Aldemir, em seu ateliê:
Sou filho de “seu” Miguel, funcionário público e de d. Raimunda, índia bugre do Quixeramobim. Aldemir chegou a São Paulo, vindo do Rio, pelas mãos de Paulo Emílio Salles Gomes, que o tinha conhecido em Fortaleza. Ambos, no Ceará, viveram o drama da “Batalha da Borracha”, e Aldemir despontava como jovem artista. Ele viu a capital paulista monumental, de dentro de seu terninho de zuarte, e soltou a exclamação nordestina: “Eta cidade retada da peste”.
Depois, com seu gênio expansivo, seu talento de desenhista e ilustrador, foi-se fazendo organizado, cresceu desmesuradamente. Hoje, já não ouve os gritos de Hermínio Sachetta, seu chefe no “Diário da Noite”, onde várias vezes dormia nas mesas de redação – que o chamava de “ratazana, ratazana”. Nem os amigos certos da Livraria Jaraguá, precisam mais lhe pagar sanduiches ou o almoço do dia. Aldemir Martins não é mais, agora, o pau-de-arara da Rua Marconi. Nem o índio, o Bugre, o Cearense, o Cabra da Peste. O artista Aldemir ganhou nome nacional e internacional e tem ateliê próprio. O senhor Aldemir Martins reside, com Cora, sua mulher, numa bela e moderna casa do Ibirapuera. Respeitado e amigo. Generoso e cavador. Falador e franco. Ágil e versátil. Alegre e disposto, Dinâmico e impetuoso. Sincero e gozador. Arguto e inteligente blagueur... Os 25 anos de S. Paulo fizeram bem ao mameluco genial. E às artes brasileiras.
O ateliê do artista, um apartamento, numa cobertura dum prédio próximo à Av. Paulista, é um caos total – e Aldemir anda ali como um peixe n’água. São ex-votos de madeira e túnicas de couro, móbiles de feira e rodas de bumba-meu-boi, cerâmica utilitária, potes e santos de barro, chifres de boi, desenhos esboçados de cangaceiros, cocares, arcos, flechas, bordunas e arte dos índios, berimbaus e armas antigas, fotos do padre Cícero, de Pelé e de sua filha Mariana, flores de papel de seda, chocalhos de diversos tipos e esculturas populares, talhas nordestinas, livretos de cordel, livros de arte, toda a coleção da História da Arte de Skira, muitos livros sobre o México e o seu Ceará.
Meu dia é violento, começa às 7 horas da manhã, quando me levanto, faço meus 10 minutos de ginástica, tomo café e pão com manteiga e entro direto no “bolo”...
Logo que chega ao ateliê, inicia uma luta a que chama pitorescamente de “debaixo de vara”. Pra começar, encontrou um bilhete de Dalva, a arrumadeira, - “seo Aldemir, eu quebrei o telefone”. O telefone não seria nada, mas o filho dela mexeu nos pincéis, derrubou cartazes, apertou os tubos de tinta pelo meio. Às nove horas, telefone consertado, ele inicia uma batalha inaudita de contatos e recados, compromissos desfeitos e assumidos, negócios fechados.
Hoje já deu sorte, assinei mais de 300 gravuras, para um álbum que fiz com o Grassman e o Rebolo, para o Bansulvest e para o meu litógrafo Otávio Pereira. Fechei contrato para projetar o obelisco de Campo Grande, Mato Grosso. Acertei fazer este cangaceiro, aqui, para o Emil Farhah, mas o velhão não veio buscar... Vai perder.
A mesa em que Aldemir trabalha tem uns dois metros, por metro e meio. Ali, há 15 anos, resolve todos os seus problemas. “Esta é a minha rainha e escrava, aqui curto sofrimentos e canto vitória”, diz ele, piscando um olho, por trás de seus meios-óculos esquisitos. Ele fala desembaraçado – não fosse ele cearense de Ingazeiras, entre Simão Velho e Barbalha, zona sertaneja do cangaço, onde reinou Senhor Padre, cangaceiro de muita fama e valentia, hoje modesto farmacêutico em Patos, Minas Gerais. Ao seu redor, tigelas de água, potes com pincéis – desde os mais simples aos refinados, franceses – tintas de procedência americana (de acrílico), fixadores, rolos de durex, hidrográficas de todos os tipos, espátulas, recortes de tons de cores, fotos diversas, convites, provas de seus últimos desenhos e gravuras. O seu cangaceiro vai surgindo no arabesco de seu traço beneditino, sinuoso e colorido, grave com seu mosquetão, do acrílico colocado diretamente sobre a tela de linho cru brasileiro. O rádio está alto, é a “Eldorado”.
Escuto essa rádio, é a única que não grita... Aqui, de papagaio, já basta eu.
Continua: almoça sempre em casa, com Cora e os filhos Pedro, de 21 anos, já universitário, e Mariana, jovem desenhista, de 13 anos, que não procura influenciar de forma alguma. “Só dou pra minha filha papel e lápis, o resto é com o seu talento”, diz Aldemir. Ele acha que desenho é como bilhete de loteria, pode dar certo e pode não dar. O importante é produzir, estudar, aperfeiçoar-se. é produzir, estudar, aperfeiçoar-se. Reage à altura quando um amigo telefona para saber os seus sucessos e acha que ele está muito comercial.
Meu chapa, estou vencendo pelas minhas próprias mãos. Não faço arte pré-fabricada nem móveis de Itatiba. Trabalho a minha arte – a arte que aprendi a fazer e a que senti que posso fazer – de sol a sol, como um carpinteiro faz a sua, como um marceneiro, como um sapateiro artesão. Meus “galos” são “concessão”? Eles são parecidos com coisas húngaras, com a arte tcheca ou com os galos do Nordeste? E minhas cores não são as cores destes brasis, que corro de ano a ano, em busca de suas influências e vivências?
Aldemir pita um cigarro de palha, hoje não pode tomar – está sob regime médico para emagrecer – um trago da pinga “Grã-fina” de Jequitinhonha que adora. Ele também gosta da “Solar”, de Santa Catarina e a cachaça cearense pura, do Vale do Araçá. Conhece pingas e charutos como poucos. Diz que o charuto brasileiro só perde para o cubano porque em Cienfuegos, na ilha do Caribe, tem a capa ideal dos charutos. Quando vai à Bahia, compra aqueles charutões de duzentos réis, no mercado, os “rabo de porco” que considera “umas das boas alegrias dos baianos”.
É o telefone, de novo. Não, não quer desenhar para uma folhinha de 72. Agora é outro amigo, anuncia a troca de Baltazar por Sarno, no Corinthians. Aldemir é corintiano, sofredor e doente. Entende de futebol, já foi dono de time em Baronesa de Macatuba, em sua terra e, para escrever o livro “Brasil, Futebol Rei”, com Araújo Neto, estudou o tema a fundo.
Pôxa, uma porcaria... Não vai adiantar nada. Concordo inteiramente com o Bretas, o Corinthians é um time medroso, tem medo até da sombra. Não sabe dar pancada, e quem dá pancada primeiro, hoje, ganha na certa...
Acha Pelé, claro, fora de série, mas não vai dar um quadro para Pelé, como propuseram. “Só se o Pelé me der a renda dum jogo dele”...
Às oito da noite, luta ganha, Aldemir volta à casa. Hoje almoçou bem, como sempre, comeu jabá, carne seca e rapadura. Vai comer pouco no jantar, não sai, “só aceito convite muito raramente, exposição é como casamento, se for a uma, tenho de ir a todas”. Prefere ficar ali, lendo os jornais do Rio e, de S. Paulo, apena o “Jornal da Tarde” (de vez em quando, desenha para o JT – futebol). Uma música, agora, vai bem, seja indiana ou africana, clássica ou popular – nesta, preferências para Chico, Caetano Veloso e Tom Zé.
Quais suas leituras atuais?
Olhe, me chamaram de mameluco, mas a melhor coisa que temos no Brasil, é o Brasil. Estou lendo de novo Euclides da Cunha, nosso maior escritor de todos os tempos. Depois dele, Saint Hilaire, Gastão Cruls, os naturalistas viajantes, gente-gente que percorreu nosso país para retratá-lo, ver a sua luta para se tornar o gigante que é hoje... A Europa já era... Meu negócio é o Brasil.
Que acha da arte brasileira?
Existe e cresce e, o que é o melhor, como na canção de Roberto Carlos, é feita genuinamente por brasileiros...
E a crítica de arte?
Essa não existe, nunca entrou um crítico de arte no meu ateliê, para me elogiar ou criticar. São como o complemento cinematográfico nacional, mal obrigatório e necessário... A nossa arte não tende a desaparecer com o universalismo atual, as técnicas de reprodução em massa, etc. Ah, ah. Mac Luhan não pega comigo. A Europa é uma tia velha, bananeira que já deu cacho, um aglomerado de nações de pequenas extensões, com línguas diferentes. O genial é o Brasil, de norte a sul, de leste a oeste, uno, grande, falando uma língua só, com suas raças formadoras caldeadas – seus índios, negros, brancos, amarelos, sua pesca e sua caça, sua macaxeira, seu jabá, seus rios, sóis e pântanos... Este país ninguém segura, mesmo.
Um mundo só não existe. Ninguém quer beber uísque japonês, comer marrom glacê do Chile e tomar vinho paraguaio... No pantanal de Mato Grosso está o renascimento do mundo... Este ano vou ao Ceará ver as bodas de prata de meu pai e minha mãe, sigo até o Camocim, que o Ceará não vende ao Piauí de jeito nenhum... Vou comer pirarucu de água salgada, o melhor prato do mundo. Não perde nem mesmo para a goiabada com queijo de vocês no Sul... Vou pagar promessa em S. Francisco do Canindé, com seus ex-votos... Vou até Juazeiro do meu “padim” Cícero. Não sou de lá, mas preciso de sua bênção... Tem mais cangaceiros meus em casas de S. Paulo do que existem realmente... Na volta, uma parada no Rio de Janeiro, uns dias na ilha particular de Giovana Bonino, comendo, caçando, pescando e tomando sol... Sim, tenho frustrações, não tocar violão... Não guiar automóvel, detesto máquinas... A sociedade ainda trata o artista como um marginal... Não gosto de vender senão a amigos ou a gente conhecida... Sei que me criticam, mas prefiro ensinar os jovens e ver as crianças criar o seu futuro... Vivo dos meus bichos, gatos cabras, aves, flores, frutos, peixes, cangaceiros, futebol, paisagens, e daí? ...A Bienal é um caos muito sério, dela tem saído grandes artistas e influência. Desculpemos suas falhas humanas... Sim, quero ver se chego até Ingazeiras, minha doce terra, lugar que a gente pra chegar tem de abrir 26 porteiras...
Aldemir está falando sério ou delirando como Antonio Conselheiro? Ele se agita na cadeira, observa e agride, opina e traduz, é doce e amargo, ri aberto e franco e se define:
Acho que continuo um mameluco inconsequente da Rua Marconi, um macaco cearense na loja de louças de S. Paulo.
Autografa agora afetuosa dedicatória para Roberta, de 4 anos, filha de Ana Maria e Pedro Luiz Toledo Piza, o livro “Histórias dos índios do Brasil”, texto de Walmir Ayala, desenhos seus. São 11 horas e Aldemir – desenhista, gravador, ceramista, ilustrador, copista, autor e criador de múltiplas artes – vai, pontualmente, dormir. Amanhã, talvez, seja um dia mais folgado – então, quem sabe, ele possa dar um pulo ao Pepe’s, ver os amigos, o Arnaldo Pedroso d’Horta, o Delmiro, o Chico Almeida Salles, o Clóvis Graciano.
5/12/1971.
Desde os artistas do tempo de Nassau a paisagem brasileira não encontrou um amigo nas artes plásticas como Aldemir Martins nessa série de quadros expostos em A GALERIA, aonde ele retratou os encantos da nossa terra com o seu traço desenhista que trouxe, agora, para a tela.
Tratou a paisagem brasileira com uma síntese que é muito própria do nosso Aldemir.
Escrevo este artigo diante de uma paisagem de Brodosqui do nosso Candinho.
Há nessa exposição quadros que eu trago gravados e parecem tirados da minha memória. São as serras da minha terra que Aldemir não conhece. Eu vejo nessa sala o perfil de muitos recantos que ele me trouxe como presente.
Esse cearense sabe estar nas paisagens de cada um de nós. Como um menino criado no nordeste, sabe bulir na casa de marimbondo que trazemos conosco. E vem Aldemir e sacode o galho...
Cada um que veio ver esses trabalhos encontrou uma paisagem que lhe pertence.
Está aí uma exposição que deveria percorrer todo o Brasil a fim de que todo mundo pudesse ver como o artista trata a paisagem que vemos todos os dias. Ele traz a cada um, sua paisagem familiar, como um mágico que é.
Essa mostra deveria ser feita num circo e seu autor ser apresentado como um mágico dos nossos tempos. É assim que ele tirou alguma coisa de nós todos para realizar sua exposição.
Odorico Tavares. Catálogo comemorativo dos 50 anos do artista.
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