Gentil homem, onírico e folclórico
Lula Cardoso Ayres (1910 - 1987) |
Continuo pintando os temas que tenho guardados na imaginação. Nunca fui pintor totalmente abstrato. Os temas figurativos-oníricos estão sempre presentes nas minhas criações artística. Felizmente minha produção artística tem tido a melhor aceitação pelos colecionadores de todo o Brasil... Hoje em dia me dedico unicamente à minha pintura e passo praticamente todo o dia no ateliê. Atualmente o Recife está se tornando um ótimo mercado para trabalhos artísticos.
Lula come devagar e pouco, num velho restaurante de suas andanças na Paulicéia, o “Le Casserole”. Deixou há pouco a companhia de Renato Magalhães Gouveia, seu procurador em S. Paulo, e dos velhos amigos Francisco Luís de Almeida Salles, Diná e Liz Lopes Coelho, Dulce e José Vasconcellos. Está, como sempre, afável, lhano, expansivo, comunicativo, deslumbrado diante da vida e seduzido pelas boas idéias. Curioso, participante, educado, fiel, um perfeito gentil-homem pernambucano. O ambiente está agradável, Lula vê o restaurante, as barracas de flores coloridas do Largo do Arouche. Está sereno e confidente com sua voz sonora de sotaque nordestino. Recorda:
– O governador Nilo Coelho promoveu, em 1968, uma exposição individual minha no Palácio do Governo no Recife. No mesmo ano, convidado pelo governador Luís Viana Filho, realize outra exposição no Teatro Castro Alves, em Salvador. Além dessas exposições, participei da primeira, da segunda e da terceira Bienal de São Paulo e até hoje já executei cerca de cem painéis e murais no Recife, em Salvador, em Santos, em São Paulo, em Alagoas e em Natal. Quadros meus fazem parte das pinacotecas do Museu de Arte de São Paulo, do Museu de Arte Moderna e da Fundação Armando Álvares Penteado de São Paulo, do Museu de Arte Modena do Rio de Janeiro, do Museu de Arte Moderna da Bahia e de coleções particulares em diversos Estados, dos Estados Unidos, em Londres, em Lisboa. Em Buenos Aires e, no Brasil, em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Salvador, em Belo Horizonte, em Curitiba e no Recife.
Lula passa às recordações, de novo:
– Quando morava na usina de açúcar que foi de meu pai, me acostumei a acordar muito cedo. Continuo quase sempre madrugador e começo a pintar, todos os dias, muito cedo. Pinto praticamente durante todo o dia. Desde menino tenho tendência a engordar, sempre fiz regime. Almoço em casa com minha mulher e meus filhos e quando não tenho convites para jantar com amigos, faço em casa uma refeição muito leve. À noite pouco trabalho, a não ser quando tenho alguma encomenda urgente, e descanso do trabalho diurno, conversando com amigos e assistindo despreocupadamente a programas de televisão. Leio muitas coisas ligadas à arte, principalmente livros técnicos de pintura, pois continuo me preocupando muito com a chamada “cozinha de pintura”. E, durmo, geralmente cedo.
Toma dois goles de água mineral. Não tem tomado vinhos nem uísques: regime.
Obra sem título |
– No momento estou trabalhando muito na montagem dos desenhos e na limpeza dos quadros antigos para minha próxima a exposição retrospectiva. Tive a honra de ser convidado pelo ministro das Relações Exteriores, Mário Gibson Barbosa, para fazer uma grande exposição retrospectiva no Palácio Itamarati em Brasília, que deverá ocorrer em setembro próximo. Vou mostrar desenhos, projetos para cenários, projetos para murais executados, desenhos de propaganda e pintura de várias épocas. E pretendo trazer no próximo ano minha exposição retrospectiva aqui para São Paulo.
Bela e simpática como sempre, Lourdes já aponta à porta. Ela nasceu em Portugal. Casou-se mocinha (16 anos) com Lula, no Recife.
Mulher rendeira |
– Sou casado e feliz com Maria de Lourdes Silva Cardoso Ayres,r verde do meu Recife, do meu Pernambuco.
Fala com indisfarçável orgulho de seus amigos de São Paulo:
– Em 1971, ao completar 25 anos de sua primeira exposição em S. Paulo, realizada na Livraria Galeria de Barros, o Mulato, na Rua Barão de Itapetininga, meus amigos, liderados pelo ex-governador Roberto Abreu Sodré, ofereceram-me uma grande recepção, na residência do “cap” Pedro Luiz de Toledo Piza... Estiveram presentes, entre outros, Tarsila do Amaral, Warchavchik, Volpí, Rebolo, Graciano, Duke Lee, Darcy Penteado, Quissak Jr, Mario Schemberg, Luiz Martins, Di Petre, Sofia Tassinari, César Luís Pires de Melo, numa festa que muito me comoveu... Neste ano de 1972, participei em S. Paulo, como convidado especial do Governo do Estado, de várias comemorações do cinquentenário da Semana de 22, e, no Museu de Arte, a convite do Centro de Artes Novo Mundo, ao lado de Warchavchik e Oswald de Andrade Filho. Debati com estudantes, durante horas, aspectos do movimento modernista brasileiro... Ainda neste ano, exporei em Brasília, numa grande retrospectiva de minha obra, convite do Ministério das Relações Exteriores e, depois, em S. Paulo e Rio de Janeiro (cinquenta anos de pintura)... Mas isso, já em 1973.
Rainha do Maracatu |
– Atualmente a pintura brasileira está tendo magnífica aceitação, graças às promoções dos museus e galerias de arte, onde os pintores jovens têm oportunidade de aparecer, o que não acontecia com os da minha geração. Pintura acentuadamente regional ou de aspecto universal só é válida quando tem boa qualidade. As homenagens que tenho recebido dos artistas e intelectuais são os maiores estímulos para minha pintura. Lourdes, minha esposa, é a maior colaboradora das minhas atividades artísticas. Nunca me liguei a grupos, sempre fui muito independente. Nada mais desejo que ser um profissional da pintura.
– Mesmo quando auxiliava meu pai na usina de açúcar, nunca me animei a ser industrial e lá, no interior de Pernambuco, estudava e praticamente era só pintor. Desde 1944 não tenho mais ligações com empresas industriais de açúcar e atualmente minha única atividade é a pintura. Vivo unicamente de minhas atividades artística e abandonei também a atividade de professor de pintura que exerci durante 25 anos na Escola de Artes da Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente sou boêmio aposentado, vivo exclusivamente da pintura, com a felicidade de ter Lourdes ao meu lado e de estar criando meus filhos, esses dois rapazes, descendentes de uma raça de pernambucanos, herdeiros de portugueses, de rara linhagem de artistas caricaturistas da Europa – João e Luiz, que são os meus melhores quadros.
O almoço vai chegando ao fim, Lula aceita o cafezinho sem açúcar, sai lentamente, vai até o Pepe’s, bater papo com a patota.
18-65-72
Folclore 2 |
O real e o imaginário na arte de Lula Cardoso Ayres
A grande importância de Portinari é o seu desenho, uma base de estudos sobre a qual construiu a sua pintura e o grande mérito de ter sido o que abriu caminho.
A validade artística dos primeiros modernistas brasileiros foi aos poucos sendo reconhecida por intelectuais e críticos porque seus trabalhos se assentavam sobre uma infraestrutura de muito estudo, pesquisa e trabalho.
A revolução colorida da pintura descendia do desenho, como descendia da revolução universal das artes. Não se estava improvisando, estabelecia-se uma nova consciência artística.
Sobre as raízes e influências que elas sempre tiveram na minha criação artística, elas não podem ser abandonadas, mas devem ser tomadas apenas como ponto de partida para soluções pictóricas. Não sou um pintor realista no sentido estreito da palavra, como adepto da escola realista. Pinto muito mais o infra-real, a sugestão imaginária das coisas, do que o tema em sua simples geometria visual. Nunca segui qualquer escola nem pertenci integralmente a grupos. Nunca fui tribal.
Como as escolas de pintura influíram ou me seduziram? O abstracionismo foi importante para todos os pintores. Eu próprio registro em minha pintura, num determinado período, a busca do abstrato, embora nunca tenha chegado a pintar dessa forma. Os pintores deixam um pouco de contar histórias, de procurar temas exatos e foram buscar soluções puramente pictóricas, uma metalinguagem em pintura. Assim como um processo de revisão do pintar, a luminosa pesquisa da cor, o abstracionismo valeu com a necessária temática para um crescimento. Até que se esgotou pelas limitações que se impôs.
A influência do surrealismo sobre a minha pintura se fez em termos ideais. Ele nega o especifico da sedução por um determinado pintor surrealista. Não tive um mestre dentre eles, embora considere que grandes mestres surrealistas transformaram as concepções da pintura, como é o caso de Salvador Dali. A minha intimidade com o surrealismo pairou sempre no plano ideal, na aproximação do pensamento, no mesmo sentimento do absurdo dentro da realidade, na criação de uma pintura desligada da matéria. A minha pintura é uma realidade surreal.
De outra forma, o cubismo jamais exerceu diretamente qualquer influência marcante sobre meus trabalhos. Os parentescos não foram possíveis quanto ao tratamento formal. A geometria cubista ficava distante da enorme liberdade imaginativa e fantástica, vizinha do sonho e do irreal, que foi a minha constante estética. No entanto, registro minha concordância com a teoria básica dos cubistas, – pintar o que se sabe e não o que se vê – pela essência filosófica da proclamação de uma liberdade necessária ao artista, que se desvincula assim da servidão à realidade concreta visual.
Lula Cardoso Ayres
(Depoimento a Bisa Junqueira Ayres, “Tribuna da Bahia” – 30/1/71).
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