segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Portinari


– Se o Candinho estivesse vivo, hoje, estaria morando em Brodósqui... Na última conversa que tive com ele, foi no Rio, no ano em que ele morreu, e o Candinho disse – “Mãe, a minha “vechiaia” quero passar em Brodósqui, lá se respira o ar puro, aqui no Rio só tem fumaça de carro...” Meu Filho iria fazer o Museu em Batatais, tinha prometido lá e em Brodósqui iria pintar uma capela e alugar um salão grande para por todas suas coisas. E hoje o Candinho estaria lá pintando e escrevendo... Iria brincar com as crianças na praça e conversar com seus amigos, aqueles caipiras, na esquina... Veria céu, o sol de Brodósqui... O Candinho estaria hoje com 68 anos. Ele viveu só 58, o Nenê.

Meninos pulando carniça

D. Dominga Turcato Portinari, 88 anos, enxuta e forte, às vezes tem uma gripe, uma dor nas costas. Há pouco ela comeu o franguinho no almoço (só coxa), está fazendo crochê, na pequena saleta do apartamento em S. Paulo – dado por Candinho. De noite vai escutar a Rádio Nove de Julho – aquelas rezas – e ainda tem a novena, pra Santo Antonio, pra Ainda sarar. De família rica na Itália, veio como imigrante para o Brasil – uma aventura sem fim, onde sua mãe, Maria, viveu um papel de grande senhora e heroína. Casou-se com João Baptista, em Brodósqui; ele tinha 1 9 ou 20 anos, era também imigrante, um entalhador de primeira. Ela tinha 16. Dos 12 filhos, três faleceram, Candinho, Geny e Oswaldo. Os outros moram em S. Paulo, Rio ou Brodósqui, estão bem colocados ou casados – Paulino, Tata (com quem vive, seu anjo da guarda), José Antonio, Maria, Ida, Julieta, Luiz, Olga e Inês. O José chegou há pouco, tem cuidados especiais com a velha mãe querida.

– Lembro-me muito bem – graças a Santo Antonio, não me esqueço de nada, diz d. Dominga, olhos firmes, ereta, o xale francês rendilhado, trazido pelo Candinho da Europa, abrigando sua figura esbelta e grande – da última conversa que tive com Candinho, no apartamento dele no Rio... Ele falou que queria voltar para Brodósqui. Viver muito tempo lá... Vim embora pra S. Paulo e fiquei aqui... Na noite em que ele morreu, telefonaram pra casa, mas a Tata não quis contar, me levaram pra jantar na casa dum amigo no Brás, o Abrão Blay, acho que ele é juiz aposentado... A meia-noite voltei, já tinha gente em casa, mas estava cansada, fui deitar-me... Estava na cama, quando a Tata me avisou: – Mama, o Candinho está no espaço, no espaço... E ela caiu no chão, chorando. Às 5 e meia, chegou mais gente, o Paolo Maranca, casado com a Marysia, filha da Julieta, entrou e disse: – Nona, quer ir para o Rio? Eu respondi: – “Não, pra quê, já estive lá há pouco”. Vieram outras pessoas, encheu de gente o apartamento, o Paolo ia contando “O Candinho morreu...” Ele não estava doente, ninguém entendia, era muita confusão... Mas eu não quis ver o Candinho morto, não viajei, é verdade que vi o enterro e o caixão dele na televisão... Eu soube que antes de morrer ele falou num dialeto italiano, umas coisas, só se foi no vêneto... Aí passou uns dias e eu fui pra Brodósqui, com o José, e sempre recordo e tenho umas saudades do Candinho até hoje... 

D. Dominga ajeita os chinelos, a blusa é de crochê, roupa feita em casa, toda branca. Conta que Candinho teve dois derrames na cabeça, não sabe bem, um deles no mesmo ano em que morreu. Naquela última conversa, ele lhe dissera que, depois de ficar bastante tempo em Brodósqui, com ela, iria para Israel, “o presidente de lá viria buscar o Candinho, garantia a vida dele”.

Meninos soltando pipa

 – Como foi o nascimento dele? 

O Candinho nasceu no 1903, numa madrugada, era do tamanho dum litro de garrafa... A parteira ficou 8 dias esperando a hora dele sair... Quando ele nasceu, Alexandra, minha irmã, foi em casa lá na roça e disse: – “Se eu soubesse que você não tinha nada pra me mostrar, não viria aqui”... Coitada, ela tinha tomado sol forte nas costas, subido todo o morro da colônia, para ver o Candinho, pequeninho... O Candinho de pequeno era bravo e chorão, era muito levado e inteligente também... Isso toda a vida ele foi... Quando tinha 2 meses, acordava e querida leite, mas só tomava se a gente puxava a cabrita “Tineta” dentro do quarto... Ele via o leite espumando e tomava, se não era assim, jogava tudo no chão... Era meio briguento e ranzinza também, se alguém olhava ele de frente de pronto o Candinho desenhava essa pessoa com cara feia... Ele jogava futebol na praça e brigava com, os moleques... Quando ficava nervoso, chamava eles de “porco, ladro, bestia”.. 

Os Portinari, filhos ou netos, têm filial respeito, até hoje, pela matriarca durona e humana, decidida e afetiva, e nunca responderam ou fizeram qualquer malcriação a ela, “senão eu pego eles, com uma varinha ou uma méscula de polenta”. Mas, nunca precisou, é verdade que Candinho apanhou, sim, algumas vezes... E agora d. Dominga está contando que Candinho mancava porque ela, uma vez, quando ele tinha 6 meses, caiu com ele no chão. Ele ficou preso, ela não tinha forças pra se levantar, foi um deus-nos-acuda na roça, até livrarem o frágil menino da robusta mulher. Desde e então, chorava muito, não adiantava remédio, foi até em benzedeira. Então veio a Pelegrina, sua sogra. O Candinho já tinha uns 8 meses, e percebeu que o pezinho do menino não assentava bem – ele tinha descolado o quadril, naquele tombo, e daí ficaria com uma das pernas menor, o resto da vida. Uma vez o Candinho telefonou do Rio, consultou a mãe, iria operar a perna com o professor Miguel Couto, ficaria bom. – “Aí eu disse: Candinho, você sente alguma dor?” – “Não”. – “Então deixa assim mesmo”. E ele deixou. D Dominga nada esquece. 

Agora, ela está contando que Candinho pôs óculos quando já morava no Rio, após uma conjuntivite, era muito pouco míope. E era surdo nada, até que escutava muito bem, “só às vezes fingia que não ouvia, ficava pintando, sem ligar pra ninguém pra não interromper o trabalho”.

– Quando ele voltava a Brodósqui, o que fazia? 

– O Candinho viajava muito, trazia chalés da Itália pra mim, cachimbos pro João Baptista, lenços de Paris, sempre uma lembrança de suas viagens. E sempre escrevia, estivesse onde estivesse. Em Brodósqui ele vinha com a sua mulher Maria e o filhinho João Cândido, e trabalhava... Mas também gostava de conversar com os velhos amigos, ficava contando prosa até meia noite, uma hora... Então a Tata ou o João, ou alguém, pegava uma galinha, outros compravam salaminho, queijo e pão quente e eu fazia uma canja, que todo mundo tomava, Candinho conversando sempre, até clarear o dia... Ele gostava também de perguntar coisas das fazendas, do pessoal antigo... Mas tinha dias, era mais raro, que ele estava tristonho, ficava embutido, não queria ver ninguém, ficava o dia todo limpando pincéis, ou alguma ferramenta enferrujada... Aquele dia, já se sabia, não tinha canja pra ninguém. 

D. Dominga tomou um gole de água, volta a lembrar-se do Candinho criança, “menino esperto, encrenqueiro, ranheta, muito inteligente”, repete. Ele fazia umas espadas de pau, lutava com elas, comandando os moleques. Dava palpite no bicho, os mais velhos pediam, e acertava quase sempre. Quando tinha 9 anos fez um retrato de Carlos Gomes. Ele pintava as cadeiras do Baptista (o pai tinha fábrica de cadeiras) com uma facilidade espantosa, em poucos minutos. Quando queria ir a Jardinópolis, então, pintava e empalhava cadeiras como um foguete. Na vizinha cidade, o Candinho descobriu uns ceramistas, que vendiam uma moringuinhas a um tostão casa. O Candinho comprava uma porção, a gente voltava de jardineira – ele gostava – e em Brodósqui ele pintava cada moringuinha com casinhas, bichos, etc. – e depois vendia – a 10 tostões casa “pra vizinhança”.

– A senhora ia muito ao Rio, visitá-lo? 

– Ia muitas vezes e eu gostava muito, ele também... O Candinho esfregava as mãos quando eu chegava, lá na Rua Cosme Velho, no Bairro das Laranjeiras... Em Brodósqui, ele começou umas pinturas modernas, que eu não gostava, as cores eram muito escuras... Ele me disse que terminava no Rio... Quando eu cheguei, achei tudo feio, uma droga, mas o Candinho nem se importou, me mostrou tudo entusiasmado... Acho que é essa “Série Bíblica”... Aí veio um figurão do governo, aquele tal, ministro Capanema, não tenho certeza, foi ver as obras com o Candinho... A mulher desse homem era linda, ficou-me especulando o tempo todo... Quando saíram, ele disse: – “Candinho, gostei muito, guarde tudo, amanhã cedo, lá pras 11 horas, venho dar a resposta, acho que o Governo compra tudo” ... Não demorou muito veio aquele jornalista que morreu, um que vinha sempre de madrugada ou em horas esquisitas, o Chateaubriant. Foi entrando, foi vendo tudo, foi-se entusiasmado, elogiando, elogiando aquelas figuras comas lágrimas grandes caindo das pessoas, e afinal disse: “Candinho, fico com tudo”. O Candinho estava contente, me disse: – “Tá vendo, tá vendo, mamãe?” Eu sei que no dia seguinte, veio aquele figurão do Governo, de novo, quando sobe que o Candinho tinha vendido as obras, ficou bravo, muito sentido... Mas o Candinho agradou ele e depois não aconteceu nada... O Candinho sempre me mostrava tudo o que pintava, eu não entendia muito, mas só gostava quando ele fazia pinturas alegres... Tem aquela, acho que é o “Tiradentes”, não gosto, é muito cortadinha... 

D. Dominga quase enxuga uma lágrima, – mais que o filho, o mito, o Candinho foi a grande chama de sua vida. “O Candinho nunca me deixou falar nada, sempre foi cuidadoso, bom filho, bom pai, bom irmão, bom esposo”... Hoje que a sustenta é o José, uma espécie de “gerente” dos Portinari desde a morte do mano famoso. O governo Abreu Sodré, por sugestão do secretário Orlando Zancaner e dos assessores culturais Almeida Salles e Delmiro Gonçalves, comprou as obras e a casa dos Portinari em Brodósqui, criando ali um museu. Hoje, eles vivem seguros, com parte desse dinheiro aplicado.

Meninos brincando


– E o talento artístico do Candinho, alguém da família puxou? 

Sim. D. Dominga vai contando, ela acompanha a vida, um a um, dos filhos, noras, genros e bisnetos, oitenta ao todo. Tem a Marysia, filha da Julieta, que é boa pintora, mas não a visita muito. Temo Luiz, irmão do Candinho, diretor do Museu de Brodósqui, é mais escultor, mas suas pinturas são elogiadas. Tem o João Luiz, filho do Oswaldo, com16 anos, é um estudante com grande futuro. Pintou pra nona uma igreja e umas casinhas do interior. Ela estimula o rapaz, encomendou novas pinturas, com mais vermelhos, mais cores alegres. Tem a Maria Helena, neta do Paulinho, com 17 anos, está começando a pintar. E tem também o Luiz Roberto, filho do Luiz, moço “tão inteligente que até dá raiva”. Sabe filosofia, alemão, até ensina seus professores. Esse d. Dominga faz questão que complete os estudos na Europa. 

Tata interrompe, diz que d. Dominga, quando menina, tirou o primeiro lugar nos estudos em Campagnari, onde nasceu. Sua mãe era rica e tinha fábricas, uma educação esmerada. Sua vinda ao Brasil, com os filhos, se deve a um enorme equívoco – briga em família – nunca deveriam ter sido atirados na roça, num lugar rude e inexplorado, onde até fome e miséria eles passaram. D. Dominga conservou-se fiel à língua materna, não escreve o português, mas, desde os 60 anos, aprendeu a ler. O pintor italiano que mora em Franca, Coriolato, pintou a igreja do Distrito de Bassano, onde morou d. Dominga, e deu o quadro de presente há pouco tempo a ela. A velha senhora está agradecida com a lembrança. A tela é das poucas que orna o apartamento. 

D. Dominga aperta os olhos, escuta tudo, atenta, gosta de falar. Fala da mulher do Candinho, Maria, fala do filho pintor, João Cândido, diretor do departamento de Física Nuclear da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. João Cândido é casado com Mirabel e tem dois filhos, Denise e João. “Quando eu vou ao Rio, vejo todos eles, os netinhos são levados, infernais, adoro eles... O João parece um ratinho... O Candinho adorava a Denise, que conheceu até seus dois anos só, antes de morrer... E parece que eu vejo o Candinho também no Rio, naquela alegria, naquela festa”. Terna e esperançosa, coloquial e severa, as palavras francas de católica praticante e devota de Santo Antônio, D. Dominga vai confessando: 

– O Oswaldo eu já escutei chamar-me duas vezes, ouvi a sua voz, era ele, o Candinho não... A Tata diz que já recebeu – essas coisas de espiritismo – dois “passes” do Candinho, ele mandou dizer que está bem onde está e que é para o Luiz, o Lói, pintar bastante, que ele estará junto dele para orientar... Às vezes tenho a impressão de ver mesmo que o Candinho está vivo entre nós. Chego até a falar com ele... É, mas o nosso lugar verdadeiro é onde estão eles... Deus é que sabe.

Reportagem publicada originalmente no jornal "A Tribuna", de Santos, em 20/2/72. 


Ensaio para minha Denise
No seu um e meio aniversário 


Senhor Tua branca espada não deixará 
Que penetrem em meu pequeno 
Coração: o egoísmo, a vaidade, a 
Desconfiança e os males 
A luz refletida de 
Tuas coisas me iluminará na estrada real 
Distanciando-me da treva 
Ao lado dos outros nas lutas 
Seja eu areia macia que não incomoda 
Que meu olhar atravesse o opaco e perceba 
A erva de Deus não a esmagando 
Sob meus pés. 
Dai-me muito amor. 
Eu o distribuirei 
Nas filas intermináveis 
Se esta prece ouvires forte serei 
E diariamente a farei 
Meditando-a com meus 
Atos de cada instante 
Caminharei iluminada, sem me 
Perder na escuridão. 
                                                                                    Amém. 

Paris, 6, nov. 961. 
Para minha Denise, com muita saudade e todo o amor do Vovô Candinho.

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