terça-feira, 23 de dezembro de 2014

TARSILA


Para Deus nada é impossível. Ainda espero andar com aparelho ou sem, algum dia – Tarsila do Amaral, a primeira dama da pintura brasileira (Celso Kinjô), está sentada em sua cama, no apartamento onde reside, no bairro de Higienópolis. Há seis anos teve um desvio na coluna e desde então leva uma vida reclusa, assistida por sua fiel enfermeira-secretária, d. Anete. O especialista Roberto Melaragno tirou 16 novas radiografias e acha Tarsila plenamente recuperável. 

Sou uma otimista e tenho muita fé: ainda quero ver a sala Tarsila do Palácio Boa Vista, em Campos do Jordão, que reúne minhas melhores obras. Ou assistir a um concerto de minha melhor amiga, Guiomar Novaes, só que agora ela não tem mais aquela cara bem brasileira, parece uma alemãzinha...

O Mamoeiro


Esse apartamento é seu? 
Sim, comprei-o há alguns anos e nele espero chegar aos 100... 

Não perguntamos a idade de Tarsila. 
“Artista não tem idade” disse ela recentemente a Carlos Lacerda, que a entrevistou para a “Manchete”. Mas informa que sua mãe viveu até aos 82 anos e seu pai até aos 94. 

Tarsila, como é o seu dia? 
Acordo geralmente pelas sete horas, quando não tenho insônia. Esta noite tive uma brava, fiquei contando os carneirinhos pulando cerca... 400... Mais 400... Mais 400... Depois dormi. Tomo café com leite, frutas e iogurte. Depois o espanhol Manuel Fernandes Cravijo me faz massagens e obriga-me a uma severa ginástica, durante 90 minutos. Então descanso, leio as novidades no “Estadão”, principalmente na secção de artes... E aguardo o almoço. 

Come bem? 
Não sou uma comilona, mas adoro os pratos brasileiros. Arroz, feijão, miolo todos os dias – para conservar a memória! – frutas e legumes, e, claro, os doces caipiras, preparados à antiga: de cidra, de marmelo, de laranja. Cresci numa fazenda e não esqueço o paladar típico de nossos quitutes, É verdade que vivi na França muitos anos, e também adoro a cozinha francesa, são repletos de pratos sensacionais e com seus afamados temperos... Mas, meu prato predileto, é d. Anete quem faz, bacalhau ao leite de coco... Ah, se Oswald provasse esse prato... pedia minha secretária em casamento... 

Retrato de Mário de Andrade


D. Anete, conte como a descobriu...
D. Anete é uma figura... Ela é Anete Biondi Mendes, seu marido trabalhava na USELPA, morreu. Foi a preta Libânia, que trabalhou com escava numa das fazendas de meu pai, quem me a indicou. Veio para cá para ficar 10 dias, já está 5 anos e vai comigo até os 100 anos também... E ultimamente deu para pintar, umas coisas lindas, bem brasileiras... Ela é além de tudo minha confidente, conto para d. Anete minhas recordações de infância, aventuras na fazenda, que foram os melhores anos de minha vida... E as minhas lembranças de Paris... Fora ela, tenho aqui no apartamento a Alcinda, minha cozinheira portuguesa e a Clotilde, ajudante de enfermagem, duas ótimas pessoas também. 

Visitas, muitas? 
Tenho muitos amigos e amigas, mas quem vem cá diariamente, bater um papo e saber da tia pintora, é minha sobrinha Helena Amaral Galvão Bueno... O Nonê também costuma me visitar, tão gentil, sempre. Agora ele me disse que tem uma aluna que pinta igualzinho a mim. Disse a ele – Mande a jovem prosseguir... Pode me copiar... Já os críticos empregam o termo “tarsilismo”... Ótimo. 

Maternidade

Tarsila gosta de conversar. Pronuncia as palavras com correção incrível, assentando os esses e costuma corrigir os erros eventuais de interlocutores. Fala também um francês perfeito (foi professora de francês). À sua cabeceira, dois dicionários – um brasileiro e o Petit Larousse. 

Gosto de ler dicionários, aprender coisas novas... Em Paris, passava por francesa, nascida lá. São entendo como é que muitas pessoas não conseguem falar corretamente, até hoje, Chopin, Beethoven, Mozart, Debussy... uma lástima. 

Ela acabava de citar seus clássicos preferidos. De música modera, quase nada. Diariamente, depois do almoço, escuta dois programas de música erudita, um após outro, das Rádios Eldorado e Cultura. Reconhece, em qualquer momento da execução, qualquer autor clássico famoso.

- A que horas, e, como pinta? 
À tarde, como está vendo, com tela e palheta colocadas junto à minha cama. Pinto os temas caipiras de sempre, folclóricos, populares, recordações da infância e da fazenda... O colorido autêntico do nosso Brasil... Nossas árvores, nossos animais... Nossos céus... Nossas casinhas do interior... E também desenho sempre, principalmente bichos. Bichos fantásticos, desde a Antropofagia gosto deles. Bichos de seis pernas, duas na frente, duas atrás, duas no meio... Os pincéis dão de pelo de marta, trazidos de Paris pelo meu amigo Bielwski; e as tintas que uso, são estrangeiras também, Lefranc. 

Tarsila está terminando um óleo de tamanho médio, para apresentar na Galeria Collectio, duante o lançamento deseu álbum de gravuras e desenhos. Mônica Almeida, ex-monitora da Bienal, dirige a galeria especializada em leilões de arte e já chega com alguns álbuns prontos. Tarsila gosta e assina cada desenho com um T. Chega outro amigo de sempre, bem falante, o carioca Carlos Alberto bastos. Ele recorta tudo que os jornais de S. Paulo e Rio dizem da, sempre, “Caipirinha vestida por Poiret” (Oswald de Andrade). À noite, depois de um café com leite e bolachas, Tarsila vê televisão. À sua volta no pequeno dormitório, pelas paredes, os retratos dos familiares, de sua mãe Lídia, do pai José Estanislau, da filha Dulce, do tio Milton, uma Árvore da Vida, presente da consulesa de Israel, um “retrato” de Jesus, o móbile com pássaros num canto, as rosas vermelhas na mesinha, os dois dicionários, o “Golfinho de Ouro” do Museu da Imagem e do Som, o vidro de perfume francês Ma Griffe, a água de colônia alemã, 4711. Duas cadeiras e o armário grande, “tem tanto mistério aí dentro que nem quero abrir”. Tarsila é uma otimista alegre, diz sem nostalgia: 

Meus planos futuros? Nenhum especial. Viver a minha arte. Escutar música. Recordar minha infância. Manter minha fé. 

É d. Anete que vem, agora, servir um cafezinho gostoso da região de Indaiatuba, onde Tarsila passou a infância, feliz, numa das vinte e duas fazendas de seu pai. 

Cityscape

OPINIÕES SOBRE GENTE & COISAS 

Durante a conversa com Tarsila, a nossa maior pintora estendeu algumas  opiniões sobre gente & coisas. Algumas delas:

Trabalho – Vivo ainda dele e de alguma renda; meus quadros vendo diretamente aos interessados, não tenho contrato com galerias; 

Flexor e Genaro – Senti demais a morte de ambos; quando fui jornalista dos “Diários”, escrevi um artigo inteiro sobre a boa arte de Flexor. 

Graciano – Fiquei contente com a ida do Clóvis para a direção da Pinacoteca, uma escolha acertada do Paulo Bomfim; já dirigi a Pinacoteca e sei de sua importância no campo cultural de São Paulo. 

Chico Xavier – Uma criatura extraordinária, com ele tenho uma correspondência fraterna e afetiva desde muitos anos; suas cartas são confortadoras e ele me manda também flores de seu cultivo em Minas Gerais; Chico comenta meus quadros, onde recentemente me disse uma coisa bonita “quando Tarsila pinta, ela ora em cores”... 

Arte brasileira – Não tenho visto com frequência, parece que os desenhos antigos eram melhores; também não gosto do uso do acrílico, não tenho confiança em certos modernismos. Só gosto mesmo de arte brasileira, nas cores e nos temas, e isso não tenho visto. Talvez por não ir a exposições. A vida – Adoro a vida, sou fã dela.

A vida - Adoro a vida, sou fã dela. 

Religião - Sou católica espiritualista, não deixei a Igreja; até oro em latim. 

O amor – O fulcro, a base de tudo na vida.

Favela


REMINISCÊNCIAS
Embora eu estivesse na Europa, eu acho que participei da Semana de 22 através da carta que a Anita Malfatti me mandou, contando detalhes. Por essa carta fiquei sabendo da grosseria do Monteiro Lobato, quando menosprezou toda a obra de Anita. Muito reacionário, pois ele se julgava pintor.
Eu comecei a trabalhar em São Paulo sob a direção de Pedro Alexandrino. Depois fui estudar na França com um grande professor que gostava muito da minha pintura. Ele chamava a atenção dos alunos para o que eu fazia. Ele gostava muito do meu trabalho e dizia para os outro “Voyez ce qu’elle fait, comme c’estpuissant!” 
Eu quis fazer um quadro que assustasse o Oswald, uma coisa que ele não esperava. Aí é que vamos chegar no “Aba-Puru”. O “Aba-Puru” era uma figura monstruosa, a cabecinha, o bracinho fino, aquelas pernas compridas, enormes e junto tinha um cacto que dava a impressão de um sol como se fosse também uma flor. Oswald ficou assustadíssimo e perguntou: “Mas o que é isso? Que coisa extraordinária!” Ele telefonou para o Raul Bopp: “Venha imediatamente aqui que é pra você ver uma coisa!” Bopp lá no meu ateliê na rua Barão de Piracicaba, assustou-se também. Oswald disse: “Isso é como fosse um selvagem, uma coisa do mato”, e o Bopp concordou. Eu quis dar um nome selvagem também ao quadro e dei Aba-Poru palavras que encontrei no dicionário de Montoia, da língua dos índios. Quer dizer antropófago. 

 Reportagem publicada originalmente no jornal "A Tribuna", de Santos, SP, em 8-8-71.

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