quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

FLÁVIO DE CARVALHO

Flávio de Carvalho (1899-1973)

O GENIAL FLÁVIO DE CARVALHO 

– Estou trocando o gado holandês de minha fazenda em Valinhos pelo gado gír. Este é gado de corte e tem a vantagem de dar leite. A plantação de eucalipto vai bem, as de milho, arroz e feijão dão para o gasto meu e dos colonos. A fazenda tem 100 alqueires. Quero lotear uns 40, nas o Governo não aprova. O “módulo” da região de Campinas não me serve, é feito por computadores... máquinas imbecis. Está tudo errado. Resultado: a fazenda é deficitária. Sustento-a com a minha pintura e o meu desenho. 
Poltrona Flávio de Carvalho

Flávio de Rezende Carvalho, 71 anos, alto e forte, corado de sol, “gentleman” e caipirão, estaciona sua camionete DKW à frente do prédio nº 168 ad Av. Ipiranga, junto ao Hilton Hotel e Teatro de Arena. Ali, no 16º andar, num amplo apartamento – lambri pelas paredes, teto rugoso bem vermelho, móveis funcionais, mesa laboriosamente arredondada – Flávio mora quando vem à Capital, de terças às quintas-feiras. Os outros dias da semana fica na Fazenda Capuava. Vive solitariamente, faz comprar, prepara suas refeições, providencia em dia, absolutamente em dia, “esses malditos pagamentos, tantos impostos e taxas, essas coisas tolas, sabe como é”. 

Mulher Sentada
– A fazenda que recebi de herança tinha 25 alqueires. Aumentei-os para mais de 100. Controlo também minha indústria de materiais de construção. Fabrico tijolos de 6 e 8 furos, lajes para forro, ladrilhos, vigas-elementos, perfis e brisoleils. Tudo trabalho de uns 20 operários, cuja folha de pagamento chega a uns 6 mil cruzeiros por mês. Mas a indústria não vai mal. O “nissei” José Mori administra bem, mas os gastos sempre suplantam a receita, se a coisa não endireitar fecho essa porcaria, vou cuidar mesmo de coisas mais interessantes, meus estudos e pesquisas de caráter social e antropológico – diz Flávio, a esta altura já dentro de um vistoso robe-de chambre vermelho axadrezado. 


É uma terça-feira. Ele acordou cedo, às 6 horas. Deita-se todos os dias exatamente à meia-noite. Esperou o toque da igreja da Consolação, às 9 horas. Desceu para a rua, iniciou então um “trottoir” bancário, por repartições, as lojas, pagamentos e comprar, entrega de projetos e recebimentos. Às 11 horas está de volta, jovial, pinta ou desenha. Vera, sua modelo atual, não veio hoje, nem é dia de Doralice, a empregada que, uma vez por semana, faz toda a limpeza das salas e de seus pertences. 

Desenho à nanquim

– Tenho material de pintura e desenho também em Valinhos, mas só trabalho aqui – e Flávio pega o pincel, joga a tinta em traços seguros e conscientes sobre a tela. Está surgindo o retrato a óleo do inglês Philips. Ele é psicanalista. De passagem por São Paulo, fez a encomenda e já posou uma vez. 

– É bom porque ele paga em dólares, mas francamente, hoje, do jeito que vão as coisas, prefiro o nosso cruzeiro valorizado mesmo. 

Flávio ri, e sua voz é cavernosa, os cabelos não são muitos e já é bastante grisalho. Há dias ele terminou o retrato de uma amiga, Maria Lúcia Medeiros e suas duas filhas, cobrando Cr$ 5 mil. É considerado um dos maiores desenhistas do país, vencedor de prêmios nacionais e internacionais e grande porte. 

– Pode escrever, tenho sido sistematicamente recusado em concursos de arquitetura e outros, oficiais. Essa gente que julga concorrências não gosta de mim, muitas vezes nem devolve meus projetos. 

O almoço, também, ele mesmo preparou – juntou batatas, cebola, cenoura, couve-flor, nabo e beterraba, cozinhou tudo durante 40 minutos na panela de pressão. A massa vai toda para o liquidificador. Flávio faz a comida em dose dupla, guarda a sobra na geladeira e amanhã come o mesmo prato. A não ser que venha a Vera – então o almoço é melhor. Deixou de vez o álcool. Às vezes toma um vinho branco ou uma cervejinha. “Nas festas ou coquetéis, só finjo que bebo”, e Flávio dá uma risada marota. 
New Look de Verão ( 1956)

A um canto do apartamento, o piano preto de cauda, francês, para os amigos toarem quando recepciona, mas não se lembra da última vez que isso aconteceu. À tarde, volta a trabalhar, com luz natural, filtrada através de persianas. Tem pintado a óleo, guache, aquarela ou uma tinta deluz preta, americana, presente do Cônsul Alan Fischer. Lá para as 5 horas novamente o rumo da cidade “ver os negócios, procurar os terrenos que comprei e não sei onde estão, nessa correria incrível para todo o lado, ganhando daqui, perdendo dali, virando detetive”, faz a blague, e já atende a uma jovem ao telefone. Sim, gosta de incentivar os jovens valores, não quer destacar nomes. 

– Quais os seus projetos atuais? 

Flávio de Carvalho desfilando por São Paulo com o New Look

– Editar dois livros, já encomendados. Um será pela Martins, trata-se da Dialética da Moda e suas mutações através da História e outro, versará sobre a origem animal de Deus, com suas três partes: a fome, o medo, o sexo, molas propulsoras da humanidade. 

Flávio conta que no preparo dos dois ensaios lê e estuda, nas horas vagas, em São Paulo e na fazenda. Atualmente, consulta, anota e pesquisa obras com “Psicologia Médica”, do alemão Kerchmer; “O Ramo de Ouro”, do etnógrafo britânico sir James Fazer e “A Descendência do Homem”, de Darwin – sujeito formidável, tão citado e pouco lido; uma obra do polonês Malinowski, e ainda, e sempre, Freud. Não escuta rádio, vê os noticiosos de televisão, à noite, interessando-se pelas informações nacionais e de todo o mundo. Não tem nenhum interesse em ler jornais. 

– Que acha da arte brasileira atual? 

– A pintura, o desenho, a gravura e a nossa arquitetura passa por destacado estágio. Estão num alto nível. 

Três Mulheres

 – A que atribui essa ascensão? 

 – Aos movimentos de arte, Bienal, ao interesse da juventude por tudo que represente cultura e arte. Há 20, 30 anos atrás nada disso existia. 

– E a arte cibernética, a arte cinética? 

– Estão muito no começo ainda, essas artes programadas e manipuladas por máquinas. Mas, de um modo geral, o caminho da arte do futuro é esse, como do urbanismo, da vida das grandes cidades, tudo enfim. 

Flávio diz que as cidades sofrerão mudanças radicais, onde os indivíduos serão especializados e um homem humanista “um objeto raro”; os especialistas, sem visão de conjunto, e com “deplorável formação cultural”, tudo um caos, um horror. No futuro do Brasil, como nação, ele acredita, o Governo vai firme. Saneou o mercado financeiro. A cidade de São Paulo, “muralha de alvenaria, fria, concreta, poluída e desumana”, pode melhorar, face às grandes medidas planejadas e anunciadas pelo atual prefeito. “Mas para deixar de ser moribunda, precisa respirar, precisa de áreas verdes, precisa de urbanismo livre, de arquitetura consciente”, diz. 

Flávio fala com desenvoltura, sua cultura é ampla e universal. Uma vez o chamaram de louco – e ele contesta. – Nunca me considerei louco, alguns é que acham. Revolucionário? Isso, talvez. Gosta do termo. E genial? Bom, isso quem diz é o Tavares de Miranda, “não sei se sou gênio ou não”. 

Homenagem a Federico Garcia Lorca (restaurado)

Faz tempo – uns 20 anos – que o bisneto do Barão de Cajuru (herói da Guerra do Paraguai), não joga tênis. Ele recorda seus jogos de tênis com o rei Dom Manuel II, em Portugal, e com Santos Dumont em São Paulo. Deixou o “hobby”. Ao cinema não vai mais. Seus amigos mais chegados são Warchavchik, Geraldo Ferraz, Luiz Martins, Sérgio Buarque de Holanda, o pintor Toledo, de Campinas, a cantora lírica Maria Karesca, o maestro Eleazar de Carvalho, Delmiro Gonçalves, Almeida Salles, Benedito Paretto, Burle-Marx, Graciano, Bardi, Di Cavalcanti. Sobre a mesa revista de arte da Polônia, esboços desenhos, projetos de arquitetura, milhares de fotos, organizadas por assunto, em pastas especiais, de toda sua obra. Engenheiro civil, arquiteto, escritor, pintor, desenhista maior. Informa que em 72 prepararam a retrospectiva completa de sua obra. Uma obra que, ele sabe, “não vai para o fundo do porão” (Sérgio Milliet). 

Está no pequeno terraço, olha o horizonte da cidade grande e perdida, o telefone toca, mas Flávio não atende. Aperta os olhos, as sobrancelhas são espessas, negras. 


– Fui chamado por Le Corbusier de “revolutionnaire romantique”, por Assis Chateaubriand de “pintor maldito” e Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir exclamam frente à minha pintura: “Ca c’est quelque chose” 

 E mais: 

Sérgio Milliet: “Não irá para o porão dos museus”; 

O professor Bardi: “...é um ponto de partida”; 

José Geraldo Vieira: “...um dos maiores da época atual... o reformador museológico do retrato...” ;

Quirino as Silva: “...a impostura não conseguiu encontrar abrigo na sua obra...” 

E o poeta Antônio Rangel Bandeira se exprime: “...na Série Trágica (a mãe morrendo) um dos maiores momentos da arte brasileira e sem dúvida um das mais expressivas manifestações do desenho contemporâneo; 

Michel Simon em Paris: “...sa peinture respire la même imprudence de ses paroles, Soutine, Terechkowich, Van Gogh, dans la periode des soleils dements. Dans ses portraits il ne cesse de jouer avec le feu... Les dessins de Flavio brûlent comme ses portraits” ; 

Geraldo Ferraz: “... não sei por que, mas Flávio de Carvalhjo me lembra por tudo o herói de Nietzsche” 
Lúcio Costa - Flávio de Carvalho - Gregori Warchavchick

Benedito Paretto: “você é o maior desenhista vivo das Américas”; 

Enrico Schaeffer: “ ...maior desenhista do país, a quem tato deve a geração atual ao seu trabalho pioneiro”; 

Enrico Schaeffer: “... maior desenhista do país, a quem tanto deve a geração atual ao seu trabalho pioneiro”. 

Delmiro Gonçalves: “... Flávio de Carvalho passou a fazer parte do folclore urbano de São Paulo”; 

Francisco de Almeida Salles: “A escala de sua obra é internacional e por ser vasta e complexa ainda não permitiu o necessário recuo dos contemporâneos para contemplá-la na sua unidade e no seu fabuloso poder libertário”; 

Arnaldo Pedroso d’Horta: “Vá ser Flávio de Carvalho”; 

Paulo Dantas: “... seu mundo é colorido e sanguíneo, carregado de uma danação sagrada”; 

Newton Freitas: “Trae de los pajaros, el calor de las plumas, y de las nubles, se las puede alcanzar, la ligeireza humeda. De la carne, aun de la materna, arranca el pensamiento que transforma a sua pintura... y de la experiencia viva...” 

Rosto de Glória

Eduardo Mercier: “A participação de Flávio de Carvalho no esforço de revelar essa nova fisionomia plástica do homem de hoje não pode ser subestimada. Ela manifesta-se em suas dimensões quase desumana, trágica infausta, alienada, isolada num ambiente unidimensional da nossa sociedade tecnológica; 

Luciano Budigna (Roma): “Le sue opere adquistano d’intensità e consentono um approfondimento estetico da vero emozionante...”; 

Guido Puccio: “...retrato de Ungaretti: uma obra notável!” 

Paulo Mendes de Almeida: “Fláviusque tandem abutere patientia nostra; 

Governador Abreu Sodré: “Flávio é um louco divino”; 

Luiz Martins: “... esse engenheiro civil é um poeta, um poeta que, ao que me consta, nunca escreveu versos”; 

Retrato de Mário de Andrade

Gilberto Freyre: “Flávio de Carvalho arregala os olhos de doido, para ver o mundo. Por isso vê tata coisa que o adulto todo sofisticado não vê”;

Gilda Marinho (Rio Grande do Sul): “...é o Jean Cocteau brasileiro...”; 

Fernando Corona: “Os retratos que pinta são como radiografias de linhas que se encontram no infinito”; 

Elcio Calage: “Ele, na sua atitude de combate a toda acomodação, talvez uma porta para... quem sabe?”; 

Vera Zilio: “Todo o percurso de sua surpreendente trajetória pela arte é impossível de até mesmo sintetizar”. 

E finaliza Flávio de Carvalho: 
– Não pretendo mudar muito – conclui Flávio de Carvalho. Estou no fim da vida... Continuarei assim, pintando, desenhando, escrevendo, estudando... O que depender de mim será feito sempre com cuidado e arrojo... De juris é que não quero depender, não gostam de minha obra... Quero voltar a receber gente, os amigos fraternos... Ainda vou ver o nosso Brasil ser o gigante do século XX 26/12/71

Flávio de Carvalho - Auto retrato

Flávio de Rezende Carvalho é engenheiro civil, arquiteto, escritor e membro do Instituto de Engenharia de São Paulo e do Instituto dos Arquitetos do Brasil. Em quadros na Galeria de Arte Moderna de Roma; Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, Museu de Arte Moderna de Paris, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Museu de Arte Moderna de São Paulo, Museu de Arte Moderna da Bahia, Biblioteca Municipal de São Paulo, Museu de Arte Contemporânea de São Paulo (USP), Museu de Arte Brasileira de São Paulo (FAAP), Museu de Arte de Campos do Jordão, Museu Pushkin de Belas Artes de Moscou, Pinacoteca de Manaus, Museu Paretto de Socorro, SP. 

Premiado com Medalha de Ouro na IV Bienal de São Paulo para Cenários do Bailado “A Cangaceira”; Grande Medalha de Ouro do XV Salão Paulista de Arte Moderna, Sala Especial na VII Bienal de São Paulo; Sala Especial Permanente no Museu de Arte Brasileira da FAAP; Grande Prêmio Internacional na IX Bienal de São Paulo; Sala Especial na XXI Bienal de São Paulo, 1971. 

É autor das seguintes obras: “Experiências Nº 2”, em 1931, uma das primeiras obras sobre psicologia das multidões e realizada sobre uma procissão de Corpus Christi, quando o autor quase foi linchado. “Os ossos do mundo”, 1936, contendo uma nova teoria da História. “L’aspect psichologique et morbide de l’Arte Moderne”, Pari, 1937; “O Bailado do Deus Morto”, um bailado declamado e cantado, que provocou o fechamento pela polícia do seu Teatro de Experiência, em 1933; “Dialética da Moda”, publicado no Diário de São Paulo, em 1956; “Notas para a Reconstrução de um Mundo Perdido”, publicado no Diário de São Paulo, em 1957-58 e apresentado em t esse, à convite, no Simpósio “O Homem e a Civilização”, na Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia, EUA, em janeiro de 1962, “A Origem Animal de Deus, 1967, etc... e inúmeros artigos na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro.

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