segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

GENARO


Genaro, como vai, lembra-se de mim? 
A loira charmosa abre um sorriso escancarado diante do pintor. Genaro, longas barbas, paletó esporte londrino está cercado de gente por todos os lados. É seu vernissage em A Galeria. 
– Sim, conheci você numa viagem à Alemanha. 
– Não, Genaro, eu sou inglesa... 
O famoso artista fica meio sem ação, tenta consertar. 
– Pois é. Inglaterra. Alemanha. Tudo igual. 
E Genaro, assim, comete mais uma gafe. Sua mulher Nair – uma linda mulata, elegantíssima – sorri. Conhece Genaro bem. Sabe que ele mistura nomes e não sabe lembrar situações. Mas Genaro já está recebendo outros amigos, Jorge Amado. 
– Como é, Jorge, veio da Bahia? 
– Não, do Rio, como lhe avisei. Considera-se realizado? 
– Um artista nunca se considera realizado em termos definitivos. E quem sou eu para julgar a minha obra? 
– Aos 44 anos, quais seus projetos futuros? 
 – Trabalhar pela minha terra e minha gente. Esta é a nossa hora, da nossa geração. Note que o novo governador da Bahia, Antonio Carlos Magalhães, tem apenas 42 anos. 
– Ensina sua arte aos jovens? 
– Sim e não. Sim, se puder contribuir para o aprimoramento e a educação artística dos jovens. E, não, se alguns deles quiserem desprezar, a minha experiência, baseada numa tradição de pesquisas, de verdadeiro artesanato e de luta em prol da arte brasileira. 
Genaro é um bom papo, não a fora o rapagão alto e simpático e... baiano. Usa uns óculos panorâmicos, grandes, fala com calma, expositivo.
Por que não se dedica à política?
Não tenho nenhum fanatismo por política e políticos. Minha única preocupação é a Arte.
O que acha da arte brasileira de hoje?
No momento, como a Arte de todo o mundo,  a Arte brasileira está em transição. O artista contemporâneo é agora mais privilegiado, pois muitas são as portas e janelas abertas à sua frente e,  com sua sensibilidade, pode escolher  o melhor caminho.
 E o público, como reage?
O público começa a valorizar o trabalho dos artistas e mantém com os valores autênticos um entendimento útil. Acredito que a geração jovem de artistas que vem subindo encontrará um Brasil mais maduro, propício ao desenvolvimento das artes, sem o pioneirismo e o heroísmo dos tempos antigos. Isso é muito diferente, por exemplo, da geração de Portinari e de Segall, quando, para subsistir, o artista precisa ser professor de Belas-Artes, ou utilizar outros meios, muitas vezes  diversos de sua vocação.


Genaro pinta à tarde, em seu sítio nos arredores de Salvador, na estrada velha de Ipitanga. Ali, na Aroeira, produz num mundo diferente de seu agitado ateliê da Praça Dois de Julho, em Salvador. Genaro está pintando suas mulatas (óleos) ou desenhando os cartões de onde suas exímias 70 artesãs contratadas bordam suas famosas tapeçarias. Sabe que tem tapeçarias e óleos espalhados por todo o mundo – afinal é artista há 22 anos. Mas perdeu a conta. A dobermam “Verushka da Barra” atrapalha um pouco sua pintura. De manhã, Genaro já brincava com seus gatos siameses, Valentino, Sissu e Gisela. Nair, sua mulher, é sua secretária também. Cuida de tudo: 
– Genaro acorda por volta das 9 horas. Toma café reforçado, com “bacon”, ovos, suco e geleia. Desce e faz uma análise tranquila do que executou no dia anterior. Recebe alguns turistas e se inteira dos fatos do dia, lendo as várias seções dos jornais. No futebol, demora-se um pouco mais – é torcedor do Bahia, do Flamengo e do Santos, lógico. Depois almoça frugalmente, geralmente carnes. 

– Quais seus maiores amigos? – Jorge Amado, compadre e companheiro e maluquices em Londres. James Amado, Tibúrcio Barreiros, Caimmy e alguns outros. 

– Quais seus “hobbies”? – Passear nos fins de semana, bater papo, andar de escuna nos mares da Bahia e o automobilismo. 

– Qual o seu livro de cabeceira atual? – “Love Story”. 

– Suas mulatas não seriam um tema já excessivamente explorado em nossa arte? – Tenho plena consciência do fato de que muitos artistas plásticos brasileiros já exploraram o tema “mulata” na pintura – Santa Rosa, Teruz, Gomide, o próprio Portinari e, especialmente, Di Cavalcanti. Sei que não estou sendo inteiramente original. Mas enquanto, por exemplo, a mulata de Di Cavalcanti é mais lírica, nostálgica, a minha mulata é ao mesmo tempo sensual e mística, como no quadro “Maria Eleonora no Dia do Seu Casamento com seu Buquê de Nidularium Innocentii – Segunda Versão”. 

– E o decorativismo em sua pintura?  – Tenho o decorativismo na minha pintura como um elemento consciente, como um objetivo, uma finalidade. Não escondo isto. Mesmo na figura dou um sentido ornamental. E não consigo entender porque tanto preconceito em torno do decorativismo na arte. Toda a pintura chinesa, persa, é, por excelência, de finalidade decorativa. 

Genaro dá ainda outra razão para a presença tão marcante em sua pintura. Fala manso, o velho Genaro, artista e amigo: 
– São as minhas origens. Nasci e vivo numa cidade onde o decorativismo barroco era e é uma das expressões mais válidas e puras da arte brasileira. Desde criança, admirava as igrejas, seus tetos e vitrais, toda a luxuriante obra de talha dos zimbórios, capitéis, naves e altares. 

– Genaro, se você não fosse pintor, o que gostaria de ser? 
– Um pássaro, voando sobre o céu livre da Bahia. 

Publicado originalmente no jornal "A Tribuna", de Santos, em 22/5/1971.

Genaro de Carvalho em seu ateliê


Na residência do jornalista Luiz Ernesto Kawall, diretor executivo do Museu da Imagem e do Som de São Paulo. foi realizada exposição e leilão de vinte telas de Raimundo de Oliveira. A renda reverteu em benefício da construção do Museu de Arte Moderna de Socorro, SP. Durante a mostra, com a presença de 100 personalidades da vida intelectual e artística de São Paulo, deram seu depoimento o crítico Mário Schemberg, a professora Maria Célia Calmon e Genaro de Carvalho. Genaro, extremamente comovido, falou sobre a vida e obra de Raimundo Oliveira, seu amigo fraterno e íntimo, interpretando sua morte como fruto das injustiças que se faziam contra o artista, e sua sensibilidade extremamente lírica, bela e trágica.  As telas expostas, pertencentes à coleção de Benedito Paretto, que levanta em Socorro, sua terra,  o Museu de Arte Moderna, contando, inclusive, com o apoio de artistas e diversos intelectuais, como Jorge Amado. 
Esse texto acima foi publicado originalmente  no jornal Diário de São Paulo, em 18 de maio de 1971.

Peroração das mulatas 
Genaro de Carvalho considera a mulata brasileira – e está expondo uma esplendorosa série de nus delas, dos produtos híbridos de nosso país “o mais belo, talvez o mais representativo do Brasil, o que está mais ligado às nossas origens, a portuguesa e a negra”. Uma vez Genaro estava na varando azul de seu ateliê e uns senhores estrangeiros perguntaram sobre esse produto híbrido nacional. Segundo Jorge Amado, que faz a transcrição, Genaro respondeu: “Essas mulatas eu as pintei, uma a uma com delicadeza, saber, orgulho e agonia de criar. Essas mulatas não vieram de uma rua, de um beco, esconso apartamento, casa, avenidas, alamedas, não. Vieram numa nuvem doirada numa ave do paraíso e eram a bonança e a tempestade, um óleo perfumado, resina, madeira do Oriente, quem sabe vieram de Bizâncio num barco de sândalo. Reparai, caros amigos, ilustras professores, na tela imensa e tão pequena, onde cabe o mundo e o saber do homem e nela encontrareis a riqueza, a vaidade, a arte de Bizâncio, não porque seja eu um bizantino, sou Genaro da Bahia, pintor e tapeceiro, mas as mulatas, ah! São mulatas de Bizâncio e porque não? 
Mulatas bizantinas? perguntareis incrédulos, senhores e eu responderei que são misteriosas e surpreendentes se bem aqui nascidas de nossa mistura de sangues, caldeados, e do amor que cobriu a terra da Bahia na manhã da descoberta e no crepúsculo sensual do recôncavo, concha da mulataria se bem nascidas nas tintas de minha palheta, nas cores sábias (e cálidas) elas, as mulatas trazem a marca de Bizâncio aqui presente no quadro inteiro. Ah! Mas não são só de Bizâncio, pois essas mulatas do Cabula do Tororó, da Lapinha, de São Gonçalo, do Retiro, do Pelourinho e da Ladeira da Montanha, do princípio e do fim da cidade de Salvador da Bahia de Todos os Santos, têm uma atmosfera persa, sim, da verdadeira Pérsia do Irã, terra de Omar Kayan e são um rubaiat, um verso, um poema de molezas e dengues e zimbórios, flores, jarras, azulejos, borboletas, uma Pérsia inteira. Vejam a mulataria do oriente longínquo desembarca na Bahia, em meu ateliê, quando irrompeu a aurora na barra da manhã. Somente as recolhi e constatei alegre que chegavam diretas e frescas açucenas do século XIII, de plena idade média, na França e na Itália, na Germânia, mas eram populares e populacheras e ao mesmo tempo, assim aristocráticas como podeis notar, se assentardes o monóculo sobre certas e reservadas côncavas sombrias, polpudas, veludosas e celestes particularidades ditas vergonhas, glórias e os seios tão macios de carne e nácar, nácar, sim, senhores, pois não faço economias quando pinto essas mulatas da melhor mulataria. 

Tapeçaria de Genaro de Carvalho

Em ouropéis girassóis, gatos mariposas, ouro e mais ouro eu as envolvo pois nada é muito nem suficientemente bom para tais mulatas, donas senhoras, sinhás de muita distinção e trato, sábias no amor e na ternura, ingênuas e diabólicas, boas de comer e beber, de ter e ver, de tocar e rir, chorar, gemer, sublimes mulatas brasileiras. São apenas algumas mulatas que venho de pintar por desfastio, ternura e amor quando giz uma pausa no desfolhar da tapeçaria onde habito meu chão, meu lar, minha vida inteira. Pintei mulatas, são mulheres principais, nasceram na Bahia e nas minhas mãos, do meu sangue, desse coração ferido e as coloquei na roda se santo em dança de orixá em torno de Nair, só ela sabe os endereços os mistérios a verdade, a mentira só ela sabe do saber completo e certo Nairzinha. Pois bem, senhores, tenho dito.
É só.



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