todo o Brasil, há dezenas de jovens fazendo uma arte séria e adulta... São os seguidores de nossos maiores mestres, como Rego Monteiro, Tarsila, Portinari, Di, Segall, Volpi, Milton Dacosta, todos influenciando as novas gerações... Dos atuais, destaco, entre outros, lá mesmo no Nordeste, Brennand, Samico, João Câmara, José Cláudio, Fernando Lopes (Maceió), Miguel Santos (João Pessoa), Emanuel Araújo em Salvador e assim por diante... Afora os consagrados como Lula, Caribé, Cícero Dias, Jenner, Genaro, Cravo e outros. 

- A arte feita no Recife é exclusivamente regional? 
- Não, na é uma arte exclusivamente regional, embora tenha as influências do meio... É, em valor, até universal... Acontece que Walmir Ayala e Roberto Pontual acha que temos uma Escola Pernambucana, quase toda baseada em Rego Monteiro... Os principais elementos dessa escola seriam a cor, os temas populares e a tendência figurativa... Eu e João Câmara seríamos dois dos mais típicos representantes dessa Escola... Sim, somos unidos no Recife, temos boa camaradagem entre os artistas... 

 Virgolino está contando casos e anedotas, um grande grupo se forma à sua roda, ele parece um mágico a tirar surpresas de sua prosa ágil e inteligente, às vezes irônica e sarcástica como sua pintura em que transforma os elementos populares em formas plásticas de grande beleza. Ele repete e conta que sua tendência maior são os absurdos domésticos, o cotidiano engraçado, pitoresco, alegre, folgazão, mágico, quase surrealista.

E, DAQUI POR DIANTE, FALA O ARTISTA: 

... mas o que me interessa é contar uma história.

 Eu não conhecia a Bíblia. Nunca tinha lido. E como dizia Cézanne é sempre bom a ente fazer alguma coisa que vê pela primeira vez. A idéia de fazer um ciclo, uma série de quadros inspirados em episódios do Velho Testamento, surgiu logo que recebi o convite para fazer essa exposição, em “A Galeria”. Eu tinha feito, e me dado bem, duas exposições, duas séries: uma sobre o Circo e outra sobre os Signos.

Meu primeiro contato com o Velho Testamento foi através de uma Bíblia em quadrinhos, que pertence a meus filhos. Também tinha um texto de uma Bíblia católica, da minha casa. Mas depois que souberam que eu estava pesquisando sobre o tema recebi várias ajudas, um livro de ilustrações de Gustavo Doré e vários livros de interpretações ligadas à cultura hebraica, que me forma emprestados pela colônia israelita. 

A partir daí escolhi os temas: Suzana e os Velhos; José e a Mulher de Putifar; o Paraíso (tríptico); Derrubada dos Muros de Jericó; Moisés e as Tábuas, etc., em número de trinta e dois, que resultaram nos quadros dessa exposição. 

Moisés (o maior) foi o primeiro quadro que pintei. E por isso mesmo ele é, talvez, o mais linear; isto é, o mais ligado diretamente a uma narrativa do tema bíblico. Inclusive refiz, várias vezes, a inscrição dos Mandamentos, optando finalmente, pela forma hebraica, já nos outros quadros fui me soltando e colocando minha visão pessoal, uma interpretação minha em cada episódio(gosto desse tema porque ele lembra as revistas em quadrinhos, forma narrativa atual que muito me interessa). 

Sou uma pessoa séria, mas que gosta de brincar. E isto tem que ser revelado através da minha pintura (se não acontece agora, acontecerá aos 80 anos, quando eu estiver com muita maturidade). No quadro “José e a Mulher de Putifar” coloco um cabide com o chapéu de guerreiro de Putifar (como se sabe os guerreiros antigos usavam chapéus com chifres grandes, para assustar os inimigos); e isso poderá significar que José, realmente, estava no quarto de Putifar, e não no seu, como diz a Bíblia. No quadro “Derrubada dos Muros de Jericó” coloco uma bandeirinha do Santa Cruz Futebol Clube (meu time) no lado vitorioso e uma do Clube Náutico Capibaribe (time do meu grande amigo Carlos Ranulpho) no lado da cidade situada. São pequenos detalhes que fazem parte da minha pintura, uma forma de tirar o dramatismo pesado (que não me agrada). 

Na realidade, o Velho Testamento, o Circo, os Signos são apenas temas que servem à minha pintura E ela só ficará na medida em que for esteticamente boa (e eu espero que seja). Mas são temas onde encontro os elementos que posso transformar em formas plásticas, dentro do meu estilo. Porque na verdade junto ao ato de pintar o que me interessa é contar uma estória. De preferência, uma estória divertida. Muito me agradou pintar esses trinta e dois quadros que fazem a minha atual exposição; inclusive me divertiram. E eu espero que eles sirvam, também, para divertir o espectador. E se forem vendidos, melhor; me divertirão ainda mais. 

A TRIBUNA Santos, 18 de novembro de 1973.

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