segunda-feira, 10 de novembro de 2014

A CHOCANTE ARTE DE FARNESE



Esse artista abriu as portas do inconsciente coletivo
Consuelo de Castro.

Cinqüenta anos, mineiro de Araguari, no Rio desde 1950, ex-aluno (pintura) de Guignard e de Friedlander (gravura), Farnese de Andrade está expondo seus objetos surrealistas, montados com ex-votos, gamelas, raízes, santos e oratórios, São composições em que exibe o execrável e o lírico, capazes de chocar e perturbar, expressando um mistério cruel que se inclina pelo sagrado. Todas as peças de que dispõe, Farnese as recolhe em praias desertas, em lixos residenciais, fotos antigas e lembranças familiares. Trabalha em seu ateliê carioca, com o material à vista, compondo seus objetos à base do fantástico e do primitivo de cada figura. Atualmente não usa mais, como antes, bonecos de celulóide, que carbonizava e mutilava, as peças originais, revelando agora interesse especial por ex-votos e objetos de umbanda. Assim monta composições em que transmite suas mensagens de uma liturgia plástica irreal e bela, talvez lembrando vibrações e anunciações de outros mundos. 

A GRANDE ALEGRIA: DEPOIMENTO DO ARTISTA

- Estou apresentando aqui em São Paulo 57 objetos, que não tem intenção decorativa, vem de dentro de mim. São obras em que coloco toda minha sensibilidade, causam ora horror, ora fascínio. Todos sabem que na elaboração dessas composições meu inconsciente atua, e que não retenho bem as coisas. Tive depressão 3 anos e ainda estou me curando, sob a ação de medicamentos. Mas meu trabalho me dá tanta felicidade, tanta realização interior, que não necessito mais da análise clínica para me curar, só de meu trabalho. Acho. 
- Passo todos os anos 8 meses no Rio, e 4 na Espanha, onde tenho ateliê, em Barcelona. Este ano cancelei compromissos e faço apenas uma outra individual, no Museu de Arte Moderna de Barcelona. Além do mais, da sua cultura, o lixo dessa cidade é rico e fonte inesgotável de objetos estranhos. Aqui em São Paulo, tudo bem, minha exposição vai indo bem sucedida, visitada pelo Governador e centenas de amigos, e o movimento de arte, ressurge com pleno vigor. 
- Meu trabalho com objetos começou por puro acaso, no início da década de 1960. Antes de falar sobre este começo que no esclarecer que tenho uma certa deficiência cerebral, devido a uma queda na infância, quando fiquei praticamente amnésico, durante uma semana mais ou menos. Deficiência essa que se reflete no fato de não conseguir reter por muito tempo nada do que vejo ou do que leio. E acredito que um bom grau de sensibilidade (que penso ter), compense isto. 
- Mas a verdade é que desde jovem renunciei a ver ou ler livros sobre arte ou assinar revistas especializadas, para estar em dia com o que acontece no meu setor. Este problema teve uma vantagem: fora minha paixão infantil pelo desenho de Alex Raymond (Flash Gordon) e a luta que tive com meu professor de desenho (Guignard) para me libertar dessa influência, levando-me a copiar exaustivamente reproduções de Holbein – tudo que já fiz e faço em arte sai só de dentro de mim. Não quero dizer com isto que me considere um “original” ou fora de série (nada há de novo sob... etc.), mas ser ou não ser original não me preocupa em absoluto. O ato de criar é um exercício de felicidade e somente isto me importa. 
- Mas, em matéria de desinformação e cultura, confesso, só não sou um artista naif devido ao meu inconsciente que não permitiu. Para evitar equívocos, sei que existem ingênuos ou primitivos por opção, sem serem obrigatoriamente incultos. Criação é um fenômeno altamente pessoal, admiro colegas meus que conseguem unir a sensibilidade e a cultura. Em arte não existem regrar ou dogmas definidos. O importante é que o resultado da pesquisa seja bom, esteticamente válido – baseado na tecnológica, nos novos meios de comunicação e de expressão, em raízes nacionais ou na ingenuidade lírica, intencional ou não. Mas voltando. Aos inícios de 60 quando fazia só gravura em metal, não figurativa. O resultado a que queria chegar – a chapa com aparência de coisa quase arqueológica – eu conseguia obtebndo relevos profundos no latão. Vinha depois o processo da água tinta e depois lixava ao máximo, sem mesmo tirar uma prova de estado. Esta alquimia eu repetia obsessivamente até ficar satisfeito. Percorria as praias procurando formas de madeira cheias de sulcos, borracha ou plástico (mais maleável) – sandálias japonesas, por exemplo, com seus minúsculos relevos já gastos – eu usava fazendo uma espécie de monotipia na chapa, com asfalto líquido e as gravava. Aos poucos comecei a me interessar também por outros objetos “encostados” pelas marés: madeiras belamente tratadas pelo tempo, sol, mar, cabeças de bonecas de plástico já com aquele aspecto de tempo atuado, de coisa usada, machucada, vivida. Com o automático habito que já possuía de lixar com obsessão chapas de metal, iniciei esse processo também sobre madeiras, respeitando seus contornos, polindo o tratamento já executado pela natureza. Um dia, na minha mesa de trabalho, se juntaram: a base de um possível móvel em estilo antigo, um ovo de madeira (de costura), um cabeça de santo em gesso decepada e uma bola de gude. Foi meu primeiro objeto, seguido de outras superposições de peças, cada vez com mais consciência – e principalmente prazer – pequenos conjuntos foram tomando forma. Encontrei então num terreno baldio uma caixa de bóia madeira e nela coloquei um desses conjuntos. 
– A gravura foi perdendo seu interesse e, afinal, em 1966 realizei minha primeira e única individual de objetos. As caixas já eram encomendadas sob medida. Usava também redomas e tinteiros de vidro e multidões de pequenos bonecos calcinados ao calor da vela, simbolizando os mortos de Hirochima. A fase que chamei “objetos desgastados” foi sendo abandonada em função de materiais mais “nobres” e retomada nos últimos tempos (tudo continua sempre...). Neste período eu já percorria os bricabraques da cidade, os depósitos de demolição, os cemitérios de navios e até mesmo os antiquários. Passei a me interessar por oratórios rústicos e antigos, mas com uma caixa bem feita e requintada, caixinhas fechadas, marcadas pelo uso e tempo misteriosas. Estas últimas prontas, sempre levavam o nome de “em busca do tempo” – não o tempo perdido de Proust, mas o que realmente não existe e que as fotografias tentam colher e imobilizar. Por sua sorte, ficou na família uma estranha coleção de chapas e cópias de fotos, deixadas por um tio, fotógrafo de moda, na sua época. Estas fotografias incluíam casamentos, jovens senhoritas, senhores e senhoras graves e endomingados. 
- Eram pessoas que povoavam o Triângulo Mineiro naquela época. Usei e uso ainda essas velhas fotos, acrescentando outras encontradas ao sabor do acaso aqui, em Barcelona e outras cidades que visitei na Europa. Atualmente para definitiva preservação elas são colocadas entre duas camadas de resina de poliéster transparente e polidas aproveitando a pesquisa que estou fazendo em blocos deste material (a caixa ao contrário, de acordo com Alair Gomes). Tentativa esta que foi iniciada há quase dez anos e abandonada por absoluta impossibilidade técnica. Só agora, com o encontro de dois técnicos pacientes e meticulosos, estou conseguindo levar adiante. 
– O uso dos oratórios, aparentemente, acentuou a tendência para uma certa liturgia , que desde a minha primeira exposição se esboçava. Elementos como restos de altares, santos antigos, base de castiçais, etc. – entram como destaque de conjunto, e faço questão de esclarecer que meus temas “anunciações”, “anjos anunciadores”, nada têm a ver com o personagem histórico e sempre lembrado: Cristo. Mas sim como arautos (os anjos) de uma nova raça produzida pela tão temida hecatombe nuclear atômica. Quem pode garantir o resultado final genérico desse sacrifício nuclear sobre o gênero humano? Porque não evolutivas e aceleradoras do processo de evolução lentíssimo das nossas tão limitadas capacidades cerebrais? Uma utopia é claro, mas também um fio de esperança para um homem que já não espera nada do Homem em seu atual estágio e que já não crê em regimes políticos salvadores. Quem sabe então nossa civilização apodrecida e dominada pela violência, neurose e inconcebível egoísmo dos poderosos e privilegiados possa ser refeita em outras bases? 
– Minha fase atual predominante veio como conseqüência de uma forte depressão psíquica que sofri na passagem de 73 para 74. Quem já conhece essa doença e todo o seu horror sabe bem distingui-la da generalizada fossa existencial e entenderá o que passei. Curado, senti urgente necessidade de um suporte aberto não apenas no quadro-objeto, mas algo mais.. Não conseguia ver nada fechado e me sentir num beco sem saída. Um dia, passando pela cozinha observei pela primeira vez (ou vi) uma gamela. Um objeto tão prosaico e com tão rara beleza. Passei então a comprar gamelas e encomendá-las do interior, etc. Nessa ocasião adquiri duas esplêndidas coleções de ex-votos, pois desde minha primeira exposição vinha fazendo – onde contava com uma peça de ex-voto substituindo o boneco – vinha fazendo a caça sistemática a essa maravilhosa comprovação da alta dose de criatividade e inventiva do artista anônimo e popular do Nordeste brasileiro. A união da gamela como suporte (também, grandes coxos e até canoas), associado à fartura e variedade desses objetos desencadeou um processo de trabalho quase frenético.
– Em 1974, interrompido por uma estada em Barcelona de dez meses e retomado em meados de 1975, agora em ritmo mais calmo e pensado, me reconciliei também com as caixas fechadas, os oratórios e mesmo o surrealismo mágico continua a comparecer no meu atual trabalho. 
- Minha volta aos desgastados e ao aterro, devo em grande parte à revelação da incrível riqueza do lixo de Barcelona, cidade onde possuo também um atelier, e fonte inesgotável de objetos estranhos, tão estranhos como a própria cidade, que em minha opinião só Bunuell e a loucura do maravilhoso Gaudi podem explicar. Paradoxalmente este lixo tão rico é encontrado no Bairro Chino e arredores. – em que moram famílias pobres e também onde se localiza a zona de prostituição. Esta gente maravilhosa joga tudo fora, na rua, desde o objeto execrável de mau gosto, portas, janelas de mais de 200 anos e até antiguidades. Mesmo a vida quase inteira de uma pessoa que já morreu, desocupou seu espaço nos velhíssimos apartamentos. Como no dia em que encontrei um enorme saco plástico contendo desde a certidão de nascimento de uma certa Dolores Matarrales, suas recordações, fotografias e cartões postais de diversas épocas, pequenos objetos, etc. Foi de um total e maravilhosos encantamento examinar todo esse material que afinal representava a vida de um ser humano que amou, sofreu e lutou como todos nós. Cheguei até a indefinível sensação (vocacional) ao descobrir e se apossar de sua prenda... Um amigo, também artista, me sugeriu construir uma grande caixa ambiente com tudo aquilo. Para que? Foi mais suficiente a sensação que consegui em viver parte daquela vida. Aproveitei apenas fotos e alguns cartões. 
– O prazer sempre renovado que me proporciona estes achados, nas mais diversas fontes o encontro (às vezes até casual) de duas peças que se completam no caos do meu atelier, o ver a obra pronta, definitiva, é nisso que residem atualmente, minha única, total e grande alegria. 

FOLHA DE SÃO PAULO ARTES VISUAIS 02 de maio de 1976

Farnesi de Andrade foi escultor, pintor, ilustrador, desenhista e gravador.Seu trabalho artístico foi pautado por um profundo mergulho no inconsciente, em contraste com as tendências artísticas do período em que viveu, sendo considerado politicamente alienado em face ao subjetivismo de suas obras. Entretanto, sua obra aproxima-se da produção dos anos 1980/1990, princialmente pelo peso da individualidade que transmite. Farnese de Andrade morreu no Rio de  Janeiro em 18 de julho de 1996.

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